Ariel Palacios: Argentina enfrenta preços congelados e escalada do dólar
Foto: Shutterstock
Economia

Argentinos têm colchão cada vez mais king size

Déjà vu? Mais uma vez, como tantas outras ao longo do último meio século, o dólar está em disparada, bate recordes, e abala o governo argentino (e, como sempre, o presidente e ministros de plantão não sabem o que fazer)

Read in englishLeer en español

Os colchões, esse estupendo invento dos tempos do Neolítico magnificamente aperfeiçoado pelos árabes antes das épocas das cruzadas, possuem um simbolismo especial na Argentina. Mais além de um lugar para repouso e cópulas, eles também são comumente usados para guardar dinheiro em segurança. E quando digo “dinheiro”, me refiro a dólares, já que desde os anos 70 ninguém confia no peso, a moeda nacional. 

Ao longo do último meio século, os colchões foram um dos diversos esconderijos utilizados pelos argentinos para guardar suas economias longe das garras dos governos (assíduos praticantes de confiscos e tributos) e das falências frequentes de entidades do sistema bancário local – a Argentina tem uma longa lista de bancos que fecharam as portas, deixando os correntistas a ver navios.

Os argentinos também escondem dólares em caixas de segurança, latas de conservas, interior de livros, sob o assoalho, além de recorrerem a instituições financeiras no exterior. Esse é o caso das sucursais de bancos uruguaios na cidade de Colônia do Sacramento, que possuem uma majoritária presença de clientes da classe média argentina (com a vantagem logística de que Colônia está a apenas uma hora de ferry-boat de Buenos Aires). 

LEIA TAMBÉM: Na Argentina, o peronismo strikes again: Fernández designa novo gabinete e cede mais poder a Cristina

Há tempos, portanto que os colchões são uma metáfora da instabilidade econômica argentina. Os “colchões” são utilizados por todas as classes sociais. Guardam dólares a empregada doméstica que consegue juntar US$ 200 até o empresário com milhões em cofres em sua mansão (ou em contas fora do país).

Em 1953, do alto da sacada da Casa Rosada, o palácio presidencial, diante de uma enorme multidão reunida na Praça de Maio, o presidente e general Juan Domingo Perón perguntou, em tom de desafio: “Alguém aí viu um dólar de perto?” A multidão, como uma claque, respondeu em uníssono: “Não!”. 

Perón abriu um amplo sorriso, fazendo jus ao apelido de “Coronel Kolynos” que tinha na época. O líder populista e nacionalista tentava minimizar a crescente importância da moeda americana em seu país. Mas já naquela época, até mesmo os militantes peronistas, na surdina, começavam a poupar em dólares.

O costume de guardar o dinheiro fora do país ou nos “colchões” tornou-se um clássico argentino a partir da grande crise de 1975. E se intensificou com a crise de 2001-2002. Na época, os argentinos tinham um total de US$ 81,87 bilhões fora do sistema. Duas décadas depois, o volume é consideravelmente maior, já que segundo o relatório da Balança de Pagamentos elaborado pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da Argentina (Indec), atualmente esse colchão acomoda US$ 233,32 bilhões (e cresceu US$ 900 milhões só no último trimestre). 

Isso equivale a 6 vezes as reservas brutas do Banco Central, de US$ 42 bilhões. Ou, 5 vezes mais do que a dívida que a Argentina possui com o FMI. Esse volume de dólares “nos colchões” é equivalente a 55% do PIB do país.

Hoje, 22 de outubro, a cotação do “dólar blue” (denominação popular para o dólar no mercado paralelo) chegou ao maior valor do ano, de 195 pesos. O valor impressiona não somente pela escalada dos últimos anos (há dois anos, quando o presidente Alberto Fernández foi eleito, estava em 67,75 pesos e há meia década estava em 15,22 pesos), mas também pela enorme distância entre essa cotação informal e o dólar oficial, de “apenas” 104 pesos. Ou seja, entre as duas cotações, há uma diferença de 87%.

A Argentina é uma espécie de “Dona Flor e seus dois maridos”. Ou melhor, parafraseando a obra de Jorge Amado, “Dona Argentina e seus Dois Dólares”. O dólar oficial é como o Teodoro, o farmacêutico pacato e entediante que casou com dona Flor quando ela enviuvou. Já o paralelo é aquele dólar cobiçado que está sempre em escalada. Uma espécie de Vadinho, o priápico espírito do defunto cônjuge de Dona Flor. Ou seja: oficialmente não existe, mas ele está aí (e é o único ao qual a população presta atenção). 

E, quanto mais o dólar sobe, mais os argentinos vão atrás dele. Segundo autoridades americanas, os argentinos são o segundo povo mais dolarizado no mundo, atrás – obviamente – dos Estados Unidos. Os russos estão em terceiro lugar no ranking.

Essa mentalidade “esverdeada” não se modificou ao longo de meio século, fosse o governo de plantão neoliberal, keynesiano, populista, desenvolvimentista ou nacionalista. 

LEIA TAMBÉM: A cosmética subtração venezuelana de zeros para conter a inflação galopante

Por trás da atual escalada do dólar estão…

  • A inflação, que foi de 3,5% em setembro, e que acumula 52% nos últimos 12 meses.
  • As crescentes dúvidas sobre as chances de conseguir um acordo com o FMI para rolar a dívida (há quase dois anos o governo Fernández tenta renegociar esses pagamentos, sem avançar de forma substancial).
  • As incertezas políticas devido à proximidade das eleições parlamentares em 14 de novembro. Existem elevadas chances de que ocorra um remake da derrota nas primárias de setembro. Se isso ocorrer, o governo deixará de ser a principal força política na Câmara de Deputados. De quebra, poderia perder a maioria que o Peronismo ostenta no Senado desde a volta da democracia em 1983.
  • As dúvidas sobre qual tipo de política econômica o governo do presidente Alberto Fernández adotaria em caso de vitória ou de derrota nas eleições parlamentares. Um dos medos é de que o governo implemente uma grande desvalorização.
  • Os sinais de que o presidente manda cada vez menos e quem dá as ordens é sua vice Cristina Kirchner. A aprovação do governo, que há um mês era ruim, de 32%, agora é pior, de apenas 27%, segundo pesquisa da consultoria Poliarquia. Para complicar, a imagem de autoridade está desintegrada, especialmente depois das críticas intensas disparadas contra Fernández pela própria vice-presidente. Além disso, o gabinete foi reformado e agora conta com mais “cristinistas” e menos “albertistas”. Apenas 8% da população considera que Fernández é quem manda. 
Alberto Fernández e Cristina Kichner na posse, em dezembro de 2019. Foto: Frente Todos
  • A tensão com os empresários. Dias atrás, o governo determinou o congelamento dos preços de 1.400 produtos até o dia 7 de janeiro, em uma tentativa de conter a inflação. A lista do governo inclui produtos como macarrão, ovos e leite. Estranhamente, também foram congelados preços de produtos como champanhe, vodka, vinho e cremes para rugas.

    O congelamento de preços foi adotado por governos dos mais variados espectros ideológicos desde os anos 70, como a ditadura militar e o governo de Raúl Alfonsín. Mais recentemente, recorreram ao congelamento o governo de Cristina Kirchner, entre 2007 e 2015, e também o de Mauricio Macri. Todos fracassaram e não atacaram as causas da inflação.

LEIA TAMBÉM: Marinha de alto-mar da Bolívia bombardeia Ulan-Bator – só que não

Por trás do costume de meio século de guardar dólares no colchão estão…

  • As constantes crises desde 1975, ano no qual o então ministro Celestino Rodrigo implementou o primeiro grande ajuste da História do país, que provocou o caos econômico. A partir daí, os argentinos sofreram um total de sete crises de grande magnitude (1975, 1982, 1989, 1995, 2001-2002, 2009 e 2018 até a atualidade).
  • Nesse período, os argentinos sofreram desvalorizações repentinas, três confiscos bancários gerais, recessões, longos períodos de inflação e hiperinflação, estatizações arbitrárias, privatizações drásticas e desorganizadas e reestatizações improvisadas.
  • Desde “El Rodrigazo”, os postos de comando do país tiveram uma espécie de “porta giratória”: os argentinos foram governados por 19 presidentes da República (dos quais 4 foram provisórios, uma civil derrubada pelos militares, 2 militares derrubados em golpes de outros militares e dois civis eleitos que renunciaram), 38 ministros da Economia e 32 presidentes do Banco Central. Tudo isso em apenas 46 anos.

LEIA TAMBÉM: A esperada crise colombiana (ou como empurrar os problemas com a barriga)

  • A inflação, que há 17 anos é de dois dígitos. E nos últimos 10 anos esteve sempre acima de 25% anual. A perspectiva é que 2021 encerrará com uma inflação de 48%.
  • A pobreza, já que em 1974 a Argentina tinha um patamar de pobreza de apenas 5%, similar ao dos países europeus. Um ano depois veio a primeira grande crise econômica e a pobreza começou a crescer. A ditadura militar (1976-83) gerou mais pobres, atingindo a faixa de 21,6%. Com a volta da democracia, a pobreza caiu para 14,2% no governo de Raúl Alfonsín. Mas, com a hiperinflação, o número de pobres voltou a crescer ao longo dos anos.
  • Em 2015, Cristina Kirchner ordenou a intervenção do Indec, que começou a maquiar os índices. Segundo o governo, a proporção de pobres era inferior à dos países mais ricos do Primeiro Mundo, entre eles, a Alemanha, com 5%. Mas, o cálculo elaborado pela Universidade Católica indicava que a pobreza real era de 30%.
  • A intervenção no Indec acabou durante o governo Macri. Semanas atrás, o órgão anunciou que 40,6% dos argentinos são pobres. E 10,7% dos argentinos estão em um nível de pobreza assustador, de indigência.

LEIA TAMBÉM: Um restaurante vegetariano com frango ao molho pardo no menu

Glossário

O métier do dólar clandestino

Arbolito: “Arvorezinha”. Denominação genérica utilizada pelos cambistas. Antigamente era aplicada somente às pessoas que ficavam na “calle” Florida vendendo e comprando dólares. Eram chamados dessa forma porque permaneciam imóveis no meio do calçadão. Atualmente o termo é aplicado para qualquer tipo de doleiro.

Cuevas: Escritórios nos quais se trocam pequenas e grandes quantias de dólares. Alguns lugares são recônditos. Outros são mais óbvios. Geralmente estão “disfarçados” como agências de turismo, brechós e lotéricas.

Delivery de dólar: O serviço feito pelas “cuevas” para a entrega de dólares aos clientes em seus domicílios. Geralmente os doleiros levam o maço de notas escondidas no tornozelo, dentro da meia.

“Cruzar o charco”: Expressão para indicar que a pessoa atravessará o “charco”, denominação irônica do rio da Prata, rumo ao Uruguai (onde milhares de argentinos possuem contas bancárias, longe da fiscalização do Estado argentino e de seus eventuais confiscos ou restrições ou falência dos bancos argentinos).

LEIA TAMBÉM: Um mini-guia para entender os mega-imbróglios políticos da Bolívia

Valores

Luca verde: Mil dólares. Uma luca, na gíria portenha, equivale a mil.

Palo verde: Um milhão de dólares. Um palo equivale a um milhão.

Dólar Messi: Nome que o dólar paralelo recebeu em 2013 quando chegou aos 10 pesos em alusão ao número 10 que o astro argentino Lionel Messi vestia na época. Essa cotação já é parte do passado, bem como o “Dólar-Tevez”, relativo aos 11 pesos.

Cotações

Dólar Blue: Denominação que começou a ser utilizada em 2011, vem de “blue chip”, jargão da operação que pode ser feita pela Bolsa de Valores para transferir dólares para o exterior. O dólar usado pelos cambistas passou a ser chamado da mesma forma.

Dólar Gris (cinza) ou Liqui: É o dólar preferido pelas médias e grandes empresas que precisam fazer operações de volumes grandes de dólares, mas sem passar pelo crivo das autoridades. Desta forma, compram no mercado local títulos em dólares que também são cotados em Nova York (ações de empresas argentinas ou títulos soberanos). Na sequência, após adquirir estes títulos em pesos em Buenos Aires, o empresário revende os bônus no exterior em dólares e os deixa depositados no exterior.

A cruzada anti-dólar

Corralito Verde: Expressão irônica para designar a bateria de restrições aplicadas pelos governos para limitar de forma radical o acesso aos dólares.

Pesificação: A passagem de dólares para pesos. Durante anos os ministros do governo Kirchner afirmavam que era preciso “pesificar” a dolarizada mente dos argentinos. No entanto, a própria então presidente Cristina (e diversos de seus ministros) tinham depósitos e aplicações financeiras em dólares.

LEIA TAMBÉM: O revival tropical de expressões fascistas e nazistas

Em boca fechada…

Frases polêmicas sobre dólares:

Quem aposta no dólar perde”: Frase de Lorenzo Sigaut, ministro da economia da Argentina em 1981, durante a ditadura militar. No entanto, em menos de uma semana a cotação do dólar aumentou em 35%, contrariando as previsões do ministro. Sua frase é citada ainda hoje com ironia pelos céticos argentinos quando alguém indica que é bobagem comprar dólares.

Quem depositou dólares receberá dólares”: Frase do presidente provisório Eduardo Duhalde em plena crise em janeiro de 2002. Dias depois percebeu que isso seria impossível e implantou o “corralón” (confisco das contas em dólares). Os dólares foram “pesificados” compulsoriamente a 1,40 pesos. Três meses depois o câmbio real chegava a 4,00 pesos.

Keywords