Argentina: Peronismo é derrotado nas eleições parlamentares
Alberto Fernández e Cristina Kichner na posse, em dezembro de 2019. Foto: Frente Todos
Economia

Acordo com FMI (y otras cositas más) deixam governo da Argentina prestes a rachar

O acordo de bilhões ainda será debatido e votado no Parlamento argentino. Entenda o que está em jogo para o país e o governo de Alberto Fernández

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O presidente da Argentina Alberto Fernández, integrante da peronista-kirchnerista “Frente de Todos”, completou dois anos de mandato em dezembro. Tem ainda quase dois anos pela frente – mais especificamente 44% de seu mandato, o que é quase uma eternidade na atribulada política argentina

Semanas atrás um punhado de aliados incondicionais (“incondicionais” porque o presidente tem uma maioria de “aliados ‘pero no mucho’”) afirmou que ele pretende disputar a reeleição no ano que vem. Mas, segundo os analistas, na atual conjuntura isso não passa de um desejo algo ingênuo.

Ou, como me disse com ironia um jovem senador peronista, “a reeleição do Alberto só poderia acontecer se descobrirem que o doce de leite nacional serve como combustível nuclear, transformando a Argentina em uma potência mundial de uma hora para outra! Só um milagre vai nos salvar de uma vitória da oposição…”. 

Segundo pesquisa da consultoria Rouvier e Associados, a aprovação de Fernández, que em meados de 2020 estava em 67%, agora é de 37%. Para complicar, outra pesquisa, da consultoria Poliarquía, indica que apenas 8% dos entrevistados acreditam que Fernández é quem toma as decisões do governo. 

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A vice-presidente (e ex-presidente) Cristina Kirchner é vista como a figura forte da Casa Rosada, que pressiona Fernández a seguir seus gostos e vontades. E, quando ele não segue suas ordens, Cristina “le serrucha el piso” (“puxa seu tapete”, em bom português). Isto é, a própria vice de Fernández é sua principal opositora.

Nos próximos dias, tudo indica, Fernández sofrerá uma “serruchada de piso” já anunciada há tempos: a ausência de parte do kirchnerismo no plenário para aprovar o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI).  

Desde o ano passado, Fernández negocia com o FMI para definir novos prazos para o pagamento da dívida do país. No entanto, cada vez que ele avançava nas discussões, Cristina torpedeava as conversas com críticas diretas ao FMI. Na última semana, finalmente, após grande desgaste, Fernández fechou o acordo.

No entanto, há um mês, a tensão entre o presidente e a vice cresceu após o deputado Máximo Kirchner, filho de Cristina, anunciar que estava deixando o cargo de líder do bloco peronista-kirchnerista na Câmara. Máximo declarou que não concordava com a estratégia do presidente junto ao FMI. Outros parlamentares kirchneristas seguiram o mesmo caminho, criticando diretamente o ministro da Economia, Martín Guzmán.

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Assim, por intermédio de seu filho, Cristina oficializou a posição do “cristinismo”, que sempre se opôs a um acordo com o FMI, e colocou em apuros o “albertismo”, a pequena ala do presidente Fernández, que agora se depara com a iminência de um virtual racha interno no governo – algo que já despontava desde a derrota do governo nas eleições parlamentares do ano passado. Devido à derrota, que causou a perda da maioria peronista no Senado e complicou a situação do governo na Câmara de Deputados) Cristina exigiu a renúncia de diversos ministros “albertistas” e, no lugar, colocou mais “cristinistas”.

Para o Peronismo, acostumado há muitas décadas a ter “a faca e o queijo” (ou, no mínimo, um deles) nas mãos, trata-se de um cenário inédito.

É racha mesmo

O general Juan Perón, fundador do partido, costumava recorrer a uma metáfora para explicar as divisões dentro do partido, algo como: “Quando as pessoas escutam os peronistas gritarem entre si, não estamos brigando, mas sim nos reproduzindo, como os gatos”.

Agora, no entanto, os gritos são de racha mesmo.

Nessa etapa da guerra interna, Cristina não quer o ônus político e eleitoral que o novo pacto com o FMI causaria. 

Caso Fernández não consiga convencer Máximo Kirchner e seus seguidores no Parlamento a votar a favor do acordo, a fratura dentro do governo se concretizaria, já que isso implicaria em um suposto “ponto de não retorno” nas relações entre o presidente e a vice.

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O acordo será debatido e votado na Câmara de Deputados e no Senado nos próximos dias. Nos últimos meses uma parte substancial da oposição, especialmente o “Juntos por el Cambio”, partido do ex-presidente Maurício Macri e do prefeito portenho Horácio Rodríguez Larreta, se manifestou favorável a um acordo com o FMI. No entanto, começou a mudar de ideia diante da ausência de muitos parlamentares governistas. 

Agora, os opositores também consideram se ausentar. A oposição considera que não vale a pena se comprometer com um acordo que setores do próprio governo não respaldam. Ou seja, se a situação econômica e social argentina se complicar mais neste ano devido ao ajuste requerido pelo FMI, a oposição não pretende estar entre os apontados como culpados. O Juntos por el Cambio também está irritado com o texto do projeto enviado ao Parlamento, que contém críticas contundentes contra o governo de Macri, que contraiu uma dívida de US$ 45 bilhões com o FMI em 2018.

A oposição também contempla votar de forma genérica a favor da necessidade de financiamento proveniente do FMI, mas, nesse caso, não votariam os pontos do memorando. 

Por um lado, esses setores não querem se comprometer com o acordo impopular; mas, por outro, também não querem que a Argentina dê o calote novamente e se torne, mais uma vez, um pária nos mercados internacionais. 

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O que diz o texto do acordo com o FMI

O FMI afirma que a inflação da Argentina é alta e persistente. Por isso, no texto do acordo, determinou que o governo argentino precisará um programa integral de políticas econômicas para combatê-la (algo que governo argentino algum fez de forma concreta desde a virada do século), o que requer uma política monetária prudente. Isso implicará em “imprimir” menos cédulas de pesos, manobra graças à qual o governo tem mantido o gasto público, especialmente os subsídios. O FMI determinou também que o governo terá que reduzir a transferência de fundos federais para as províncias e empresas estatais.

O ponto mais delicado do memorando, aliás, é a exigência de uma redução dos subsídios repassados a diversos serviços públicos, entre eles, a energia. Isso porque o Estado argentino subsidia a energia das empresas privadas de energia elétrica e gás há 20 anos, de forma ininterrupta, além da gasolina. Esses subsídios foram mantidos mesmo quando a economia do país crescia. Por esse motivo, é denominado ironicamente de “populismo tarifário”. Economistas criticam os diversos governos argentinos das últimas duas décadas por não terem reduzido os subsídios de forma gradual. Só no ano passado os subsídios energéticos foram de US$ 11 bilhões, o equivalente a 2,4% do PIB.

A redução dos subsídios é um assunto muito sensível para a população argentina, já que implicaria um aumento exponencial e abrupto no custo de energia, gás e combustível. Estes aumentos – dependendo do setor da população – poderiam ir de 22,6% a 100%. Além disso, o aumento das tarifas aumentará a inflação. Isso gera mais problemas para Fernández, que se comprometeu a reduzir a inflação do país, a segunda maior das Américas, atrás apenas da Venezuela. 

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O acordo com o FMI também estipula que até dezembro desse ano o governo terá de acabar com as medidas restritivas aplicadas para a compra de dólares pelos cidadãos (o dólar, desde os anos 70, é o refúgio sine qua non dos argentinos para os momentos de crise). As restrições aplicadas por Cristina, Macri e também Fernández, geraram um redirecionamento dos argentinos para o mercado paralelo da moeda americana. Além disso, o FMI quer que o governo desestimule o uso das criptomoedas na Argentina, “com o objetivo de prevenir lavagem de dinheiro”.

Outro ponto que gera irritação nas fileiras kirchneristas é o que determina que até junho o governo precisará acabar com a lei de dupla indenização trabalhista para as pessoas demitidas sem justa causa.

O programa com o FMI terá uma duração de dois anos e meio. Nesse período visitarão o país missões do FMI que realizarão 10 revisões. Isto é, representantes do Fundo analisarão de perto se as metas prometidas por Fernández estão sendo rigorosamente implementadas.

O que acontece após a aprovação do acordo

Se o acordo passar por todos os obstáculos no Parlamento argentino, ainda precisará ser aprovado, na sequência, pela diretoria do FMI. Nem bem o board do Fundo dê o OK, o organismo liberará US$ 10 bilhões para que a Argentina possa reforçar as abaladas reservas do Banco Central. No total, o acordo envolve US$ 45 bilhões. 

O memorando com o FMI determina que a Argentina terá que ter equilíbrio fiscal primário em 2025. Além disso, projeta um crescimento do PIB de 3,5% a 4,5% em 2022. Para 2023, a meta é de um crescimento de 2,5% a 3,5%. Para 2024, de 2,5% a 3%.

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Na área inflacionária, a projeção vai de 38% a 48% para este ano, maior que a estimativa inicial do ministro Guzmán no Orçamento Nacional de 2022, que era de 33%. No entanto, a inflação prevista no memorando com o FMI é mais baixa do que o patamar de 55% calculado pelos economistas.

Fernández é o primeiro de uma longa lista de presidentes, entre eles peronistas e não-peronistas, que, em vez de decretar um acordo, preferiu levá-lo ao Parlamento. Esta é uma forma de dividir responsabilidades: Fernández não quer ser – daqui a meses, ou anos – o culpado exclusivo de um eventual fracasso da política econômica que terá que adotar por causa do FMI. 

Os analistas destacam que o presidente utilizou um discurso que classificam sarcasticamente de “a épica da resignação”. E também sustentam que o ministro Guzmán faz uma defesa do acordo como se fosse uma pessoa doente em um hospital que festeja permanecer na UTI para não morrer.

Este é o 22º acordo feito por um governo argentino com o FMI em 64 anos. Isto é, uma média de um acordo a cada 3,2 anos. Se o Fundo perceber que o governo não cumpre as metas, cancelará os créditos. Em resumo: Fernández terá uma espada de Dâmocles pendendo sobre sua cabeça. Ou melhor, quem a terá será o próximo governo, seja lá qual for.

Argentina e FMI: relação io-iô

A relação entre a Argentina e o FMI foi plena de momentos de alta tensão, de resignação e até de idílio. Em 1956, por conselho do economista Raúl Prebish, a Argentina – governada por uma Junta Militar – entrou para o FMI. Dois anos depois, o presidente civil Arturo Frondizi fazia o primeiro pedido de crédito para equilibrar a balança de pagamentos. Em troca, o FMI exigiu o primeiro grande ajuste de gastos públicos da História argentina. Frondizi eliminou restrições às importações, suspendeu os controles de preços, congelou salários e liberou o dólar. 

Os conflitos surgiram no governo de Arturo Ilía, mais intervencionista. Mas, em 1966, um golpe e a implantação do plano de estabilização do general Juan Carlos Onganía, retomou o clima amigável com o FMI. Em 1973, Perón voltou ao poder e, apesar de criticar visceralmente o Fundo, continuou acordando com o organismo.

Em 1976, um golpe levou ao poder uma Junta Militar que colocou José Martínez de Hoz no Ministério da Economia, que estimulou uma ciranda financeira que levou o país à crise e à suspensão dos pagamentos para o FMI em 1981. Em 1982, com a derrota argentina na Guerra das Malvinas, o FMI voltou a dar créditos ao país.

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Com a volta à democracia, em 1983, e a posse do presidente Raúl Alfonsín, as relações com o Fundo voltaram a ser tensas. Durante uma discussão com os representantes do FMI, o ministro da Economia Bernardo Grispún ilustrou sua exasperação arriando as calças e cuecas samba-canção na frente dos enviados do organismo financeiro. Exibindo as pálidas nádegas, gritou: “É isto que vocês querem? É isto?!”.

No entanto, o cenário de péssimas relações foi alterado com a chegada de Carlos Menem à presidência, entre 1989-99. Com a implementação da conversibilidade econômica (que estabeleceu a paridade um a um entre o peso e o dólar), a privatização das estatais e a política de refinanciar permanentemente os créditos que solicitava ao Fundo, Menem transformou-se no aluno predileto do FMI. Em 1998, o diretor-gerente do Fundo, Michel Camdessus, definiu Menem como “o melhor presidente que a Argentina teve nos últimos 50 anos”.

Em 2001, durante o governo de Fernando De la Rúa (1999-2001), o “modelo argentino” começou a naufragar. O FMI, para sustentar o aluno predileto, remeteu um crédito de US$ 10 bilhões, denominado de “a blindagem”, que, no entanto, não evitou o colapso. No dia 20 de dezembro, De la Rúa renunciou. Três dias depois, o presidente Adolfo Rodríguez Saá anunciou o calote da dívida pública com os credores privados. 

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O pagamento da dívida com o Fundo, no entanto, seria mantido. Desde o colapso financeiro do país até dezembro de 2005, o governo tratou o Fundo como “credor privilegiado”, a quem pagou um total de US$ 8 bilhões. Mesmo Néstor Kirchner, quando tomou posse em 2003, continuou pagando rigorosamente os vencimentos que possuía com o Fundo. No entanto, enquanto as dívidas eram pagas, no discurso Kirchner apresentava o FMI como o “satanás” que havia deixado a Argentina no “inferno” da crise. 

Macri herdou de Cristina uma emissão monetária descontrolada, além de um pesado déficit fiscal. Em 2018, Macri contraiu a maior dívida de um país em todo o mundo com o FMI, de mais de US$ 50 bilhões. E essa foi a dívida acumulada que Alberto Fernández recebeu. 

Recentemente o jornal “The Washington Post” fez uma análise cirúrgica da situação argentina e da sua relação com o FMI, em texto intitulado “Argentina é o parceiro de tango que o FMI não consegue deixar”. No artigo, o TWP afirma que “a Argentina é um dependente da dívida… e o FMI é seu dealer” e que “se a Argentina é uma vítima, é de feridas auto-infligidas”. O jornal também recordou os tempos nos quais o país era uma das principais economias do mundo, mas uma sequência de muitos governos que protagonizaram festivais de gastos populistas e desvalorizações, afundaram a nação.

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