Ilustração: Felipe Mayerle
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Nada dos US$ 4,4 bilhões levantados por startups da América Latina em 2020 foi para empresas fundadas apenas por mulheres

Apesar de mais um ano recorde em investimentos, dados do Crunchbase mostram os aportes para startups fundadas apenas por mulheres caiu de US$ 14 milhões em 2019 para zero

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O ano passado foi movimentado para o ecossistema de startups da América Latina, com novos unicórnios, como as brasileiras Loft e Creditas, e a mexicana Kavak. Só no Brasil, o total de US$ 3.5 bilhões levantados pelas startups foi o maior da história, segundo o Distrito. Ainda que o cenário do total dos aportes tenha caído de 2019 para 2020 na América Latina, as startups da região receberam US$ 4,4 bilhões no ano passado. Mas nada desse valor chegou às mãos de fundadoras que não tem um sócio homem, segundo dados do Crunchbase enviados ao LABS.

Pior: os aportes em startups fundadas apenas por mulheres na América Latina passaram de US$ 14 milhões em 2019 para zero em 2020. Ao mesmo tempo, startups que têm mulheres e homens como fundadores, viram os aportes aumentar um pouco, de US$ 748 milhões em 2019 para US$ 612 milhões em 2020. Já os investimentos em startups fundadas só por homens continuaram a “monopolizar” os aportes na região, atingindo US$ 3,83 bilhões em 2020, contra US$ 3,80 bilhões um ano antes.

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É preciso também ler nas entrelinhas dos investimentos feitos em startups co-lideradas por mulheres. O Nubank, que tem a Cristina Junqueira como co-fundadora e VP, concentrou quase metade dos aportes nesse grupo, com uma rodada recorde de US$ 300 milhões em junho do ano passado. Isso quer dizer que, embora os valores recebidos por empresas co-lideradas por mulheres tenham crescido, esses investimentos se concentraram nas mãos de poucas.

“Há algumas melhorias no financiamento de equipes mistas quando há um homem na equipe. Mas quando há apenas uma mulher ou várias mulheres, não vemos nenhuma mudança após 12 anos em nossos dados de financiamento”, diz Claire Díaz-Ortiz, sócia na Magma Partners, em entrevista ao LABS.

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Claire Díaz-Ortiz, sócia na Magma Partners. Foto: Divulgação

Sim, os investidores continuam fazendo a mesma coisa, indo pelo mesmo caminho, apesar de uma série de evidências apontando na direção oposta. O Boston Consulting Group relata que para cada dólar que uma fundadora ou cofundadora arrecada, ela gera 2,5 vezes mais receita do que um fundador homem. Uma pesquisa do First Round Capital mostra que as empresas fundadas por mulheres operam 63% melhor do que as equipes com apenas fundadores homens. E o relatório da fundação Marion Ewing Kauffman mostra que o retorno sobre o investimento de equipes lideradas por mulheres é 35% maior do que nas empresas com apenas lideranças masculinas.

Isso quer dizer que a América Latina é apenas o quadro mais latente de um cenário que se repete globalmente.

Mas por que isso aconteceu? 

Díaz-Ortiz, que atualmente está escrevendo um livro sobre fundadoras, diz que em 2020, em meio a um clima de estresse e cautela, gestores de fundos de capital de risco e investidores acabaram restringindo os investimentos às redes de contato que já conheciam. “Infelizmente, em um mundo onde cerca de 90% dos investidores em capital de risco são homens, as redes existentes serão as que esses sócios já possuem, que geralmente são formadas por fundadores do sexo masculino.” 

Além disso, há um segundo problema para as fundadoras: o trabalho remoto. “As mães que trabalham acabaram de ter o pior ano de suas carreiras. Foi difícil para as fundadoras”, acrescenta. Carolina Strobel, sócia na Redpoint eventures, viu de perto essa jornada dupla, que, durante a pandemia de COVID-19 virou “uma jornada infinita.”

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Carolina Strobel, sócia da Redpoint eventures. Foto: Divulgação

Eu estou falando (durante uma reunião) e pensando o que tem para o jantar das crianças, a programação do dia seguinte. Eu nunca passei por um momento de exaustão pessoal tão grande, precisa de muita organização para funcionar. No meu caso, tenho estrutura e consigo fazer isso [trabalhar remotamente], me dedicar aos meus objetivos. Mas imagina a imensa maioria das mulheres empreendedoras.

Carolina Strobel, sócia da Redpoint eventures.

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Sem dúvida, segundo Strobel, os últimos dez meses demandaram muito mais das mulheres do que dos homens na América Latina, onde as obrigações domésticas são culturalmente colocadas nos ombros femininos.

“O networking das pessoas da indústria são com as pessoas que fazem a indústria, que são homens e brancos. Enquanto a gente não mexer nesse networking, colocar gênero, diversidade, raça, vulnerabilidade, isso tudo não muda”. 

Lícia Souza, fundadora da venture builder brasileira WE Impact, dedicada a startups fundadas por mulheres, acrescenta que o ambiente de venture capital é permeado de riscos. Como uma pandemia torna o cenário caótico, a visão de risco torna-se ainda mais relevante.

Lícia Souza, CEO e fundadora na WE Impact. Foto: Divulgação

Como ainda há poucas mulheres empreendendo, e muitos homens tomando as decisões de investimento, a consequência é que ‘aposta-se menos’ ainda em mulheres fundadoras. [Os investidores] voltam-se para o ambiente de suposto ‘conforto’ e ‘conhecimento’, investindo em startups fundadas e lideradas por homens. 

Lícia Souza, CEO e fundadora na WE Impact.

Díaz-Ortiz destaca que cerca de 8% de todos os parceiros investidores na América Latina são mulheres. Nos EUA, essa participação sobe para 13%. Então, se a maioria dos participantes da rede são homens heterossexuais brancos, como fazê-los procurar financiamento para startups de mulheres? Para ela, o primeiro passo é garantir que o fundo seja pró-fundadoras.

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“Ser um fundo pró-fundadoras não é apenas mostrar os números, mostrar que você está investindo em fundadoras, mas também deixar claro que deseja fazer isso. Se você disponibilizar uma vaga, é menos provável que uma mulher se candidate se ela se sentir subqualificada, enquanto um homem sempre se sentirá superqualificado para se candidatar. O mesmo se aplica ao financiamento de capital de risco. Acredito que seja importante dizer que você quer investir em negócios fundados por mulheres”, diz.

Ter uma sócia investidora em um fundo de capital de risco aumenta em três vezes a probabilidade de investir em uma fundadora, de acordo com Díaz-Ortiz. Para abordar esse tipo de questão no ecossistema de startups, a EWA Capital, o primeiro fundo privado liderado por mulheres fundadoras na Colômbia, vai direcionar 40% de seu segundo fundo para startups fundadas por mulheres ou para startups com mulheres em cargos de liderança.

“Acreditamos que quanto mais mulheres tivermos na gerência de startups; no final do dia, elas criarão suas próprias empresas. E esse é o principal motivador para nós. Porque elas criarão com experiência da vida real, elas irão ter ‘MBA’ em uma startup, elas vão saber pivotar um produto, fazer pesquisas, levantar capital, lidar com investidores ”, afirma Patricia Sáenz, sócia-diretora e fundadora da EWA Capital. 

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Patricia Sáenz, gerente e sócia fundadora na EWA Capital. Foto: Divulgação

Desigualdade foi acentuada pela COVID-19

Para Strobel, apesar de não estar claro que a COVID-19 foi responsável por essa queda brusca mundial de financiamento em empresas lideradas por mulheres, não se pode negar que a desigualdade de gênero se agravou com a pandemia. 

No geral, a pandemia da COVID-19 significou um impacto desproporcional na força de trabalho feminina em todo o mundo: assombrosos 87% das mulheres empresárias afirmaram ter sido afetadas pela pandemia, de acordo com o relatório do Índice Mastercard de Mulheres Empreendedoras, divulgado no final de novembro. 

Seja por uma representação excessiva em setores mais atingidos por reveses econômicos, uma lacuna de gênero no universo digital ou pelas muitas pressões de responsabilidades domésticas, a força de trabalho feminina ficou especialmente vulnerável.

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Nos EUA, os empregadores cortaram 140.000 empregos em dezembro: todas as vagas eram de mulheres. O Brasil seguiu na mesma direção. Com a retomada das contratações no mercado formal no segundo semestre de 2020, as contratações de profissionais do sexo masculino cresceram, com saldo de 107,5 mil vagas com carteira assinada para homens, de março até novembro. Já para mulheres, o saldo é negativo. Para as trabalhadoras, de março a novembro, foram fechados 220,4 mil postos de trabalho formais, de acordo com dados do o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) doMinistério do Trabalho.

E para mulheres negras, o impacto foi ainda maior. “Dentro do contexto racial, a população negra é a primeira a ser demitida e a última a ser contratada”, afirma Maitê Lourenço, CEO e fundadora da aceleradora BlackRocks Startups.

Para as empreendedoras negras, a pandemia interferiu mais ainda no processo de captação. Lourenço afirma que a pandemia fez com que essas mulheres mais uma vez se tornassem cuidadoras das suas famílias, mães, tias, filhos, sobrinhos.

Maitê Lourenço, CEO e fundadora do BlackRocks Startups. Foto: Divulgação

“Como consequência elas acabam deixando de estar no ambiente [de venture capital], deixam de ‘mais agressiva’ no sentido de construir produtos e serviços que possam gerar esse impacto. Trazendo para uma perspectiva financeira, a pandemia só revelou cada vez mais o distanciamento que as mulheres negras têm em relação a fundos de investimento e a incentivos para que elas empreendam”, diz Lourenço.

Aqui no Brasil, a gente não tem sequer fundos que olhem para diversidade racial, que dirá pessoas negras liderando esses fundos.

Maitê Lourenço, CEO e fundadora do BlackRocks Startups

Lourenço acrescenta que se hoje o mercado de venture capital na América Latina ainda é majoritariamente masculino, ainda há um pequeno percentual de mulheres brancas acessando esse mercado. “A gente percebe o privilégio aí, quando a gente vê que mesmo em um grupo que ainda é muito pequeno, como o de mulheres na tecnologia, as mulheres brancas já estão inseridas. (…) Vemos instituições que afirmam que são diversas e que não existem mulheres negras na liderança. Isso interfere totalmente no processo dessas mulheres se tornarem investidoras”, afirma.

É uma reação em cadeia, reforça ela: se não há mulheres liderando empresas, consequentemente o salário delas não é compatível com o salário de uma investidora, e ela não está dentro do ecossistema de venture capital. “Precisamos discutir esse contexto de lideranças e atribuir à mulher negra também um espaço de possibilidade de liderar nesse ecossistema”. 

Latinas in Tech: organização trabalha para o empoderamento das empreededoras da região

Desde 2014, a Latinas in Tech (LiT), organização sem fins lucrativos com o objetivo de conectar, apoiar e capacitar mulheres latinas que trabalham em tecnologia, tem trabalhado em estreita colaboração com empresas para criar espaços seguros para aprendizagem, orientação e recrutamento dessas mulheres.

Antes da COVID-19, a LiT tinha eventos ao vivo em grandes empresas de tecnologia, com 300 latinas presentes, onde poderiam ser recrutadas. Esses patrocínios de eventos também foram a principal fonte de receita da ONG. 

A primeira empresa a falar em patrocínio anual para ter acesso ao programa das latinas em tecnologia foi o Airbnb, segundo a co-fundadora e diretora executiva da LiT, Rocío Van Nierop. Hoje, as empresas parceiras do projeto são Silicon Valley Bank, Facebook, Dropbox, Google, Pinterest, Comcast, Twitter e Paypal.

Van Nierop explica que havia duas razões principais para as empresas de tecnologia fazerem parceria com a ONG: elas queriam testar o Latinas in Tech para ver como funcionaria; e elas queriam realmente ser parceiras, postar empregos na plataforma da Latinas in Tech e interagir com as candidatas, já que o recrutamento estava no centro do negócio.

Houve um terceiro motivo (que enche o coração das dirigentes da LiT): garantir que as mulheres latinas procurem empresas que se preocupam com as latinas que já existem em suas empresas, antes mesmo de contratar novas. Garantir que essas empresas as façam crescer.

Rocío Van Nierop, co-fundadora e diretora executiva da Latinas in Tech. Foto: Divulgação

“O número de pessoas que essas empresas contratam não é minha métrica de sucesso; mas, sim, o número de latinas que elas promovem. Se elas têm mais latinas crescendo, tomando decisões, contratando. Isso é sucesso. É um trabalho em andamento para garantir que as empresas mudem seu objetivo principal [de parceria com a LiT]: do recrutamento para o bem-estar das latinas existentes na empresa, e a expansão do número de latinas”, enfatiza Van Nierop.

A assessora da LiT e diretora LatAm no Silicon Valley Bank, Julia Figueiredo, acrescenta que a organização nasceu porque as latinas que trabalham no Vale do Silício queriam ajudar umas às outras. “[Queríamos trocar sobre] Como crescemos em nossas carreiras, como fazemos entrevistas, como negociamos salário? Ajudarmos umas às outras a como guiar o trabalho. Agora temos mais diversidade e inclusão, mas anos atrás era muito mais difícil.”

Julia Figueiredo, conselheira na Latinas In Tech e diretora LatAm no Silicon Valley Bank. Foto: Divulgação

A mexicana Consuelo Valverde formou-se em Engenharia Elétrica aos 20 anos. Naquela época, ela não se encaixava nas ofertas de emprego, normalmente voltadas a engenheiros mexicanos com 25 anos ou mais. “Mas foi uma coisa muito boa de acontecer, porque me fez abrir minha primeira empresa de tecnologia”, lembra. Ela viu o poder do mercado de capital de risco para startups e acabou se tornando fundadora e sócia-gerente do fundo de capital de risco SV Latam Capital

E ser uma fundadora com desempenho superior pode ser algo muito desafiador. “Você pensaria que é mais fácil. Mas não. As pessoas começam a questionar por que isso aconteceu. Isso não acontece com os homens que têm um desempenho melhor. Eles superam o desempenho e não há dúvida sobre isso”, diz. 

Consuelo Valverde, fundadora e sócia gerente do SV Latam Capital. Foto: Divulgação

Uma pesquisa publicada na Harvard Business Review mostra que, quando diante de mulheres empreendedoras, os investidores fazem perguntas sobre potenciais perdas e riscos, além de questões pessoais; se elas são casadas , têm filhos ou pretendem ter filhos. Para fundadores homens, as perguntas se concentram no potencial de crescimento da startup.

“Enquanto não tivermos mais mulheres em em fundos maiores, não veremos mais dinheiro indo para mulheres empresárias”. Valverde acredita que para mudar o panorama de dados mostrado pelo Crunchbase é necessário fazer com que as fundadoras deixem de levantar US$ 1k, US$ 500k, para levantar US$ 10 milhões, US$ 20 milhões, US$ 100 milhões. “Precisamos de mulheres que tomam decisões em fundos maiores.” 

Metas bem definidas e até mesmo cotas são maneira objetiva de trazer diversidade aos fundos de VC

Uma das sugestões para mudar o ecossistema de VC está relacionada ao estabelecimento de uma política de cotas para construir uma empresa diversificada.

Livia Brando, country manager da Wayra Brasil, afirma que seu fundo cobra de startups do portfólio a quantidade de empregos gerados e os dados sobre contratações de homens e mulheres, além de classificações por raça. 

“Isso tudo faz uma pressão para que o ecossistema de forma geral tenha esse cuidado. Mas o movimento é muito lento. Se a gente for ficar refém desse movimento orgânico, vai levar muito tempo para mudar as coisas. Então, na minha visão, eu acho que a gente precisa realmente tomar algumas decisões [como política de cotas]”. 

A ex-executiva do Mountain Nazca Colombia e hoje sócia-gerente da EWA Capital, Patricia Saenz, acrescenta que a meta principal da EWA é atingir 10% do fundo investido por mulheres. A empresa está buscando investir onde as mulheres são fundadoras ou onde as mulheres ocupam cargos executivos, ou mesmo em empresas que estão resolvendo problemas para mulheres, onde 60% ou mais dos clientes são mulheres, por exemplo.

“Uma das coisas que estamos fazendo de forma absolutamente diferente é sermos apoiados por mulheres investidoras, essas são mulheres que ocuparam uma posição muito elevada em empresas e têm todo esse histórico. Queremos apoiar em termos de empoderamento.”

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