Mais uma vez, o futuro promissor da Argentina volta a ser abalado por um sistema político-econômico frágil. Muito aguardada pelo mercado internacional por tratar-se de um modelo de governo mais liberal que os anteriores, a reeleição do atual presidente do país, Mauricio Macri, tornou-se um sonho distante após a divulgação dos resultados das primárias na Argentina. O candidato Alberto Fernández venceu a preferência do eleitorado nesta primeira etapa, marcando o possível retorno de Cristina Kirchner ao governo, desta vez na posição de vice-presidente.
“Trata-se do retorno de velhas práticas do populismo redistributivista, dominante na América Latina desde os anos 1990, inicialmente amparado na adoção do câmbio fixo na Argentina, e posteriormente baseado no intervencionismo brasileiro, praticado a partir de 2003 pela dupla Lula-Dilma. Tais condutas resultaram no quase desaparecimento do setor industrial, carro chefe da dinâmica de qualquer sistema capitalista maduro”, explica Gilmar Mendes Lourenço, economista e professor de Economia da FAE Business School.
Opinião que também é compartilhada por outra especialista, a professora do curso de Economia e de Relações Internacionais da Universidade Positivo, Françoise Iatski de Lima. “Sem dúvidas, o cenário de recessão e inflação, com índices de pobreza e desemprego em alta, influenciaram o revés eleitoral sofrido por Mauricio Macri, que tentará a reeleição em 27 de outubro”, afirma.
O mais recente obstáculo do governo de Macri

No último sábado, a renúncia do então Ministro da Fazenda argentino, Nicolás Dujovne, atingiu em cheio as estruturas do governo de Macri. “Sem dúvida, a troca de ministro exacerbou as incertezas acerca do futuro de curto prazo da economia da Argentina. Porém, a mudança era considerada inevitável pelos mercados, em razão dos sucessivos fracassos que marcaram as tentativas de estabilização, implementadas pelo ex-ministro Nicolás Dujovne, e da exacerbação das expectativas negativas por conta da vitória inicial do grupo político liderado por Cristina Kirchner”, aponta Mendes Lourenço. Para Lima, a saída de Dujovne era inevitável em razão de sua impopularidade, causada pelas medidas de austeridade que ele teve de protagonizar.
Na semana passada, o peso sofreu uma desvalorização de 19,91% em cinco dias e a Bolsa de Buenos Aires acumulou queda de 31,44%. Na sequência, em uma tentativa de aliviar a pressão das medidas de ajuste acordadas com o FMI sobre a classe média, Macri decretou um conjunto de benefícios salariais e reduções de impostos. Também tomou medidas como o congelamento do preço da gasolina, bônus aos trabalhadores e aumento do salário mínimo – medidas, digamos, nada liberais.

Lima lembra que o substituto de Dujovne, Hernán Lacunza, já ocupou vários cargos públicos nos governos de Eduardo Duhalde, Néstor Kirchner, Cristina Kirchner e do próprio Macri, e que a escolha dele pode ajudar a acalmar os mercado. Mendes Lourenço, por sua vez, diz que o novo ministro terá um caminho repleto de desafios pela frente, não causado exclusivamente pelos aspectos internos, mas também pelo cenário internacional que atualmente enfrenta um período repleto de incertezas.
“O novo titular da economia daquele país enfrentará um conjunto nada desprezível de fatores adversos, com ênfase para o acirramento da contenda eleitoral e os riscos de deflagração de recessão global, evidenciados pela agudização do conflito comercial entre Estados Unidos e China e declínio da produção industrial na Europa, em um momento em que os juros derretem na esmagadora maioria das economias do planeta”, analisa o especialista.
A capacidade de Lacunza de lidar com essas adversidades o que determinará tanto a sua permanência no cargo quanto, possivelmente, a reeleição de Macri. “Espera-se do novo ministro da Economia a capacidade de tentar trazer um pouco de paz aos mercados e lidar com um país em recessão, no meio de uma campanha eleitoral para Macri. Também deve convencer o FMI a liberar as próximas parcelas do empréstimo de US$ 57 bilhões que o governo negociou para estabilizar o mercado de câmbio do país”, complementa a professora da Universidade Positivo.

Não se preocupem porque não pretendo fechar a economia.
Para os especialistas, entre os maiores temores do mercado internacional em relação a possível vitória do partido de oposição estão a relação do país com o Mercosul e uma provável mudança de comportamento econômico para um modelo muito mais fechado, além da divergência política de um governo de esquerda em meio a países governados pela direita, como o Brasil que é um dos maiores parceiros comerciais da Argentina.
“O presidente Bolsonaro manifestou nos últimos meses apoio a Macri e não escondeu a sua contrariedade com o resultado das primárias. Para ele, se a esquerda retomar o poder na Argentina, há um risco de que a população argentina venha ao Brasil, tornando o Rio Grande do Sul parecido a Roraima por conta da fuga de pessoas da Venezuela”, ressaltou Françoise Iatski de Lima.
O economista Gilmar Lourenço Mendes também aponta a mesma tendência em relação aos obstáculos que terão de ser superados, “no caso dos impactos na economia brasileira, é razoável supor a emergência de uma situação de antagonismo, em múltiplos interesses, desde a inserção comercial externa até a provável a acentuação da falta de sincronia entre as políticas macroeconômicas, o pode poderia sepultar, de vez, as chances de revigoramento do Mercosul, especialmente em um estágio de organização de firme aproximação comercial com a União Europeia”.
Em resposta às desconfianças do mercado, Alberto Fernández concedeu uma entrevista para os principais veículos de comunicação argentinos, “La Nación” e “Clarín”, e divulgada no Brasil pelo Valor Econômico, na qual abordou os temas até então considerados polêmicos em torno de sua posição política e econômica.
“Eu sou um dirigente kirchnerista. Fundei o kirchnerismo com Nestor. Mas também critiquei outro estágio do kirchnerismo. Somos algo novo, somos muito mais que Kirchner”, disse o candidato sobre as ressalvas que surgiram com a possível volta de Cristina Kirchner a uma posição no governo argentino.
Além disso, Fernández também ressaltou que não pretende fechar a economia e complementou dizendo que “para mim, o Mercosul é um lugar central. O Brasil é nosso principal sócio e continuará sendo”. Mas ainda que tenha adotado um discurso mais leve em relação ao Mercosul e ao atual governo brasileiro, o candidato ainda guarda ressalvas não só a Jair Bolsonaro, mas também em relação a Donald Trump, dois governantes considerados por ele como “problemas a se resolver”.
No entanto, Alberto Fernández não hesitou em admitir a importância do relacionamento aberto e claro com os governantes de ambos os países. “Bolsonaro e Trump foram os presidentes que os brasileiros e os americanos escolheram, ponto final. Não tenho mais nada a dizer sobre isso, tenho que lidar com eles. E tratar de um jeito que defenda os interesses da Argentina”, ressalta.