Na primeira semana de agosto, a argentina Mercado Livre tomou da brasileira Vale o posto de companhia mais valiosa da América Latina. A maior empresa de comércio eletrônico da região foi avaliada em US$ 60,6 bilhões, contra US$ 59,3 bilhões da mineradora.
Poucas coisas poderiam ser mais simbólicas do que uma companhia de base tecnológica ultrapassando em valor outra cuja base dos negócios está na extração e produção de commodities. Nos Estados Unidos, algo semelhante ocorreu em 2011, quando a Apple superou a petroleira Exxon em valor de mercado pela primeira vez.
Com capital aberto na Nasdaq, o Mercado Livre obteve ótimo resultado no segundo trimestre de 2020: suas ações valorizaram 101,8% entre os meses de abril e junho.
LEIA TAMBÉM: DHL Express inicia projeto para levar e-commerce até lockers no Rio de Janeiro
A pandemia da Sars-CoV-2 também resultou em uma valorização expressiva dos papéis das empresas de tecnologia brasileiras a partir de março, quando o surto da doença começou a refletir de forma mais expressiva no país. As ações da Locaweb, que abriu capital em fevereiro deste ano, registraram valorização de 142% entre 13 de março e 21 de agosto.
Destaque também para os papéis do software de gestão Linx, com valorização de 49%, e da Totvs, empresa nacional de softwares, com 45%, no mesmo período. Nesse caso, a TOTVS fez uma oferta recente para a aquisição da Linx, em uma proposta rival à da fintech Stone – cujas ações valorizaram 105% na Nasdaq.
Os papéis da Sinqia, fornecedora de softwares e tecnologia para sistemas financeiros, por sua vez, dispararam 53%. Todas tiveram desempenho superior ao iBovespa, que subiu 23% desde o começo das medidas de isolamento social no Brasil.
A brasileira Magazine Luiza, agora mais conhecida como Magalu, foi outra empresa nacional que registrou bom resultado. Na lista de empresas mais valiosas da América Latina, apareceu na 11ª colocação, avaliada em US$ 26 bilhões. As vendas totais de abril a junho de 2020 da Magalu somaram R$ 8,6 bilhões, um aumento de 49% em comparação ao mesmo período de 2019.
Já seria um crescimento bastante expressivo em situação normal, mas em meio a uma pandemia o feito é ainda mais impressionante, já que as lojas físicas da rede permaneceram fechadas durante meses. O resultado, claro, é reflexo do investimento pesado no setor de comércio eletrônico que a companhia vem fazendo.
Para especialistas, os dados indicam uma boa perspectiva para empresas de tecnologia da América Latina de forma geral. Isso porque a pandemia da Covid-19 mudou os hábitos de consumo e lazer. A avaliação é que muitos deles, como maior adesão às compras por sites e aplicativos, devem permanecer mesmo passada a crise.
LEIA TAMBÉM: LEVE, startup brasileira de logística com foco em e-commerce, chega aos EUA

“Não se trata de um crescimento isolado, focado no caso do Mercado Livre, por exemplo, ou específico deste momento. Creio que é uma transformação que veio para ficar, ainda que a intensidade possa diminuir conforme o tempo passar”, afirma José Falcão, especialista em renda variável da corretora Easynvest. “As companhias que tiveram planejamento para ampliar a participação em vendas online avançaram muito na crise do coronavírus. As pessoas foram ‘forçadas’ a mudar seus hábitos e passaram a comprar mais online, ainda que essa possibilidade já existisse.”
Analistas afirmam que os investidores começaram a enxergar o mercado de tecnologia como um setor mais defensivo (ou resiliente) no curto prazo, sofrendo menos impactos nas receitas. Consequentemente, passaram a adicionar as empresas de tecnologia na carteira, mesmo que o Brasil e outros países da América Latina não tenham a tradição de exportar produtos e serviços da área — de forma geral, as nações latinas possuem expertise em commodities.
LEIA TAMBÉM : Home office forçado acelera digitalização das vendas
O que ocorreu foi que as empresas de tecnologia começaram a ganhar a atenção dos investidores devido à essa tendência global, com um “abrir de olhos” otimista e que aponta uma perspectiva futura.
“O crescimento de empresas tech na América Latina tem sido e será cada vez mais consistente. É claro que o momento de pandemia privilegia isso, mas a migração que temos de compras offline para o comércio online já era um movimento que existiria de qualquer maneira; a pandemia só acelerou esse processo,” diz José Sarkis Arakelian, docente do curso de Administração da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap). “Muito desse volume que migrou de forma abrupta até do varejo físico para o online, mesmo com o fim da pandemia, tende a não voltar. E isso, seguramente, reflete-se no valor das ações dessas empresas.”

Falcão, da EasyInvest, acrescenta que a transformação torna mais sustentável a perspectiva positiva às companhias que atuam no ambiente online nos médio e longo prazos. O bom desempenho do Mercado Livre e de outras companhias com essas características seria um reflexo desse contexto, que tende a se consolidar no futuro.
Emanuelle Nava Smaniotto, professora da Escola de Gestão e Negócios da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), segue na mesma linha e diz que a América Latina segue uma tendência mundial de valorização do ambiente digital. “A elevação dos valores de mercado dessas empresas tem como agente catalisador a pandemia, uma vez que a atual situação aumentou a demanda por serviços e produtos digitais, o que passa a ser, em muitas cestas de consumo, uma mudança permanente”, diz ela
Mas também há uma mudança na questão da percepção de valor: o mercado lança um olhar sobre as empresas que geram inovação e se mantém na fronteira tecnológica, percebendo maior potencial de crescimento e, assim, apostando nelas
Emanuelle Nava Smaniotto, professora da Escola de Gestão e Negócios da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)
Vale a pena investir nas techs?
Já Alexandre Marquesi, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), ressalta que o sucesso do e-commerce foi alcançado de melhor forma por quem já vinha adotando uma estratégia forte nesse sentido. “O MercadoLivre não surgiu agora. Ele tem mais de 20 anos, passou por diversas transformações e seu crescimento mais expressivo vem de quatro, cinco anos”, opina.
Sobre investir nas ‘tech’ brasileiras, Emanuelle Nava Smaniotto, da Unisinos, afirma que essas empresas terão boas projeções de retorno futuro, dado o novo cenário que se estabelece. Emanuelle reforça, porém, que o mercado é incerto e todas as empresas estão sujeitas a riscos sistêmicos.

LEIA TAMBÉM: Trabalho remoto estabelece novas configurações nas casas brasileiras
“Certamente empresas mais tradicionais e consolidadas, que têm o seu mercado definido, não realizam tantos reinvestimentos e distribuem dividendos, podem ser menos arriscadas para se investir. Não são, contudo, nas quais o investidor espera grandes percentuais de retorno. Já as empresas tech estão em constante reinvestimento para inovação e, com boas perspectivas do mercado, certamente possuem projeções para maiores retornos”, opina.
José Falcão, da Easynvest, pondera que o ramo de tecnologia é arriscado por ser historicamente mais volátil, já que muitas inovações caducam rapidamente e as empresas exigem investimentos muito grandes em Pesquisa & Desenvolvimento (P&D).
“Ao pensar em tecnologia, o investidor avalia as perspectivas futuras, as oportunidades de crescimento. Companhias como a B2W e Via Varejo se reestruturam para tornarem-se mais eficientes e gerar mais resultados daqui para frente”, conclui.