Santiago, Chile, 2013. Foto: Daniel Garcia Neto/ Creative Commons (licensed under CC BY-NC 2.0).
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Legislativo do Chile deve aprovar primeiro marco regulatório para fintechs do país

A chamada Lei Fintech prevê a regulação de uma série de serviços pela CMF, a CVM chilena, abre espaço para o open banking e amplia a atuação do Banco Central

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Da edição de uma normativa do Ministério da Fazenda em 2016, que autorizava que entidades não bancárias operassem serviços de pagamentos, até setembro deste ano, quando a chamada “Lei Fintech” chegou à Câmara dos Deputados, o Chile viu seu ecossistema crescer e chegar a 176 startups de serviços financeiros.

Em seu primeiro passo para regulamentar a revolução fintech em andamento, a quinta maior economia América Latina abre espaço para diverficação, open banking e até mesmo um Banco Central mais participante. Mas também há pontos sensíveis que podem atrapalhar a inovação financeira no país mais bancarizado da América Latina, onde  73% da população tem conta em banco e 12,4 milhões cartões de crédito (pouco mais de um cartão para cada adulto) estão ativos.

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O projeto de lei chegou às mãos dos parlamentares no início de setembro, encaminhado pelos ministérios da Fazenda e da Economia, Fomento e Turismo. Na semana passada, o texto geral do projeto, que tem 45 artigos, foi aprovado na Comissão de Fazenda da Câmara dos Deputados chilena — cada um dos artigos, porém, ainda estão em discussão e podem ser modificados pela Casa na votação em plenário. O projeto ainda precisa passar por uma segunda votação do Senado chileno para ir à sanção.

O marco regulatório das fintechs é algo em discussão há mais de dois anos e meio no país. Partiu da intenção da indústria e do governo de regulamentarem as plataformas de financiamento coletivo (crowdfunding) e serviços relacionados, mas acabou virando algo maior. 

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Assim como já ocorreu em países como o Brasil e o México, o novo marco regulatório busca definir alguns parâmetros para as empresas de tecnologia financeira e estabelecer a partir de que momento elas precisam ser entidades reguladas pela Comisión del Mercado Financiero (CMF), a CVM chilena. Além das plataformas de financiamento coletivo, são alvo do marco regulatório sistemas de pagamentos e transações alternativos, serviços de assessoria de crédito e investimentos, assim como empresas que fazem custódia de qualquer tipo instrumentos financeiros (includindo criptoativos) — ou seja, boa parte das atividades exercidas pelas fintechs hoje. 

O que muda para as fintechs no Chile

De maneira geral, a Lei Fintech estabelece que as empresas e entidades interessadas em operar uma ou mais das atividades citadas acima terão de solicitar sua inclusão no Cadastro de Prestadores de Serviço da CMF. A Comissão, por sua vez, precisará responder sobre o pedido em até 30 dias úteis. Caso o pedido seja aceito, a inclusão da entidade no Cadastro precisa ocorrer em até três úteis depois da resposta. Todos esses prazos são uma das preocupações de especialistas e empreendedores. Além da obrigatoriedade de cadastro, ter de esperar pela autorização para começar a operar pode desestimular o ecossistema. 

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Fintechs que trabalham com a custódia e a intermediação de instrumentos financeiros, em especial, precisarão ter um patrimônio líquido de UF 5.000 (cerca de US$ 193 mil) ou o equivalente a 3% a 6% de um patrimônio referência ainda a ser definido por um cálculo da CMF (o valor que for maior entre essas duas possibilidades valerá). Atualmente, a exigência é de 10.000 UF. 

Esse tipo de escalada de normas e exigências é esperada, porém precisa acompanhar também o nível de inovação de cada ecossistema. No Brasil, a última mudança a elevar a régua para as fintechs ocorreu em outubro do ano passado, quando o Banco Central estabeleceu que, a partir de março de 2021, todas as instituições de pagamento que lidassem com pelo menos R$ 500 milhões em transações seriam obrigadas a requerer autorização para oferecer contas digitais — partir de 2023, essa exigência valerá para instituições de qualquer porte.

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O Nubank, maior banco digital da América Latina, nasceu oferecendo apenas um cartão de crédito. Foi somente depois que obteve a licença do Banco Central para operar como instituição financeira que a startup passou a oferecer a NuConta.

Em termos de patrimônio, a mudança promovida pelo Banco Central no Brasil visava submeter as instituições de pagamento não integradas a entidades autorizadas a uma “nova definição de capital regulamentar”. Agora, para se tornar uma instituição de pagamento regulamentada pelo BC no Brasil, uma fintech precisa de, no mínimo, R$ 2 milhões de capital. Para quem é um serviço iniciador de pagamentos, por exemplo, que no sistema é o agente que recebe o comando da transação mas não quem a executa, o mínimo de capital exigido é de R$ 1 milhão.

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“De fato, a Lei Fintech parece ter baixas barreiras à entrada de novos concorrentes, uma vez que apenas algumas dessas empresas serão regulamentadas, dependendo de sua atividade e porte. No entanto, existem algumas disposições do projeto de lei que podem contrariar este princípio, como o facto de as empresas não só deverem se registar no CMF, mas também ter autorização deste para funcionar, o que pode demorar até 6 meses e estar sujeito a os critérios da autoridade de plantão, por isso pode ser um desincentivo à entrada no mercado”, pontua o advogado Cristián Reyes, que assessora juridicamente a associação de fintechs do país, FinteChile.

Cristián Reyes, do escritório Aninat Advogados, que presta assessoria jurídica à FinteChile. Foto: Divulgação.

O fato de a proposta também dar a entender que as fintechs que se enquadrarem nas atividades reguladas pela CMF terão de se ater a essas atividades e não poderão oferecer outros serviços fora do escopo da lei também incomoda representantes do ecossistema. Não se sabe ainda de o fato de uma fintech exercer mais de uma atividade implicará em uma “multiplicação de requisitos mínimos e garantis”, e como isso aconteceria. 

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Ao colaborar para as discussões em torno da nova legislação, o Banco Central passa a ter também uma papel mais participante no ecossistema de inovação do país. O artigo 16 da Lei Fintech introduz as bases para o open banking no Chile, trazendo, por exemplo, quais serão as instituições participantes do sistema (bancos, emissores, instituições de pagamento, iniciadores de pagamentos, entre outros). O novo marco também modifica uma lei orgânica que trata dos poderes regulatórios da autoridade monetária, extendendo esses poderes às chamadas stablecoins (criptomoedas de valor mais estável).

“Em linhas gerais, a Lei Fintech chilena levou em consideração a experiência de outros países, para evitar modelos que pudessem dificultar a livre entrada e atividade das empresas. Por esse motivo, sandboxes, por exemplo, e requisitos mais pesados, como a intervenção do Banco Central, existentes em outros países, foram descartados. No entanto, a autorização prévia do CMF, conforme afirmado, vai contra este princípio geral e, em minha opinião, deve ser eliminada”, diz Reyes. 

O mercado espera ter o novo marco regulatório publicado no ano que vem, mas os parlamentares e o próprio governo federal chileno já disseram que querem que o trâmite da Lei Fintech termine em, no máximo, dois meses.