No processo de educar o consumidor à lógica dos aplicativos de celular, a Apple, nos primórdios do iPhone, lançou um slogan que colou nas nossas cabeças: “existe um app para isso”. Quase 15 anos depois, para algumas empresas um simples app não consegue mais dar conta do que ela deseja oferecer aos usuários. No lugar deles, temos agora os super apps.
O conceito de super app não é novo e nasceu longe da ensolarada Califórnia, a terra-natal do iPhone. A ideia de ter um app “faz-tudo” veio da China, onde o ambiente hostil a empresas estrangeiras, mas poroso o suficiente para permitir a entrada de soluções convenientes, como a do celular moderno, fez nascer apps com grandes bases de usuários e incontáveis funcionalidades, como o WeChat, talvez o pioneiro dos super apps.
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Operar um super app é uma tarefa grandiosa e complexa. Mesmo assim, desde 2015, algumas empresas ocidentais têm apostado na oferta do super app a fim de reproduzir, aqui, sucessos chineses como WeChat e Meituan. São os casos, por exemplo, da colombiana Rappi, da fintech brasileira Inter e do varejo brasileiro Magazine Luiza. Parecem poucos players, mas em uma categoria em que a ambição é ocupar a maior parte do tempo do usuário, pode-se dizer que a disputa dos super apps latino-americanos já está bem movimentada.
Como nasce um super app
A Rappi nasceu como um super app. É o que explica Fernando Vilela, CMO da Rappi no Brasil. Em 2015, quando a Rappi estreou, havia apenas dois botões no aplicativo: um para fazer compras em mercados de bairro e outro para “qualquer coisa”, literalmente. “Gosto de brincar que [o botão ‘qualquer coisa’] foi o nosso grande time de insights, nossa orelha”, diz Vilela.
A partir do botão “qualquer coisa” e de muito diálogo com os usuários, a Rappi cresceu para as atuais 14 verticais do app, como farmácia, petshop, entrega em até dez minutos e o Rappi Bank, a última delas, lançada em janeiro deste ano.

Outro concorrente no segmento de super apps é o Inter, fintech brasileira que surgiu no mesmo ano que a Rappi, em 2015, surfando a onda dos bancos digitais no Brasil.
Hoje, o super app do Inter conta com cinco verticais: banking, crédito, investimentos, seguros e shopping. “Nossa estratégia consiste em simplificar a vida das pessoas e, a partir desse princípio, oferecer em um só app uma plataforma completa de serviços, que o cliente possa usar desde a hora que acorda até hora que vai dormir”, explica Helena Caldeira, CFO do Inter.

O que é um super app
“Um super app é definido pela capacidade de envolver diversas ferramentas utilizadas no dia a dia por seus usuários”, explica Marlon Luft, gerente de marketing Latam da AppsFlyer, empresa de atribuição e mensuração de apps. “São apps que oferecem eficiência e agilidade aos seus clientes. O que faz um super app é a conveniência e a experiência do usuário.”
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Apesar de ligeiras distinções dependendo a quem se pergunte, um traço comum dos super apps nessas respostas é a recorrência. “Super app é um aplicativo que tem alta frequência, um aplicativo que os usuários abrem mais de uma vez por dia ou pelo menos uma vez por dia, na média”, diz Vilela, da Rappi. O Inter, como disse Helena, deseja que seu app seja acessado da hora em que o cliente acorda até a de dormir.
Quando fechamos o foco nos super apps do Ocidente, em especial nos da América Latina, salta à vista algumas diferenças em relação aos chineses, aqueles que lhes serviram de inspiração.
Na China, os super apps são usados para diversas finalidades. Aqui, parece que tudo passa pelo consumo ou por gastar dinheiro. Mesmo iniciativas nascidas com outros intuitos, caso das “lives” que a Rappi trouxe no início da pandemia, mudaram de perfil ao longo do tempo, como explica o próprio Vilela: “Acabamos entendendo que não fazia mais tanto sentido focar nisso [lives] como uma vertical, mas sim focar na plataforma de lives como um estímulo ao fortalecimento da vertical que temos de Rappi Lojas.”
Para o executivo da Rappi, características ambientais distintas explicam essa diferença fundamental entre os dois modelos de super apps. A maior abertura na América Latina a empresas de fora permitiu que um dos três pilares dos super apps, o social, fosse dominado antes pelas norte-americanas. Por aqui, apps como os do Facebook (Instagram, WhatsApp e Facebook) cumprem um papel que, na China, cabe aos super apps. “Aqui você já tinha redes sociais, isso não era uma dor”, explica Vilela.
Os outros dois pilares de um super app, na visão do executivo, são o bancário e o de e-commerce — não por acaso, os setores de origem de dois fortes super apps rivais da Rappi, o Inter e o Magazine Luiza, respectivamente. Na América Latina, empresas que aspiram tornar-se super apps teriam que focar nesses dois pilares remanescentes para se tornarem indispensáveis e recorrentes para seus usuários.
Um ingrediente importante para um super app crescer saudável na região é a recorrência nas compras. Por isso há tanto foco em alimentos.
A não ser que você trabalhe com comida, que tem uma frequência muito alta, é muito improvável você chegar ao status de super app. Fome, você tem três, quatro, até cinco vezes ao dia.
fernando vilela, cmo da rappi
Essa percepção ajuda a entender, também, a voracidade com que o Magazine Luiza tem comprado startups de delivery de refeições, nomes como Aiqfome, GrandChef e Plus Delivery.
A título de curiosidade, os cinco itens mais pedidos no app da Rappi no Brasil, em 2020, foram todos alimentos “in natura”: banana prata, cebola, limão taiti, cenoura e uva vitória, nesta ordem. Para Vilela, o ranking evidencia a importância da alimentação nos super apps e como velocidade é um fator determinante: “Você não pede uma banana para chegar daqui a 15 dias, você pede para chegar hoje ou amanhã.”
Os ingredientes do super app do Inter são diferentes, mas os princípios, ou pilares, não destoam muito dos rivais: dados, recorrência, pagamento integrado e crédito. “Podemos dizer sem medo de errar que não existe no Ocidente um modelo de negócio que reúna tantos requisitos para ser de fato um super app quanto o Inter”, argumenta Helena.
Apesar da quererem ser sempre lembrados e usados o maior tempo possível, o que por definição limita a divisão de espaço com outros apps similares, as duas empresas entrevistadas pelo LABS não parecem preocupadas com a concorrência.
A Rappi, afirma Vilela, está totalmente focada no cliente, embora ele reconheça que a competição por vezes influencia nas decisões da empresa: “A gente está muito mais preocupado em gerar valor para o consumidor do que se amanhã vai ter um novo competidor operando no Brasil ou não.”
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No fundo, a tranquilidade deriva da opinião, tanto da Rappi quanto do Inter, de que o mercado de super apps terá espaço para mais de um aplicativo vencedor. “Não será um ‘winner takes all’ [‘o vencedor leva tudo’], mas acho que vai ser dividido entre três, quatro players na América Latina”, diz Vilela. “Na nossa visão, este movimento [de super apps] é bastante positivo e existe espaço para todos. No final das contas, o grande beneficiado com a entrada de novos players neste mercado digital é o consumidor”, diz Helena.
Está funcionando?
Os números dos super apps latino-americanos, pelo menos aqueles tornados públicos, também parecem “super”.
No primeiro trimestre de 2021, o Inter gerou R$ 207,2 milhões em receita, um crescimento de 113% em relação ao mesmo período do ano anterior. A base de clientes que compram no shopping dentro do app chegou a 1,7 milhão; a dos que investem, a 1,5 milhão; e a dos que contratam seguros pela plataforma, a 367 mil. Ao todo, o Inter conta com 12 milhões de clientes, ou seja, apesar dos números crescentes, ainda há bastante espaço para expandir suas verticais internamente.
O grande valor de uma plataforma está no efeito de rede gerado entre todas as partes. Na plataforma do Inter, vemos uma clara interconexão e sinergia entre as diferentes avenidas. Os negócios que mais conseguimos explorar essas sinergias são crédito e shopping.
helena caldeira, cfo do inter
A Rappi está em 9 países da América Latina e, no Brasil, em mais de 100 cidades. Entre janeiro de 2018 e janeiro de 2021, o crescimento foi de 18 vezes. Do início da pandemia até agora, foi de 2,5 vezes. A empresa não abre números absolutos.
Luft, da AppsFlyer, afirma que “o que faz um super app é conveniência e experiência do usuário”. Nesse sentido, Rappi e Inter parecem cientes de que, embora conquistar novos clientes seja importante, cativar os atuais é tão ou até mais para atingirem seus objetivos. Afinal, um super app é um app de alta recorrência.
“Estamos sempre preocupados em trazer mais gente também, mas super preocupado em atender bem, com excelência, aqueles usuários que já estão no app”, diz Vilela. Ele explica que a empresa tem dois times de inovação, um disruptivo, que estuda e lança novas verticais, e outro de “inovação sustentável”, que refina a experiência das já existentes. Depois do lançamento do Rappi Bank, em janeiro, a startup não tem planos para novas verticais por ora — embora isso possa mudar, caso detectem uma oportunidade. No momento, como diz o executivo, o foco está em “entregar magia” a quem já é cliente.
No Inter, por outro lado, o cronograma tem grandes novidades para breve. No final de 2020, a fintech abriu seu shopping para não-correntistas, enviando cashback para contas bancárias de outras instituições. A área de shopping também servirá de ponta de lança para a internacionalização da operação. No momento, segundo Helena, esta iniciativa está em fase de estruturação. A parceria com a Stone e a entrada de mais vendedores na plataforma também é apontada pela executiva como outros destaques