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Brasil e México liderados por populistas, mas em direções opostas

Semelhantes nas estratégias e diferentes nas diretrizes políticas, Bolsonaro e AMLO representam uma grande ruptura para os dois maiores países da América Latina. O Brasil passa a girar à direita e o México, à esquerda

Os maiores e mais relevantes países da América Latina, Brasil e México, estão passando por profundas mudanças políticas e econômicas, mas em direções opostas. Enquanto os mexicanos deixam para trás quase um século de governos liberais e conservadores, o Brasil fecha um ciclo de quase 15 anos de gestões de centro-esquerda do Partido dos Trabalhadores (PT).

Em 2018, ambos elegeram lideranças populistas fortes. Andrés Manuel López Obrador, popularmente conhecido como AMLO, um político de esquerda e ex-prefeito da Cidade do México, governará o México pelos próximos seis anos. Jair Bolsonaro, um militar da reserva e ex-deputado “linha dura” da direita, comandará o maior país da América Latina por quatro anos.

Neste texto, vamos analisar as semelhanças e as diferenças entre AMLO e Bolsonaro e identificar os cenários políticos que permitiram a ascensão desses líderes populistas. O Labs convidou, para essa reflexão, o sociólogo e professor da Universidade de Buenos Aires, Ariel Goldstein, o cientista político e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Emerson Cervi, e o cientista político e professor do Centro Universitário Uninter, Doacir Quadros.

Líderes em sentidos opostos

Entre os países latino-americanos que passaram por eleições nos últimos anos, o Brasil e o México vivenciam as rupturas mais bruscas. As semelhanças entre os dois não são poucas. Trata-se de sociedades castigadas pela violência, ansiosas pelo crescimento econômico e profundamente indignadas com a corrupção da classe política.

Esse cenário fez crescer a desconfiança da população nas instituições políticas, conjuntura que favorece, na visão do cientista político e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Emerson Cervi, a projeção de líderes populistas.

“O que tem em comum nas definições [de populismo] é que todas as manifestações do populismo de direita ou de esquerda se dão em um ambiente de descrédito institucional. O populismo se nutre da desconfiança que a sociedade tem no funcionamento e na qualidade do serviço prestado pelas instituições”, afirma Cervi.

A combinação entre a ânsia popular por mudança e o descrédito das instituições tradicionais ajuda a explicar por que partidos tradicionais tiveram pouca expressividade nas eleições dos dois países.

Mas isso só foi possível porque, além das semelhanças políticas e econômicas entre os países, seus atuais líderes souberam traçar estratégias tão parecidas quanto eficazes para chegar ao poder.

Seguindo a cartilha

1. Independência partidária do líder

Uma das características do populismo, de acordo com o cientista político e professor do Centro Universitário Uninter, Doacir Quadros, é a independência do líder com relação ao partido político. “Significa dizer que esse político consegue seu sucesso eleitoral sem a necessidade de ter um partido político dando respaldo ou suporte à sua campanha”, explica Doacir ponderando que, na sua visão, Bolsonaro não se enquadra inteiramente na definição de populista, ainda que utilize algumas práticas do populismo.

Uma delas é justamente a de construir uma campanha ao largo dos partidos políticos, o que explica o então pré-candidato Bolsonaro ter transitado de partidos maiores – como o Partido Progressista (PP) e o Partido Social Cristão (PSC) – para o até então tímido PSL, pelo qual se elegeu. A tática tinha como objetivo, sobretudo, fugir de siglas tradicionais afetadas por casos de corrupção e de má administração.

A mesma estratégia foi utilizada por AMLO, que chegou à Presidência da República pelo novato Movimento de Regeneración Nacional (Morena), fundado como movimento em 2011 a partir de uma reorganização partidária da esquerda mexicana e registrado como partido em 2014. AMLO se vincula ao Morena a partir de 2012, depois de disputar e perder as eleições presidenciais pelo Partido da Revolução Democrática (PRD).

“São políticos que, para se candidatarem a presidentes, utilizaram mais ou menos a mesma estratégia de tentar se afastar das instituições tradicionais – por exemplo, dos partidos grandes – para se apresentar como alternativas a eles”, identifica Cervi.

A negação às grandes siglas é fortalecida, no discurso dos populistas, com o reforço da ideia de que existe um grupo privilegiado atuando contra a maioria da sociedade. “Esse movimento é semelhante: são políticos que se anunciam contra o establishment dizendo que a sociedade ficou refém dos corruptos, das elites, da mídia tradicional”, afirma Goldstein.

2. Apresentar-se como outsider

Para driblar o establishment, então, ambos se apresentam como outsiders, ainda que, na prática, não sejam. AMLO pode ser considerado uma figura política importante no cenário mexicano: foi prefeito da Cidade do México de 2000 a 2005 e disputou a presidência duas vezes. Já Bolsonaro tem no currículo quase três  décadas como deputado federal, com passagem por partidos tradicionais.

Tal incoerência parece não ter afetado a estratégia eleitoral dos atuais presidentes. “Os dois se apresentam como outsiders contra a corrupção em duas sociedades que baixaram muito a confiança no sistema político tradicional”, analisa Goldstein.

3. Explorar o descontentamento

Por conta disso, os dois constroem suas narrativas em torno do descontentamento e da necessidade de transformação. AMLO promete, em suas próprias palavras, uma “mudança radical”, enquanto Bolsonaro usou a frase “eu vou mudar isso aí, tá ok?” exaustivamente durante a campanha eleitoral.

“No caso do México, é um descontentamento pela falta de políticas sociais dos governos anteriores, (…) principalmente da parte da sociedade que depende mais das políticas. No Brasil é o contrário. Você teve, na última década e meia, um discurso a favor da redução das desigualdades. Isso gerou, com o passar do tempo, um descontentamento que foi muito bem explorado pela candidatura do Bolsonaro ao se apresentar como representante da maioria preterida”, analisa Cervi.

Parecidos, pero no mucho

Cervi destaca que Bolsonaro representa um “ponto fora da curva” da tradição populista da América Latina, marcada por líderes que defendiam a abertura democrática das instituições políticas, tradicionalmente fechadas à participação cidadã.

“Esse discurso do candidato Bolsonaro é uma certa novidade no populismo latino-americano. Ele é excludente. O que não nos permite dizer que o Brasil terá um governo que vai seguir esse discurso. Em uma série de pontos, o Bolsonaro até já voltou atrás de algumas manifestações que ele fazia com uma certa facilidade quando era deputado ou candidato”, identifica.

A narrativa inflamada do presidente brasileiro a favor de regimes autoritários também é destacada por Goldstein. Para ele, o discurso Bolsonaro se afasta do populismo por defender o extermínio do adversário político. Durante a campanha, o então candidato sugeriu que a população “fuzilasse” os filiados ao PT. O sociólogo lembra que o populismo estimula a divisão da sociedade entre dois campos – a elite e o povo –, mas prega também uma reconciliação.

“AMLO fala contra uma ‘máfia do poder’, mas não pede extermínio dos adversários. Essa é uma diferença muito clara porque o AMLO pode ser considerado um populista de centro-esquerda, mas ele é democrático. O Bolsonaro seria um populismo de extrema direita, mas que flerta com o fascismo também”, opina.