Pensadas do zero por pequenos empreendedores ou instaladas de forma estratégica e industrial como um “coworking para restaurantes”, as chamadas cloud, ghost ou dark kitchens estão se multiplicando rapidamente na América Latina. Elas são os bastidores dos chamados restaurantes virtuais, montados apenas para atender os clientes que fazem pedidos via aplicativo, e estão virando um negócio promissor o suficiente para chamar a atenção de figuras como o cofundador do Uber Travis Kalanick.
O Uber Eats não revela em que cidade ou país da América Latina a tendência chegou primeiro dentro da sua plataforma. Afirma, apenas, que já tem mais de 5,5 mil estabelecimentos nesse modelo em todo o mundo.
A Rappi, unicórnio colombiano que já atua em nove países da América Latina (Colômbia, Brasil, México, Argentina, Chile, Uruguai, Peru, Equador e Costa Rica), começou a testar as dark kitchens no quintal de casa, há cerca de dois anos, tanto no modelo individual quanto no modelo de hub, com estrutura para várias cozinhas. Após um período de testes, a startup optou por apostar nesse segundo modelo, de “coworking” de cozinhas, trazendo-o para o Brasil ainda extraoficialmente no fim de 2018, além de México, Chile e Argentina.
No caso do Brasil, principal mercado da Rappi, a meta é fechar 2019 com 90 a 100 dark kitchens prontas para uso, em cidades como São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza e Recife, além de abrir mais 200 a 300 no ano que vem, contemplando todas as principais capitais do país. Na América Latina, a startup já tem cerca de 200 cozinhas e terminar 2020 com cerca de 600, estreando o novo negócio também no Peru.
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“Os restaurantes virtuais são hoje uma das maiores tendências do mercado de delivery no mundo. E acreditamos que essa é uma tendência que está apenas no começo: com a popularização dos aplicativos, como o Uber Eats, temos observado uma mudança no perfil das pessoas que pedem comida por delivery, impactando um mercado que antes era dominado pelo fast food”, disse a gerente de comunicação do Uber Eats no Brasil, Atajila Lima, ao LABS.

“É uma tendência com viés empreendedor”, resume o head de Dark Kitchens da Rappi no Brasil, Walter Rodrigues.
O que eles dizem faz todo o sentido. O grande estímulo para o crescimento desse segmento é a busca pelo melhor de dois mundos: comida fresca e autêntica a preços baixos. Encontrando espaços físicos estratégicos, com aluguel barato, e dividindo despesas com outros empreendedores ou aproveitando a mesma estrutura física e de pessoal para atender a mais de um tipo de consumidor, os donos dos restaurantes virtuais estão conseguindo alcançar esta fórmula de sucesso.
O segmento também permite que os empresários se concentrem na produção de refeições sem se preocupar com tarefas como a operação do salão, o controle dos horários dos entregadores ou o acompanhamento das rotas de entrega.
A demanda que cria o empreendedor
Esse é o caso da empresária Matilde Arruda, dona do Sushi Plus na cidade de São Paulo. Em outubro de 2018, ela trabalhava na rede de temakerias dos pais já há alguns anos, mas viu no delivery da nova economia uma oportunidade de crescer.
“Já tínhamos tentado o formato de delivery tradicional na rede, com telefones, entregadores e tudo o mais. Mas a chegada dos apps realmente mudou as coisas da água para o vinho. Pela primeira vez, vi que podíamos crescer nesse modelo. Em um reunião com o Uber Eats, eles trouxeram uma demanda por comida japonesa a preço baixo e sugeriram que a gente criasse uma marca para isso”, conta Arruda. Dois meses depois nasceu o Sushi Plus, com um investimento de R$ 150 mil.
A primeira cozinha foi aberta na Vila Mariana. Em pouco tempo, os pedidos passaram de 1,2 mil por mês para mais de 12 mil por mês.

O aplicativo mostra o seu restaurante e você começa a vender. Não há segredo. O desafio é reagir rápido
Matilde Arruda, empresária dona de dois restaurantes virtuais em São Paulo, Sushi plus e Bowling delivery.
É que nesse modelo é possível sentir a resposta dos clientes minuto a minuto, não só na quantidade de pedidos que chegam, mas nas avaliações que são feitas ali mesmo no app de delivery.
“Vimos que um combo não estava saindo e mudamos rapidamente o cardápio. No delivery é preciso reagir rápido, não dá para insistir em algo que não está dando certo”, diz a empresária.
A matemática do negócio de Matilde, de fato, deu certo. As opções do Sushi Plus começam em R$ 1 a peça e não passam de R$ 1,50. As entregas estão sendo feitas em 17 minutos. Todo esse aprendizado e meses de bons resultados levaram a empresária a apostar em uma segunda unidade, e em uma segunda operação em pouquíssimo tempo.
Em fevereiro deste ano, ela abriu a segunda unidade do Sushi Plus, na Avenida Luís Carlos Berrini, uma importante via arterial da cidade de São Paulo. Na mesma cozinha, neste mês, Matilde começou a operação da sua segunda marca, Bowling Devlivery, focada no prato havaiano poke. “É uma operação que leva em conta a sinergia de ingredientes e fornecedores com o Sushi Plus”, pontua a empresária.
São cerca de 30 funcionários para atender as duas operações. “Com duas unidades na zona sul de São Paulo, queremos abrir mais duas em outras. Acreditamos que com quatro unidades bem localizadas, atendendo um raio de 8 a 10 quilômetros, conseguiremos atender toda a cidade”, conta Matilde.
Verticalizar ou não verticalizar
Assim como no caso da Matilde, o Uber Eats tem procurado ativamente empreendedores do ramo para apresentar propostas baseadas nos dados que o app coleta com os milhares de pedidos realizados todos os dias. “Com isso, ele pode se dedicar exclusivamente à sua expertise, que é a comida, e usar a tecnologia do Uber Eats para atingir novos públicos de forma descomplicada”, ressalta Lima. A empresa também não descarta investir em suas próprias cozinhas compartilhadas e abriu uma recentemente em Paris.
Já a Rappi optou justamente pelo modelo de hub, em que a startup é dona da estrutura usada por empreendedores. “É realmente como um coworking. Não tem custo nenhum para o empreendedor. A operação, ou seja, a cozinha é independente. [O empreendedor] tem a chave do estoque e da cozinha, ele que decide o horário em que abre e fecha o restaurante, o cardápio, tudo é decisão dele. A gente ajuda ele a gerir a área comum, como vestiários, logística de entregadores e a implementação dos softwares de senhas para melhor a operação dele”, explica Rodrigues, que frisa que a Rappi não quer ganhar dinheiro com a nova operação. O ganho da startup aconteceria indiretamente, com o aumento da oferta por região, a melhoria do tempo de entrega (mais hubs bem localizados, menos tempo de entrega) e, consequentemente, o crescimento no número de pedidos.
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Segundo ele, esse tipo de operação tem atraído quatro tipos de empreendedores: aquele que está vendendo muito e já não consegue atender a demanda existente na estrutura que possui; aquele com um produto muito bom mas que está chegando no limite e precisa dar o próximo passo para levar o seu produto a outras regiões; aquele que tem um produto muito bom e potencial de crescimento, embora não tenha uma operação consolidada; aquele que a própria startup busca em função de uma oferta que está faltando em determinada região.
Cozinhas e cozinheiros compartilhados: um novo segmento da nova economia?
O negócio é tão promissor que também está atraindo rodadas de investimento. A CloudKitchens, nova startup do cofundador do Uber, Travis Kalanick, nos Estados Unidos, é um exemplo disso. A empresa recebeu um aporte de US$ 400 milhões do fundo soberano da Arábia Saudita ainda no início deste ano, segundo uma reportagem do The Wall Street Journal, e está usando os recursos para comprar vários imóveis nos EUA, na China, no Reino Unido e na Índia.
Em setembro, Eccie Newton, cofundadora do Karma Kitchen, disse ao Financial Times que é a entrega de comida é um segmento em crescimento na empresa, principalmente quando no período noturno, já que a mesma estrutura que atende a determinado empreendedor durante o dia pode ser alugada a outro chef e/ou restaurante à noite.
De acordo com o jornal, o aluguel de uma cozinha compartilhada na primeira unidade do Karma Kitchen em Londres custa cerca de 1,5 mil libras por mês – bem menos do que as cerca de 10 mil libras necessárias para construir um cozinha do zero.
Empresas como a CloudKitchens e a Karma Kitchen, por sua vez, estão abrindo espaço para outro segmento: o de preparo dos alimentos propriamente dito. É o caso da KitOpi, com sede em Dubai, mas que opera em Londres e no Oriente Médio em cozinhas compartilhadas.
É como se um novo segmento da nova economia estivesse brotando a partir do boom dos deliveries e levando o ramo da alimentação a um novo nível de escalabilidade, pós fast-food. Parte desses empreendedores acredita até mesmo que no futuro as pessoas deixarão de preparar seus próprios alimentos.