Se você está mal, se quebrou a cara no amor, acrescenta mais batom e vá para o ataque”.
Muitos governos, ao longo a História, agiram na área monetária como se estivessem seguindo este conselho proferido nos anos 20 pelo emblema francês da moda, Coco Chanel. Se a economia do país ia mal e a moeda se desvalorizava de forma horripilante, a saída era recorrer à maquiagem. Uma cosmética financeira. Transformar as notas que tinham estampadas uma quantia assustadora de zeros em notas com menos dígitos, implementando o corte de zeros nas cédulas de dinheiro.
Vamos imaginar um país. Ruritânia. Moeda, a coroa ruritana. Devido à inflação gerada pela caótica política economia do rei Rudolf II, foi necessário criar uma nota de 100.000 coroas (a nota de maior valor numérico antes era a de 10.000). Mas o que fazer se – tempos depois – essa nota já não vale nada? Ora, aplica-se a cosmética financeira e eliminam-se três zeros dessa cédula, que transforma-se em uma menos assustadora nota de apenas 100 coroas.
O corte clássico de zeros, em todo o planeta, é de três dígitos. No entanto, por ordem do autocrata da Venezuela, Nicolás Maduro, a partir do dia 1º de outubro a moeda nacional venezuelana terá um corte de seis zeros. Esta será uma guilhotinada monetária que na História da América Latina (ou, melhor, de todo o continente americano), só ocorreu uma vez – o solitário precedente foi no caótico Peru de 1991.
Desta forma, a nota de 1 milhão de bolívares (a cédula de maior valor numérico atualmente) passará a ser uma nota de 1 bolívar. Mas, ao contrário do Peru, este corte de zeros feito por Nicolás Maduro consiste em uma decepação de zeros sobre outro corte realizado há apenas três anos, em 2018, quando foram eliminados cinco zeros. E, vale lembrar, em 2008 o então presidente Hugo Chávez (1999-2013) já havia extirpado outros três zeros.
Ou seja, devido à escalada inflacionária, em apenas 13 anos a moeda Venezuelana perdeu 14 zeros. Mais de um zero por ano. Isso significa que 100.000.000.000.000 bolívares em 2008 (100 trilhões de bolívares) equivaleriam a 1 bolívar-digital hoje. Segundo o Banco Central Venezuelano, o corte de zeros busca “facilitar” o uso da moeda, “levando-a a uma escala monetária mais simples”.
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O país teve várias fases de elevadíssima inflação ao longo de sua História. Mas desde a posse de Maduro em 2013, após a morte de Chávez, a situação ficou descontrolada: o país está em hiperinflação ininterrupta há 44 meses e acumula oito anos de recessão. Em 2020, a Venezuela teve uma hiperinflação de 2.959,8% (embora os economistas críticos do regime indiquem que o índice real era de 3.713%). Em 2019 havia sido de 9.585%. Nos anos anteriores, os números também foram mais assustadores do que uma visita de Freddy Kruger e Chucky. É a inflação mais elevada do planeta.
Soma-se, ainda, a pobreza que assola a maior parte dos habitantes que ficaram no país. Devido à crise crônica, quase 6 milhões de venezuelanos partiram em êxodo. O fluxo só se deteve no último ano e meio por causa da pandemia, que levou ao fechamento de fronteiras.

Os defensores do regime acusam as sanções econômicas dos Estados Unidos como a causa de todos os males da Venezuela. Mas na realidade o governo do presidente Barack Obama aplicava sanções contra os integrantes do regime (e não contra a economia do país), como embargos das contas bancárias da cúpula chavista em bancos americanos. As sanções que complicaram a economia venezuelana só começaram em 2018, já na administração de Donald Trump. O descalabro venezuelano é anterior às sanções (e com estas, se agravaram mais).
Para complicar, o regime de Maduro não consegue imprimir notas na velocidade necessária. Portanto, o papel-moeda é escasso, fato que provoca imensas filas nos bancos. Isso gerou um cenário no qual a maioria da população precisa usar o dinheiro eletrônico (com a complicação decorrente das péssimas conexões de internet e os apagões de energia elétrica), enquanto outra parcela teve que recorrer ao dólar.
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Em julho, a inflação venezuelana foi de 19%, segundo indica a ONG Observatório Venezuelano de Finanças. Segundo a entidade, a inflação acumulada desde o início do ano é de 415,7%. O acumulado nos 12 meses anteriores seria de 1.984%.
O salário-mínimo da Venezuela é de 7 milhões de bolívares (em torno de US$ 1,70). O Estado venezuelano fornece um subsídio alimentício que acrescenta um valor de 15,3 milhões de bolívares, algo como US$ 3,60. Mas, segundo o Observatório Venezuelano de Finanças, a cesta básica alimentícia em julho para uma família de cinco pessoas tinha um custo equivalente a US$ 303.
“Rebatizamento”
Além de eliminar zeros, a cosmética financeira vem acompanhada por um “rebatizamento” do dinheiro. Como se fosse um nome artístico. Ou pior, como um partido político, que com alguma periodicidade, quando seus integrantes estão desvalorizados perante a opinião pública, troca de nome e sigla, para criar a sensação de que é um produto melhor (mas no fundo continua sendo a mesma coisa de sempre, sem nenhuma melhora concreta).
Isso também ocorre com as moedas. No Brasil, o “cruzeiro” transformou-se em “cruzado” e depois em “real”. Na Venezuela, a moeda tem o sobrenome do herói nacional, Simón Bolívar. Mas, não se trata de um herói nacional qualquer. É como uma espécie de super-herói, cujo nome aparece em avenidas, ruas, bairros e até em um estado (no Brasil ou na Argentina não há estado algum chamado Dom Pedro I ou José de San Martín). De quebra, existe um país, a Bolívia, distante da Venezuela, mas que também ostenta seu nome homenagem a Simón.
Desta forma, como teria sido uma heresia alterar o nome da moeda nacional venezuelana, a saída foi acrescentar uma denominação adicional. Assim, o “bolívar” se transformou em “bolívar-forte” por ordem de Chávez em 2008. Maduro, ao reformular a sucateada moeda em 2018, a rebatizou de forma bombástica de “bolívar-soberano”. Agora Maduro rebatiza seu próprio rebatizamento com o nome de “bolívar-digital”.
É como uma espécie de estratégia marketing para tentar, desesperadamente, estimular a confiança dos cidadãos na suposta “nova moeda”. O economista Leonardo Vera, professor da Universidade Central da Venezuela, afirma que a medida de cortar zeros “é como secar o chão mas sem consertar a goteira”.
“Café com leche index”
Anos atrás, a agência Bloomberg, diante da falta de divulgação do índice oficial de inflação da Venezuela e com a necessidade de ter algum parâmetro sobre a escalada de preços, decidiu tomar como referência o preço de algo consumido diariamente pelos venezuelanos: uma xícara de café com leite nas padarias de Caracas. E assim surgiu o “Bloomberg Café com leche Index”. O índice Big Mac teria sido impossível como parâmetro na Venezuela, já que a carne do hambúrguer é um alimento que a imensa maioria dos venezuelanos não tem como adquirir.
Em abril de 2018, uma xícara de café com leite nas padarias em Caracas custava 190 mil bolívares-fortes. Em julho, já havia subido para 1.400.000 bolívares-fortes. E nos primeiros dias de agosto chegou a 2.000.000 bolívares-fortes.

Em agosto daquele ano, Maduro criou o “bolívar-soberano” e implementou novo corte de zeros, cinco dessa vez. Fazendo com que uma xícara de café com leite passasse a valer 20 bolívares-soberanos. No entanto, a maquiagem monetária de nada serviu, pois a inflação continuou sua escalada. O preço do café com leite rapidamente subiu, passando a 70 bolívares em outubro e a 800 em janeiro de 2019. Em agosto de 2019, um ano depois do corte de zeros, a mesma xícara de café com leite custava 9.000 bolívares-soberanos.
E assim foi. Há poucos dias, em 25 de agosto de 2021, a xícara de café com leite custava estratosféricos 7.831.138 bolívares-soberanos. Isso mesmo, 7,8 milhões de bolívares-soberanos para bebericar uma prosaica xícara de café com leite.
Se Maduro nunca tivesse cortado os cinco zeros, o preço seria de 783.113.800.000 (783 bilhões de bolívares-fortes). E se Chávez não tivesse cortado seus três zeros em 2008, o preço da xícara seria de 783.113.800.000.000 (783 trilhões) de bolívares.
De zero em zero, o Bolívar…
As lideranças políticas da Venezuela proclamaram a independência da Espanha em 1811. Na prática, a independência se concretizou de forma plena apenas em 1821, com a derrota das derradeiras tropas espanholas. Foi quando as novas autoridades começaram a cunhar o “peso venezuelano”. No entanto, em 1871 o “peso venezuelano” foi substituído pelo “venezuelano”. Esta nova moeda teve vida breve, já que feneceu em 1879. Na ocasião foi criado o “bolívar”.
Durante 137 anos, o bolívar passou por diversos momentos complexos, por graves crises, especialmente nos anos 70 e 80, o que demonstra que a incompetência venezuelana na economia é anterior ao caos do chavismo (se bem que o chavismo demonstrou ser capaz de superar os governos antecessores em matéria de descalabro).
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No entanto, o bolívar sobreviveu a todo esse período sem cortes de zeros, sem sequer alterações de nomenclatura, até o já citado ano de 2008, quando Chávez, perante a escalada inflacionária, optou pela maquiagem, realizando o primeiro corte de zeros.
Dez anos depois, em 2018, a situação econômica da Venezuela era dantesca. Mais uma vez, em vez de botar a economia em ordem, Maduro optou pelo novo corte de zeros. O diferencial desta vez foi o anúncio de que o bolívar-soberano teria o respaldo do “petro”, uma espécie de bitcoin chavista que Maduro criou em 2018 e que foi ignorado pelos investidores internacionais. Nem os aliados de Maduro quiseram comprar a tal criptomoeda. O governo chavista foi o único comprador.
Com o corte de zeros feito por Maduro em 2018, as 8 novas notas que ele emitiu na ocasião perderam seu valor em apenas 10 meses e foi necessário emitir outras três. E em março de 2021, o regime chavista voltou a lançar novas notas: as de 200 mil, 500 mil e 1 milhão (lembrando que esta nota de 1 milhão, a partir do dia 1º de outubro, como comentamos antes, valerá apenas 1 bolívar). A nota de 100 bolívares-digitais será a de maior valor numérico. Ela equivale a 100 milhões de bolívares-soberanos.
Atualmente um venezuelano precisa de 7 notas de 1 milhão de bolívares-soberanos para comprar uma garrafa de cinco litros de água.
E o dólar?
Em 1973, quando o governo da Venezuela estabeleceu o câmbio livre, o dólar estava cotado em 4,30 bolívares. Em janeiro de 1999, um mês antes da posse de Chávez, o dólar estava cotado a 573,86 bolívares. Mas em 2018, na véspera do corte de zeros protagonizado por Maduro, o dólar no mercado paralelo estava em 5.921.486,23 bolívares (isso mesmo, 5,9 milhões).
No entanto, graças ao corte, a cotação ficou em 59,21 bolívares-soberanos em 2018. Três anos depois, a cotação da divisa americana voltou à casa do milhão e está em 4.040.784 bolívares-soberanos.
A economista Tamara Herrera sustenta que se o regime não implementar medidas concretas para combater a inflação, daqui a três ou quatro anos Maduro implementaria um novo corte de zeros.
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Não, não é comunista
Nas redes sociais, é comum ler, além das defesas da Terra Plana, frases indicando que a Venezuela é um país “comunista” (assunto também alardeado por políticos provincianos que beiram o estado de iletrados).
No entanto, um dos requisitos básicos para ser “comunista” é que 100% da atividade econômica esteja nas mãos do Estado. Isto é, desde o porteiro, passando pelo quitandeiro, o advogado, o mecânico, o cirurgião plástico, o escritório de engenharia, a consultoria financeira, a fábrica de macarrão e a academia de crossfit, entre outros.
Mas não é o caso. Na Venezuela, embora nestes 21 anos o governo chavista tenha estatizado e confiscado a granel, mais de 60% das empresas ainda são do setor privado. Isto é, a Venezuela pode ter políticos “socialistas” no comando do país, mas a economia venezuelana continua sendo majoritariamente de propriedade “capitalista”.