Falar de negócios no maior país da América Latina é tratar de diversos “Brasis”, do Sudeste tecnológico ao Centro-Oeste rural. No Norte do Brasil (a região menos populosa) a combinação de palavras “e-commerce e Amazon” ganhou um sentido diferente do usual. A responsável por isso é a Bemol, uma rede varejista de 78 anos que tem feito o comércio eletrônico acontecer nas mais remotas vilas da Amazônia.
Por meio de rodovias, balsas e embarcações, a Bemol chega a mais de 50 municípios da chamada “Amazônia Ocidental”, que engloba áreas dos estados do Amazonas, Roraima, Rondônia e Acre. No segundo trimestre de 2020, quando o e-commerce foi essencial para os lojistas do país manterem as vendas por conta da pandemia de COVID-19, a tradicional varejista de eletroeletrônicos e móveis viu o chamado “e-commerce caboclo” (que atende à população ribeirinha) vender dez vezes mais, se comparado ao segundo trimestre de 2019.

80% do negócio da Bemol está no Amazonas, e até poucos anos atrás era concentrado em Manaus, capital com metade da população do estado. Ainda no começo de 2019, 97% das vendas no Amazonas eram feitas através das lojas físicas, com um e-commerce pouco representativo. “Nosso negócio também é muito baseado em crediário. Em torno de 80% das nossas vendas são feitas com crediário próprio, sem nenhuma instituição financeira”, explica Marcelo Forma, CFO da Bemol, em entrevista ao LABS.
Boa parte da população daqui teve a primeira experiência de crédito com a Bemol e não através de uma instituição financeira
Marcelo forma, cfo da bemol.
No dia 21 de março todas as lojas da rede foram fechadas por conta de um decreto estadual. Manaus foi a primeira capital do país a ser severamente afetada pela pandemia, com falta de leitos e até de espaço nos cemitérios. O impacto no negócio foi imenso. O primeiro problema a ser resolvido era como vender. Apenas 3% das vendas da Bemol eram feitas por e-commerce. O segundo era como receber, já que o pagamento do crediário era feito presencialmente pelos clientes, nas lojas da rede.
Até aquele dia, o negócio da Bemol crescia em torno de 20% todos os meses, em comparação a 2019. Com 10 dias de lojas fechadas, as vendas caíram 15%. Em abril, a Bemol passou pelo seu pior período, com uma redução de 36% nas vendas.
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Remando contra a maré
“Criamos um comitê de crise e definimos três grandes estratégias. A primeira era cuidar da saúde dos nossos colaboradores e clientes com um protocolo de saúde bem estruturado. A segunda estratégia foi decidir que não iríamos demitir ninguém e usar todas as ferramentas que o governo nos possibilitasse e, mesmo assim, se não fosse suficiente, a gente seguraria toda nossa força de venda em respeito aos nossos colaboradores. A terceira foi cuidar da saúde financeira da empresa”, conta Forma.
Aliadas ao crédito que os bancos concederam à varejista e às negociações com fornecedores para postergar prazos de pagamento, as três estratégias funcionaram.
Com a queda abrupta nas vendas físicas, a empresa apostou no e-commerce, melhorando a experiência do cliente no site, investindo na divulgação do portal, diversificando a oferta de produtos e reduzindo os prazos de entrega. “Começamos a entender necessidades que nossos clientes tinham que iam além do nosso mix tradicional de produtos e conseguimos incorporar produtos alimentícios, porque a gente viu que tinha uma necessidade muito grande da população na região. Ninguém entregava cesta básica por meio de e-commerce”, disse.
No primeiro mês de oferta, duas mil cestas básicas foram vendidas por meio do crediário da Bemol, que alimenta as verticais do varejo da empresa. “Os nossos produtos de fábrica, remédios da farmácia Bemol, também estavam sendo vendidos por meio do nosso e-commerce”.
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Nos 70 dias de março, abril e maio em que as lojas da Bemol ficaram fechadas, o e-commerce representou metade das vendas. Os outros 50% foram feitos por televendas e social selling, por meio do WhatsApp dos vendedores com os clientes.
Com os caixas físicos fechados, a varejista criou dois drive-thrus para contornar a falta de recebíveis e postergou por um mês o prazo de vencimento das parcelas do crediário, além de disponibilizar motoboys para recolherem pagamentos dos carnês nas residências. Segundo Forma, a varejista triplicou os recebimentos de carnês em boleto bancário, e possibilitou que o cliente pagasse com cartão de crédito a parcela do crediário, que já tinha sido financiado com o cartão de crédito.
“Em maio o -36% de abril virou -9%. Em junho, as lojas abriram, e as vendas subiram 50%”, conta Forma.

O e-commerce caboclo
A cidade de Autazes (a 200 km de Manaus), com 30 mil habitantes, foi o piloto para o e-commerce caboclo em abril de 2019. Para chegar até lá, partindo de Manaus, é necessário pegar duas balsas (com cerca de uma hora de travessia cada uma) e andar por uma rodovia por uma hora e meia. Na praça principal da cidade, a Bemol instalou internet para possibilitar que o cliente comprasse um produto com preço de Manaus (cerca de 30% menor do que o comercializado nas cidades ribeirinhas), sem pagar frete e com entrega em até três dias, e parcelando (dependendo do número de parcelas do crediário) sem a incidência de juros.
Fred Galvão, coordenador do e-commerce da Bemol, disse que a ideia do “e-commerce caboclo” surgiu para fortalecer o mercado na região contra concorrentes externos, como a Amazon e Magalu.
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No Amazonas, o transporte fluvial é líder. Muitos municípios só se deslocam para a capital por meio de rios. “Números que a gente projetava para conseguir dentro de um ano com o e-commerce caboclo a gente conseguiu logo no primeiro mês”, conta.
Nas vilas fluviais, a Bemol instalou quiosques com equipe técnica onde os clientes podem buscar os produtos que compraram online, acessar a internet, e fazer um cartão Bemol. “A população ribeirinha tem um nível alto de desbancarização. Acima de 90% das vendas da Bemol são financiadas pela própria Bemol. Não só vendemos como também fomentamos essa venda”.
Em municípios menores, a varejista trabalha com empresas parceiras para fazer o chamado last-mile. “Aqui no Amazonas temos uma particularidade. O transporte fluvial não funciona desassociado do transporte de passageiros. É cada vez mais raro encontrar embarcações que estritamente carregam cargas. Esse fluxo é unilateral, eu levo muita coisa para o interior mas pouca coisa retorna para a capital”, conta.
Contudo, na pandemia, os barqueiros tiveram de carregar apenas mercadorias, já que o transporte de pessoas foi bloqueado para conter o contágio pela COVID-19. E os produtos da Bemol viraram uma opção para quem precisava manter a renda fazendo o translado da capital para os municípios.
E-commerce cabloco 2.0: Bemol quer ir do crediário a um ecossistema financeiro completo
Segundo Forma, o acesso a crédito por meio de instituições financeiras é mais complexo nas comunidades ribeirinhas, onde há poucos bancos. Além disso, falta troco aos lojistas. Por isso, a varejista agora está apostando na criação de uma conta digital sem custo para “bancarizar” os ribeirinhos e ampliar a gama de serviços financeiros, com o chamado “e-commerce caboclo 2.0”.
“Agora em janeiro estamos inaugurando uma loja menor em Autazes, em que o segundo andar será também um depósito para acelerar a velocidade de entrega do produto que as pessoas compraram online e uma base para a gente oferecer os serviços financeiros que serão lançados agora no começo do ano”, conta Forma.
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A conta digital Bemol englobará serviços como crediário e empréstimo pessoal, que já estão em fase de testes, além de transferências e pagamentos. A ideia é que, em breve, todas as lojas no interior se transformem em pequenas agências da conta Bemol.
“A gente já está em uma jornada de transformação digital intensa. Vimos que o que nos trouxe até aqui talvez não seria suficiente para levar ao futuro. O pilar da transformação digital é prioridade”, afirma o CFO, e complementa que a transformação é, sobretudo, cultural: “não adianta só colocar tecnologia, temos que mudar o mindset”.