Para alcançar a chamada tripla hélice da inovação é necessário um ambiente regulatório, incentivos à pesquisa e ao conhecimento e cultura de empreendedorismo. Assim, a reforma do complexo e oneroso sistema tributário brasileiro deveria ser comemorada pelo ecossistema de inovação. Pelo contrário, de acordo com as fontes ouvidas pelo LABS, a reforma — nos moldes do projeto que tramita na Câmara dos Deputados — pode ser um desastre para as startups brasileiras.
Entre os pontos mais criticados por entidades do setor estão trechos que dificultam a retenção de talentos, a captação de recursos estrangeiros e a realização de IPOs de startups brasileiras no exterior. O texto altera a tributação do Imposto de Renda e taxa a distribuição de lucros e dividendos em 20%, entre outras mudanças que afetam diretamente o modelo de operação das startups.
Para o diretor-presidente do Dínamo, grupo que se define como um movimento de articulação na área de políticas públicas focada no tema “ecossistema de startups”, Rodrigo Afonso, o Projeto de Lei n. 2.337/2021 não leva em consideração as particularidades das startups e pode destruir avanços conquistados com o Marco Legal das Startups. “É uma proposta que tem benefícios de curtíssimo prazo para o governo, mas que não olha para projeto de país, para onde a gente quer chegar na estrutura tributária, e as conexões que isso tem com outras mudanças tributárias que precisam ser feitas”, aponta ele.
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Fuga de talentos e CNPJs: duas consequências da reforma tributária como ela está
Para Afonso, o texto prevê um mecanismo que dificulta a reestruturação de empresas por meio de resgate de capital — impondo obstáculos principalmente à captação de recursos de investidores anjo e estrangeiros. Nesse cenário, sócios minoritários e investidores internacionais de startups teriam que pagar entre 15% e 20% de imposto sobre o valor de mercado de suas ações, antes mesmo que pudessem negociá-las.

A proposta, segundo o grupo Dínamo, não faz sentido e aumenta o risco para os investidores. Por outro lado, a visão do Ministério da Economia em sua argumentação no PL é de que essas reorganizações e vendas de participações societárias são usadas de forma abusiva para evitar o fisco.
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O projeto ainda toca em um dos diferenciais para atração e retenção de talentos nas startups: a possibilidade de contratações que incluem na remuneração stock options (ou seja, a possibilidade de o colaborador adquirir ações da empresa em condições pré-estabelecidas e normalmente mais vantajosas do que para o mercado em geral).
Caso aprovada, a reforma muda as regras para pagamentos de gratificações e participação nos resultados aos sócios e dirigentes feitos com ações da empresa, explicou o subsecretário de Tributação e Contencioso do Ministério da Fazenda, Sandro de Vargas Serpa, em entrevista à Agência Câmara de Notícias. “As empresas poderão continuar com gratificação por resultado para empregados. Continua sendo deduzida, mas para dirigentes e sócios não será permitido. O sistema de tributação fica mais justo, pois só empregados terão dedução. Sócios e dirigentes têm outras formas de ganho direto e de receber da empresa, que estamos revisando. Empregado só tem o salário e participação na empresa”, afirmou Serpa.
As deduções são valores que as pessoas físicas podem abater da sua base de cálculo para o imposto de renda — reduzindo o imposto devido ou ampliando o valor a ser restituído.
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“Os nossos desafios são: ambiente regulatório e pessoas qualificadas para trabalhar nessa área. E a gente está muito perto de viver um apagão de talentos porque a demanda vem muito mais forte do que a oferta”, comenta o fundador da Sirius Education e presidente da Associação Brasileira de Startups (Abstartups), Felipe Matos, ressaltando o risco de êxodo dos trabalhadores do segmento, acentuado pelo fato de que parte desses talentos já estão realizando suas atividades de forma remota.
O fim do cenário ideal para as startups?
Com mais de 20 anos de experiência no ambiente de startups no Brasil, Matos acredita que o ecossistema de inovação está vivendo seu melhor momento, apesar das questões regulatórias. “A gente teve alguns avanços recentes com a aprovação do Marco Legal das Startups; ainda assim, muito aquém do necessário. E, de fato, se tivermos esse texto da reforma aprovado, passamos a ter um desincentivo para o crescimento”, explica.
De acordo com Matos, vários elementos favorecem o bom momento do setor. Entre eles, a digitalização acelerada pela pandemia, os juros baixos e o consequente retorno limitado de investimentos em ativos mais conservadores, além da valorização do dólar, que torna as empresas brasileiras “baratas” para os investidores estrangeiros. Tudo isso, somado ao alto grau de maturidade da comunidade de empreendedores do país.

Há, ainda, o medo de que seja aprofundada a prática de manter a parte societária das startups fora do Brasil. De acordo com as fontes ouvidas pelo LABS, Delaware, nos EUA, tem sido um dos refúgios para startups que não querem se envolver com a burocracia do mercado brasileiro. O estado norte-americano se tornou um destino frequente de empreendedores da área de tecnologia em razão de sua legislação e incentivos.
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Um desses estímulos é a possibilidade de os fundadores venderem a maior parte das ações de sua startup sem abrir mão do poder de decisão sobre os negócios. Assim, as companhias abrem holdings nos EUA para recebimento de investimento e passam a ser sócias da subsidiária brasileira.
“Não somos contra uma mudança tributária em que você tribute dividendos, renda e mude o aspecto tributário do Brasil, que é realmente desigual. Não estamos lutando para não pagar imposto. Estamos falando de criar mecanismos para manter o capital de investimento”
Rodrigo Afonso, Diretor-Presidente do GRUPO DÍNAMO.
A principal falha da reforma tributária: ela não simplifica o sistema
A principal crítica da advogada tributarista e sócia do Baptista Luz Advogados, Ivana Marcon, ao texto debatido na Câmara dos Deputados é que a proposta, do jeito que está, não simplifica o sistema de tributação brasileiro. “O entrave [maior] sem dúvida é a falta de simplificação do nosso sistema. Muitas leis e obrigações a serem cumpridas. Há dificuldade na captação de investimento para empresas de inovação, por exemplo. A reforma teria de vir para simplificar esse sistema”, avalia Marcon.
Enquanto diversos setores da economia reagem às perdas que o texto pode gerar, há a sensação de que o projeto pode mudar de forma inesperada nas próximas semanas. “É surreal. Para a gente, esse projeto está sendo acelerado sem uma discussão com a sociedade civil, com as entidades engajadas. Isso faz com que a gente aprove projetos que, sem perceber, afetam uma série de setores que não estavam pensados no conceito do projeto”, avalia o presidente do grupo Dínamo.
Convidado para falar sobre o tema em um evento no Senado na última sexta-feira, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse preferir não fazer reforma a optar por uma que piore o sistema atual. Segundo Guedes, “Tem muita gente gritando que está piorando, mas é quem vai começar a pagar”.