A China foi um fator importante na recuperação da América Latina após a crise financeira global de 2008-09. A demanda do país asiático por commodities poupou até certo ponto a região do pior da crise, uma vez que as economias latino-americanas dependem fortemente da produção de matérias primas. Em apenas dois anos, de 2009 a 2011, a região dobrou a exportação de commodities para a China. Portanto, é razoável perguntar se a economia chinesa repetirá o papel preponderante após a crise do coronavírus.
Desta vez, os sinais não são tão animadores, dizem especialistas. Joyce Chang, diretora administrativa e presidente da pesquisas globais do JP Morgan, diz que é improvável que o envolvimento da China com a região diminua as consequências econômicas do COVID-19 no mesmo grau do que houve após a crise financeira global de 2008.
A primeira razão para isso é que, apesar de começar seu retorno à normalidade após quase três meses de distanciamentos e bloqueios, a China continuará enfrentando desafios econômicos e exportações fracas à medida que o resto do mundo luta contra a pandemia. Segundo estimativas do JP Morgan, o PIB chinês crescerá apenas 1,1% em 2020.
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China estará longe de ser irrelevante, é claro. E pode haver um ponto positivo nesse fato para a América Latina, pois as perspectivas econômicas da região estão ligadas às da China em um sentido mais forte do que o resto do mundo. Segundo Chang, a maioria dos analistas espera uma recuperação rápida – ou, como economistas dizem, em forma de V – para o país asiático depois que o pior tiver passado. O JP Morgan calcula que cada declínio de 1% no crescimento chinês retira cerca de 0,5% do crescimento global. Mas para a América Latina essa correlação é de 1 para 1, um declínio de um ponto percentual na China resulta em um declínio de um ponto percentual na região da América Latina, diz o banco.
1,1%
É a previsão para o crescimento do PIB chinês em 2020, segundo o JP Morgan. O FMI espera uma taxa semelhante: 1,2%. Além da Índia, nenhum outro grande mercado deve crescer em 2020.
“Embora a China continue fornecendo algum apoio à América Latina, como a liberação prioritária de suprimentos médicos para alguns países, não é o tipo de apoio que a China foi capaz de fornecer após o crise financeira global”, disse Chang, que participou de uma recente teleconferência organizada pelo Inter-American Dialogue, think-tank baseado nos EUA, onde foi discutido o papel da China no processo de recuperação da América Latina após a crise do COVID-19.

Hoje é mais difícil para a China fornecer o tipo de apoio dado após a crise de 2008, devido à menor taxa de crescimento, maior comprometimento fiscal e maior dívida.
Joyce Chang, diretora-gerente e presidente de Pesquisa Global do JP Morgan
Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo, também afirma que, embora muitos países da região olharão para a China para auxiliar na recuperação, o dragão emergirá desta crise muito menos capaz de ajudar do que no passado. Para piorar a situação, a situação econômica na América Latina já era extremamente delicada antes da pandemia. Com o pior desempenho econômico do mundo, a região tem um espaço fiscal muito limitado para mitigar os efeitos da crise. E a probabilidade de crescente instabilidade política na região terá um efeito ainda mais prejudicial no investimento interno.
Posição fraca
Nesta semana, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou suas previsões para o PIB da América Latina como um encolhimento de 5,2% em 2020. Alguma recuperação viria apenas em 2021, com muito apoio financeiro e político dos governos locais e das instituições internacionais.
Alberto Pfeifer Filho, professor de relações internacionais do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, disse ao LABS que, apesar de seu crescimento no PIB ter sido afetado, a China continuará sendo uma economia gigante, com mais que o dobro do tamanho resgistrado em 2008. Segundo ele, organizações multilaterais podem não ter o poder de fogo necessário para ajudar os países em dificuldades na América Latina.
“A China olha o mundo de uma maneira estratégica e depende de matérias-primas fornecidas pelos países da América Latina. Isso não vai mudar”, diz Pfeifer, acrescentando que o país asiático mobilizará suas poupanças internas – de Tesouro, empresas estatais e privadas, e até reservas militares – buscando oportunidades, inclusive em uma América Latina mais barata.

A China fala sobre comércio e investimento quando se envolve com a América Latina. Na verdade, ela tem uma compreensão mais sofisticada que os Estados Unidos de como se relacionar com o público e os formuladores de políticas latino-americanos.
Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas.
Vantagem competitiva
Há também a possibilidade de um maior envolvimento da China com a América Latina nos setores em que a China já está atuando com força. Segmentos especialmente competitivos se beneficiarão, até certo ponto, das medidas chinesas de estímulo. Isso inclui tecnologias de inteligência artificial, automação e telecomunicações 5G, entre outras. Chang sugere que a China também continuará a se concentrar no fornecimento de conhecimento, tecnologias e suprimentos médicos nos próximos meses e que, como resultado, podemos ver algumas mudanças duradouras no suprimento farmacêutico global.
Investimentos futuros também serão moldados pela economia política da América Latina. Por exemplo, Stuenkel prevê que os argumentos contra o livre comércio se fortalecerão no Brasil após a COVID-19. Os pedidos de maior autossuficiência podem resultar em um ressurgimento considerável do nacionalismo econômico no Brasil e em outros lugares.
O triângulo EUA-China-América Latina
A COVID-19 também tem um efeito importante e provavelmente duradouro na chamada relação triangular EUA-China-América Latina. À medida que a economia da China continuar se recuperando, estará em uma posição cada vez melhor para liderar o mundo no combate à pandemia.
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Pfeifer ressalva que os EUA e a China podem também resolver suas diferenças comerciais, mas Washington continuará lutando para manter seu domínio na região, especialmente na frente tecnológica.
Na opinião pública latino-americana, como Stuenkel indicou, os EUA praticamente não desempenharam nenhum papel na liderança da resposta à pandemia. Há uma percepção de que uma mudança de poder ocorreu. Apesar do pronunciado sentimento anti-China no Brasil e em algumas outras partes da região, a China é cada vez mais vista como um importante fornecedor de bens públicos.