Economia

Revolução Pix: colaboração entre Banco Central e mercado financeiro foi crucial para pensar, criar e implementar Pix no Brasil

A capacidade de transferir recursos de uma conta para outra em tempo real tem sido discutida globalmente já há alguns anos. Tanto que o Pix não é a primeira modalidade do tipo. Antes dele, propostas semelhantes já foram planejadas e implementadas em outras partes do mundo, como no Reino Unido, com o Faster Payments; na Suécia, com o Payments in Real Time; em Cingapura, com o FAST; no México, com o CoDi; na área do Euro, com o TIPS; e na Índia, com o UPI.

O pioneirismo, contudo, não garante o sucesso da adoção dos sistemas, como aconteceu com o CoDi, primeiro pagamento instantâneo da América Latina, que tem patinado na adoção entre os mexicanos. Isso porque, ao contrário do Pix, o CoDi não foi concebido para o ambiente digital, o que o fez sofrer de maneira mais intensa durante a pandemia, que chegou no ano seguinte ao da sua criação.

Enquanto cada país discutia e implementava seus formatos de pagamentos instantâneos, o Brasil já analisava a viabilidade de fazer algo semelhante por aqui. “Já tínhamos o formato da TED/DOC, que permitia liquidações quase instantâneas, mas havia algumas limitações, como os horários e dias da semana em que poderiam acontecer transferências, o que impedia a instantaneidade”, explicou Willer Marcondes, sócio e especialista em finanças da PwC. Concluiu-se que, por conta de questões de infraestrutura, não seria possível converter a TED ou a DOC em opções instantâneas, o que levou à necessidade de pensar na criação de um novo formato.

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E nesse sentido, o Banco Central (BC) do Brasil se colocou de forma bastante proativa, fazendo estudos e análises para melhor entender o cenário financeiro do país, indicar potenciais caminhos de futuro e como eles poderiam ou deveriam ser alcançados. Dessa forma, movimentos que permitiram a chegada do Pix em 2020 podem ser rastreados até 20 anos antes, quando o BC iniciou um projeto para modernizar os sistemas de pagamento do varejo. Nos anos subsequentes, uma série de relatórios e diretivas indicavam que uma das saídas seria aumentar a competitividade do setor de pagamentos.

A agenda instituída pelo BC a partir dessas reflexões funcionou como uma espécie de planejamento estratégico para estimular a economia, reduzir as taxas de juros, trazer mais atratividade e fazer com que a sociedade se tornasse menos dependente do dinheiro físico e mais conectado com o dinheiro eletrônico, explicou Ricardo Pandur, gerente sênior de estratégias e negócios da Accenture. Uma das primeiras medidas tomadas pelo BC foi abrir o mercado de adquirentes, que estava concentrado em duas principais redes de pagamento, a Rede e a Cielo. O objetivo era evoluir os meios de pagamento do país de maneira a limitar as taxas para transações de crédito e débito e melhorar a competitividade das maquininhas de pagamento. O efeito foi sentido relativamente rápido, com a chegada de novas maquininhas de pagamento a partir de meados dos anos 2010.

Em 2013, cerca de sete anos antes do Pix ser oficialmente lançado, a Lei 12.865 estabeleceu novas regulamentações para as instituições de pagamento, e alguns anos mais tarde foram estabelecidas regulações que criaram a oportunidade de tornar as startups de finanças (fintechs) mais regularizadas no país, permitindo que elas funcionassem como Sociedades de Crédito Direto ou Sociedades de Empréstimo entre Pessoas. Ou seja, a partir do meio da década de 2010 o Brasil já estava no rumo para desenvolver um sistema financeiro mais aberto, capaz de abraçar a tecnologia, com maior competitividade e mais opções para os consumidores. Essas novas diretrizes apontavam para oportunidades mais claras e mais seguras para novos players do sistema financeiro e de pagamentos do Brasil, o que permitiu que o país experimentasse mais inovação financeira.

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“O BC assumiu um novo papel. Além de regulador e fiscalizador, passou a atuar agora como operador, o que destravou pontos de consenso da indústria ao se colocar como esse terceiro que iria executar [parte do processo]”, contextualiza Marcondes, indicando que a agenda imposta pelo BC foi bastante realista, mas ao mesmo tempo desafiadora, para fazer o Pix dar certo. “Hoje temos um modelo em adesão proporcional à população que é o mais bem desenvolvido do mundo”, avalia Marcondes. 


O diferencial que levou ao avanço da construção do Pix, segundo os especialistas entrevistados pelo LABS, tem a ver com a forma como ele foi pensado, criado e implementado no Brasil, a partir de uma série de reflexões, discussões e acordos entre os principais stakeholders do mercado financeiro no país. “Desde o início da sua construção, o Pix contou com a colaboração de todo o mercado financeiro, com participação ativa das fintechs, já que o BC realizou uma série de consultas públicas durante a construção da especificação técnica e do arcabouço regulatório que forma o arranjo”, detalha Rafaela Nogueira, economista-chefe da Zetta, que considera essa participação ativa do setor e a abertura do BC para ouvir as sugestões e demandas do mercado um marco de destaque na história do Pix.

Adotando uma posição de líder e facilitador mais do que apenas um mero regulador, o BC coordenou a tomada de uma série de decisões incrementais ao longo das últimas décadas que foram abrindo o espaço necessário para trazer mais inovação para o setor. Ao co-criar as regulações com os principais players do mercado, o que o BC parece ter conseguido, no final das contas, foi encontrar um alinhamento que funcionasse da melhor forma possível para atender às principais premissas de uma agenda de inclusão financeira e incentivo à economia regional.

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“Criar novos modelos propicia a entrada de novos atores, que ampliam a atuação de diversas instituições em novos nichos que antes eram atendidos unicamente por instituições financeiras ou que eram parte do sistema financeiro. Hoje, em certo sentido, há menos necessidade de intermediários financeiros do que antes. O que estava freando ou poderia frear a atuação destes novos atores era justamente a regulação, o que evidencia a importância da atitude proativa do BC”, avalia Lauro Gonzalez, pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV), que entende que a convergência entre as inovações tecnológicas, a indústria de serviços financeiros e o Banco Central como um regulador permitiu que o cenário fosse redesenhado. “As coisas não aconteceram com a mesma velocidade do mercado de telecomunicações, mas os serviços financeiros em geral acabaram incorporando a habilidade de se adaptar e de regular o uso das novas tecnologias”, conclui Gonzalez.

Na análise de Pandur, que tem acompanhado o desenvolvimento de pagamentos instantâneos em outros países, a atuação protagonista do Banco Central teve efeito positivo especialmente na decisão de como o processo seria implementado. Um dos destaques do framework, segundo o relatório Beyond Borders, da EBANX, foi a decisão de incluir o uso do QR Code, funcionalidade comum em aparelhos celulares, de modo a incentivar a interoperabilidade com outros sistemas. “O QR Code permite que vários players do mercado, como varejistas, bancos, instituições de pagamentos e pessoas físicas se integrem facilmente ao pagamento em tempo real, num padrão de operação e segurança único”, detalha o relatório.

Ao trazer para si decisões como essa, ou até a definição de quantas chaves Pix seriam de uso exclusivo, o BC conseguiu gerar maior celeridade nos processos que delinearam as formas de funcionamento do Pix. “Se isso ficasse para a autorregulação do mercado, poderia ter levado mais tempo”, pondera Pandur, que acredita que a liderança do BC na definição de formatos, regras e até modelos de APIs foi essencial para o avanço do projeto. “Conseguir cumprir o cronograma em novembro de 2020, em meio a uma pandemia, em um momento cheio de incertezas, foi uma decisão acertada, porque se não talvez o Pix não fosse implementado”, avalia o executivo.

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A proatividade, contudo, não aconteceu apenas por vontade do próprio BC, mas como um reflexo do contexto que apontava para oportunidades diversificadas no horizonte do mercado financeiro, reflete Gonzalez. Afinal, com o entendimento de que as novas regulações poderiam ampliar as possibilidades de obtenção de lucro, ficou mais fácil para o BC encampar certos tipos de regulamentação, como estabelecer a participação obrigatória no Pix de instituições com mais de 500 mil contas ativas. “As novas oportunidades de mercado certamente facilitaram a atitude e a postura do BC, na medida em que ele é bastante orientado para soluções de mercado, e este passou a se diversificar e a apoiar a agenda de maior proatividade do BC”, aponta o professor da FGV.

O benefício desse equilíbrio de interesses, na visão de Nogueira, fica evidente nos números percebidos após um ano de existência do Pix, que conta hoje com maior equidade dos players nas operações bancárias instantâneas. “Em número de transações, as fintechs detém 34% das operações por Pix, enquanto no cartão de crédito esse índice é de 29%”, informa a economista-chefe da Zetta.

O único cuidado que deve ser mantido, segundo Pandur, é garantir que o BC não se torne um competidor das empresas que regula. “O Pix é uma infraestrutura, do ponto de vista do regulador, e as empresas têm que colocar as regras em prática para fazer suas propostas de valor”, decreta.

Da mesma forma que o alinhamento e co-criação com os principais players financeiros do Brasil fez com que o Pix pudesse se tornar o sucesso que é hoje, a mesma toada parece se manter para lidar com os desafios do Pix daqui por diante, com a superação de desafios relacionados à segurança e a implementação de novas “modalidades” do Pix, como o Pix Garantido e até um potencial Pix Internacional.

*

Essa é a segunda matéria de uma série especial sobre a Revolução do Pix. Clique aqui para ler a primeira parte, que abordou o caráter de inclusão financeira e de consumo catapultado pelo Pix.

This post was last modified on junho 28, 2022 6:09 pm

Jacqueline Lafloufa

Journalist, non-fiction content writer, and hostess of the podcast Guia Prático. Specialist in scientific journalism and digital communication, she is also a Master's Program researcher at the Laboratory of Advanced Studies in Journalism (Labjor) at Unicamp.

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Jacqueline Lafloufa

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