O resultado da eleição presidencial mexicana do ano passado surpreende não apenas pela assincronia em relação à guinada conservadora por que passa a América Latina, mas também pela vitória do primeiro candidato declaradamente de esquerda em um dos países mais conservadores do continente. Se considerada a proximidade (e a dependência) da maior economia do planeta, o feito aufere contornos ainda mais notáveis.
Ao derrotar as máquinas eleitorais do Partido Revolucionário Institucional (PRI) – agremiação que se encastelou no poder desde pelo menos 1928 – e do Partido da Ação Nacional (PAN), grupo à frente do governo entre 2000 e 2012, Andrés Manuel López Obrador (AMLO) começou a escrever um novo capítulo na história de seu país. Território que abrangeu a mais avançada civilização nativa já erigida no Novo Mundo até a chegada dos exploradores europeus, o México logo se tornou uma das mais prósperas e importantes regiões para a lógica do antigo sistema colonial.
Quase um século após a independência, fez-se palco de uma revolução (1910) de interesses mosaicos e desdobramentos improváveis, pela qual já se denotava uma das principais chagas que desde sempre acometem a sociedade mexicana: desigualdades econômica, regional e de representatividade.
Durante o século XX, o país passou por um processo de industrialização por substituição de importações tal qual o inaugurado no Brasil por Getúlio Vargas. Em que pese o estabelecimento de um relevante parque industrial, a manufatura mexicana mantém-se dependente de plantas que não endogenizam tecnologia, as chamadas maquiladoras – empresas responsáveis pela montagem de produtos destinados à exportação – e, sobretudo, da produção petrolífera.
Para além da agenda socioeconômica, mas a ela diretamente relacionada, a segunda pauta da qual deverá se ocupar o novo governo diz respeito à = escalada sem precedentes de violência ligada ao narcotráfico. Diante desses desafios, o que se pode esperar da gestão de López Obrador (2018- 2024)?

Andrés Manuel López Obrador: improvável e promissor
Fundador do Movimento de Regeneração Nacional – cujo acrônimo MORENA já se faz eloquente por si só –, AMLO recebeu 10 milhões de votos a mais do que o último presidente eleito em 2012, o que não apenas lhe garante a distinção da maior votação já obtida na história mexicana, como lhe confere a legitimidade necessária para conduzir as reformas de que o país necessita. Cem dias após tomar posse, Obrador mantém elevados índices de respaldo popular: aproximadamente 80% dos eleitores aprovam seus primeiros passos, conforme duas pesquisas divulgadas pelos periódicos El Universal e El Financiero. A despeito do risco inerente a análises precoces e concomitantes, observam-se determinados elementos os quais parecem sustentar esse apoio maiúsculo.
O apelo frugal que o mandatário imprime ao seu cotidiano parece decorrer menos de um cálculo demagógico do que de suas próprias convicções pessoais. O presidente que abdicou da portentosa residência oficial de Los Pinos, locomove-se pelo país sem aparato de segurança e tem viajado por todo território nacional na classe econômica de voos de carreira.
Para além do jogo de imagem, AMLO tem se comunicado diariamente com a população por meio de entrevistas coletivas iniciadas às 7h da manhã. Ainda que seus opositores o acusem de promover “comício, espetáculo e tribuna”, trata-se de uma rotina saudável de prestação de contas, sem a blindagem da virtualidade, a que poucos mandatários costumam submeter-se.
O apoio popular tem auferido resultados positivos à sua administração. Em três meses, o governo aprovou duas importantes emendas constitucionais. A primeira delas visa ao endurecimento contra crimes de corrupção, como o sequestro imediato de ativos adquiridos por meios ilegais. A segunda, e mais controversa, viabilizou a criação da Guarda Nacional, o braço armado pelo qual o presidente pretende suplantar as dificuldades operacionais (e éticas) das forças policiais tradicionais para combater o narcotráfico.
Mas é do ponto de vista econômico que a gestão de Obrador desperta as maiores expectativas. Seu discurso eleitoral esteve permeado por uma retórica considerada um tanto arestosa em relação aos interesses do chamado mercado. Propondo uma nova “revolução”, AMLO tem responsabilizado o modelo neoliberal adotado nas últimas décadas pelos problemas que ultrajam o país que, há trinta anos, não era exatamente a Suíça: “A política econômica neoliberal tem sido um desastre, uma calamidade para a vida pública da pátria”.
A própria decisão de paralisar as obras do novo aeroporto da capital –
sustentada, é verdade, pelo resultado de uma consulta popular de adesão praticamente nula – demonstra como há de se agir com parcimônia mesmo diante de evidentes distorções financeiras e injustiças socioeconômicas. Sabe-se, porém, que o cancelamento de contratos previamente celebrados depõe diretamente contra a melhoria do ambiente de negócios.
O projeto econômico: Estado e responsabilidade
Por outro lado, o plano de governo do então candidato López Obrador não pode ser acusado de ser exatamente heterodoxo. As cinco principais medidas apresentadas na campanha de 2012 (quando foi derrotado por Enrique Peña Nieto) e mantidas na do ano passado, resumem-se a:
1- Geração de emprego;
2- Austeridade fiscal;
3- Reforma fiscal progressiva;
4- Não aumentar ou criar novos impostos;
5- Combate aos monopólios.
Se
Trata-se de propostas já contidas no Plano Nacional de Desenvolvimento, cujas bases foram finalmente lançadas em março no Fórum Planejando Juntos a Transformação do México. Se bem articulado com a iniciativa privada (à qual ele já estendeu a mão em demonstração de boa-vontade), trata-se de um ousado plano de investimentos – de infraestrutura pesada à tecnologia social – que poderia representar, ainda que em escala atenuada, o sempre almejado “big push” teorizado pelo economista polonês Paul Rosenstein-Rodan.
Ao capítulo social de sua plataforma de governo também poderiam ser reservados elogios de cunho liberal. Ainda que essencial em um país de pobreza renitente, o presidente procurou afastar-se de um programa de um
viés meramente assistencialista. O principal vetor do projeto de combate à pobreza prevê a concessão de crédito a 1 milhão de pequenas e microempresas sem intermediários nem aval.
Por meio do multiplicador keynesiano, tal medida pode impulsionar rapidamente a demanda agregada e, a depender da viabilidade dos negócios financiados, deve incentivar o crescimento econômico também no longo prazo. Por fim, o governo decretou, em janeiro deste ano, um aumento expressivo para o salário-mínimo, o qual atingiu o mais alto patamar real dos últimos 25 anos. Dada a alta propensão marginal a consumir das camadas mais pobres da população, espera-se um rápido aumento da atividade econômica nos próximos meses.
Além disso, a parcimônia e o pragmatismo com que AMLO tem se movido em relação aos Estados Unidos parece depor contra eventuais mudanças bruscas na diplomacia mexicana. Ao abrigar parte dos imigrantes centro-americanos que rumavam em caravana para o Texas (no chamado plano Quédense en México), Obrador aplacou a sanha xenofóbica do atual governo norte-americano e mitigou o sentido da construção de muro na fronteira entre os dois países – não sem criar algum descontentamento por parte dos locais devido à ameaça potencial que tais trabalhadores poderão oferecer a seus empregos.
De forma geral, o desempenho da economia mexicana nas últimas três décadas demonstra a solidez de determinadas instituições econômicas do país. À exceção dos anos de derrocada da moeda local (1995) e da crise financeira global (2009), o PIB mexicano cresceu, desde 1990, à média de aproximadamente 3% ao ano, segundo dados disponibilizados pelo Statistics Division das Nações Unidas. Para 2019, o Banco Mundial prevê uma expansão de 2,3%. Ainda que não se possa classificá-lo como a “China asteca”, a constância de seu crescimento econômico faz do caso mexicano um destaque positivo entre os 20 países do subcontinente.
Se guiado pelo pragmatismo político que o permita abrandar determinados dogmas sem se afastar de suas convicções sociais, López
Obrador poderá tornar o México um exemplo para a América Latina contemporânea. Estabilidade política e crescimento econômico, aliados às perspectivas de desenvolvimento social com garantia de direitos individuais compõem o mais seguro passaporte para se superar o atraso histórico e desarticular o crime organizado que hoje aterroriza a população mexicana. Se lograr êxito, AMLO fará de seu país um farol progressista em meio a um mar de retrocessos nem sempre condizentes com zeitgeist do século XXI.
Contrariando o aforismo consagrado pelo ditador Porfírio Díaz (1876- 1911), que o atual presidente mexicano, a despeito da proximidade geográfica inamovível com os Estados Unidos, também consiga aproximar o seu país de Deus.