Na quinta-feira (30), o jornal Valor Econômico revelou que a equipe econômica do governo Bolsonaro estuda mudanças para ampliar o uso do imóvel como garantia de crédito. São mudanças que aproximam as regras do país às vigentes nos Estados Unidos, onde um mesmo bem por ser usado como garantia para mais de um contrato de empréstimo e por diferentes instituições financeiras. Mas que também são um tanto complexas para serem implantadas de uma única vez. As fintechs que surgiram para revolucionar o segmento no país acreditam que o caminho mais fácil seria aos poucos.
Segundo o Valor, a proposta do Ministério da Economia é criar uma central de garantias imobiliárias, na figura de uma agência, que faria a gestão das informações de cada bem e determinaria o quanto do ativo poderia ser dado como garantia para cada contrato negociado. Para isso funcionar, o bem teria de ser alienado diretamente para essa central, e não para o banco ou instituição financeira como acontece hoje.
A primeira dificuldade da proposta está no fato de que todo e qualquer imóvel no país precisa ser registrado pessoalmente em um cartório específico, definido por circunscrição (região) de cada cidade, assim como qualquer garantia atrelada ao bem. Esse processo é um dos principais entraves para que o crédito com imóvel como garantia decole no país, e é também um dos principais obstáculos para a proposta do governo.
A segunda dificuldade está no instrumento da alienação fiduciária, que começou a revolucionar o mercado imobiliário brasileiro a partir dos anos 2000, mas que também trava o uso do mesmo imóvel como garantia de contratos de diferentes instituições.
Maria Teresa Fornea, CEO da Bcredi, fintech especializada em crédito com imóvel como garantia e que tem parceiras como Stone, Loft e GuiaBolso, entre outras, explica que a diferença técnica principal entre hipoteca, instrumento anterior à alienação, e a alienação fiduciária está no rito de retomada do imóvel em caso de inadimplência.
“A hipoteca é um instrumento judicial. No caso de inadimplência, o banco tinha de entrar na Justiça para retomar a garantia (o bem). Como a Justiça no Brasil é muito lenta, tudo isso demorava muito tempo (e tornava o crédito imobiliário mais custoso). Já a alienação fiduciária, criada em 1997, é um instrumento extrajudicial, que segue um rito que envolve o credor e o registro imóveis. E isso reduziu o processo (de retomada do imóvel) de uma maneira gigantesca”, explica ela.
Antes do instrumento, o mercado imobiliário representava de 2% e 3% do PIB do Brasil, segundo Maria Teresa. Depois do instrumento, essa proporção saltou para mais de 10% do PIB, mas poderia ser ainda maior se todo o potencial de equity (do estoque de imóveis do país) fosse usado.
Em entrevista coletiva em agosto do ano passado, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, disse que a modalidade poderia passar dos atuais 3% para 20% do PIB brasileiro em 20 anos, algo em torno de R$ 500 bilhões, se burocracias justamente como o registro descentralizado do imóvel e de suas garantias e pendências judiciais fossem eliminadas. No México e no Chile, outros países latino-americanos, o home equity representa cerca de 10% e 14% do PIB, respectivamente.
LEIA TAMBÉM: América Latina tem cinco fintechs entre as 100 mais inovadoras do mundo
Nos EUA, segundo Maria Teresa, onde essa modalidade de garantia é chamada de lien, todos os imóveis têm, em média, 50% do seu valor atrelado ao crédito, o que gera um mercado de US$ 13 trilhões a US$ 14 trilhões para o segmento. No Brasil, 70% dos imóveis (cerca de 50 milhões de propriedades) não têm qualquer crédito atrelado.

É um problema sistêmico. De um lado, todo esse ativo sem crédito atrelado, podendo ser usado como um limite (de crédito) mesmo do consumidor. De outro, o brasileiro acessando usando o cheque especial e o cartão de crédito, com taxas que passam dos 300% ao ano
maria teresa fornea, CEO da Bcredi.
Pequenas mudanças, grandes negócios
Para ser factível, a proposta do governo teria que evoluir aos poucos, a exemplo da inovação que a Lei 13.476/2017 trouxe, com a possibilidade de o consumidor ter uma “garantia guarda-chuva”, que permite que o consumidor tenha mais de um contrato de empréstimo atrelado ao mesmo imóvel, desde que todos os contratos estejam vinculados a uma mesma instituição financeira. A Creditas lançou no fim do ano passado uma linha nesse sentido. A Bcredi também estuda como aproveitar a nova legislação.
Para Maria Teresa, a centralização dos registros de imóvel e das garantias do imóvel no mesmo documento, por exemplo, já facilitaria bastante a vida dos brasileiros, e das fintechs.
“Hoje, no Brasil, se o consumidor tem uma dívida fiscal ou trabalhista, que é prioritária (em relação às demais dívidas), isso nem sempre aparece no registro do imóvel. É preciso fazer toda uma busca pelo nome do mutuário, na Justiça do Trabalho e na Receita Federal, por exemplo, para se certificar da existência ou não desses débitos, e isso torna o processo de crédito muito moroso”.
Ela explica que há inclusive uma lei, da matrícula una, em vigor desde 2015, que determina que todos os débitos e garantias atrelados ao imóvel precisam estar no registro.
Se os registros de imóveis fossem, de fato, centralizados no país, independentes de localização geográfica, e de forma automatizada, a lei seria, de fato, cumprida, o processo seria mais rápido, e o home equity, facilitado.