O futuro da agricultura: como as agtechs podem transformar o setor no Brasil
Ilustração: Felipe Mayerle
Negócios

O futuro da agricultura: como as agtechs podem transformar o setor no Brasil

Em um ano, o agronegócio brasileiro viu o número de agtechs crescer 40%, evidenciando o boom do ecossistema de inovação para o setor que responde por 26,6% do PIB nacional. Apesar da relevância, os investimentos nas agtechs não são proporcionais

Read in english

O número de startups  brasileiras voltadas para o agronegócio – as agtechs – cresceu 40% em 2020 em relação ano anterior, pré-pandemia, de acordo com o relatório Radar AgTech Brasil, elaborado em parceria pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a gestora de venture capital SP Ventures e a consultoria Homo Ludens. Ao todo, o Brasil já acumula 1.574 empresas de base tecnológica focadas em criar soluções para o setor agrícola; em 2019, eram 1.125. 

A grande maioria das agtechs brasileiras foi fundada no estado de São Paulo (747), em seguida vem o Paraná (151) e Minas Gerais (143), mas a região Nordeste, por exemplo, viu seu ecossistema de agtechs quase dobrar de tamanho, passando de 37 empresas para 72. Além disso, o estudo contabilizou mais de 20 hubs de inovação agropecuária em todo o país. 

Quando se olha para a etapa da cadeia produtiva em que essas startups atuam, a maior parte delas desenvolve soluções para o que acontece depois da fazenda (718), incluindo marketplaces e logística de distribuição. As soluções para dentro da fazenda somam 657 e contemplam todo tipo de sistema de gestão de propriedade rural e agricultura de precisão; e as para antes da fazenda totalizam 199 e focam principalmente na demanda por fertilizantes e inoculantes. 

Monitoramento de lavoura. Foto: Solinftec/Divulgação

Esses são os números. Para além deles, o processo de transformação digital no campo nos fornece pistas sobre o futuro de uma atividade que já responde por 26,6% do PIB brasileiro, segundo a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil – em 2020, apesar do cenário adverso devido à pandemia, o agronegócio cresceu 24%, uma expansão recorde. Também sugere um enorme universo de oportunidades de negócio e investimentos. 

Em artigo para o Distrito AgTech Report 2021, Martiniano Lopes, sócio da KPMG, consultoria em agribusiness, afirma que o setor agrícola experimenta uma disrupção semelhante ao da mecanização da colheita na década de 1990. “Novos perfis serão necessários e a transformação do modelo mental será crítica, em que atributos como empreendedorismo, postura propositiva, digital first e open mind serão palavras de ordem. Ademais, fará parte desse modelo mental conceitos de experimentação (take risk and move fast) ou experiência (experiência do cliente, parceiro de negócio etc.). A tecnologia deixará de ser uma necessidade para ganho de produtividade e se tornará uma alavanca estratégica.”

LEIA TAMBÉM: Startup brasileira Agrosmart adquire argentina BoosterAgro para expandir na América Latina

O boom das agtechs se encontra na interseção de uma mudança global na percepção sobre como a cadeia produtiva e o consumo impactam a preservação dos recursos naturais e da necessidade de otimizar processos e custos operacionais para alcançar mais eficiência – mas de maneira sustentável. Em outras palavras, em um mundo cada vez mais populoso, com demanda crescente por alimentos, a transformação digital no setor agrícola não é apenas estratégica interessante do ponto de vista de negócio, mas urgente do ponto de vista social e ambiental. 

Investimentos 

Apesar da relevância do agronegócio brasileiro para o país e o mundo, o investimento no setor de agtechs não é proporcional. Segundo relatório da AgFunder de 2021, o Brasil não consta sequer na lista dos 15 países que mais investem em agtechs. A lista é liderada por Estados Unidos, China, Índia e Grã-Bretanha, todos com investimentos superiores a US$ 1 bilhão em 2020. O único país latino-americano que aparece entre os 15 é a Colômbia, em oitavo lugar, com investimentos na ordem de US$ 359 milhões. Segundo o Radar AgTech Brasil, o setor de agtechs no país captou US$ 70 milhões no ano passado. 

Uma série histórica feita pelo Distrito AgTech Report 2021 mostra como o investimento de risco em agtechs é inconstante – entre 2012 e 2014 houve crescimento, já em 2015 e 2016, uma queda acentuada. Os aportes voltaram a crescer a partir de 2017 (US$ 15,5 milhões) e bateram recorde em 2020 (US$ 67,3 milhões). Nota: há uma pequena diferença entre os valores apontados pelo Distrito e pelo AgFunder devido à metodologia adotada.

LEIA TAMBÉM: Fintech A de Agro estreia com R$ 1,8 bilhão em caixa para crédito para produtores rurais

Além disso, olhando os investimentos por estágios, o levantamento do Distrito mostra uma superconcentração nos early-stages, uma característica típica de ecossistemas jovens, mas em vias de crescimento. Considerando as categorias de atuação, as agtechs brasileiras mais investidas são as de agropecuária de precisão (US$ 85,6 milhões), marketplaces (US$ 27,6 milhões) e de automação e robotização (US$ 22,2 milhões). 

Transferência de tecnologia

Embora o desenvolvimento do ecossistema passe inevitavelmente por investimento financeiro, há outros incentivos importantes. O próprio relatório Radar AgTech Brasil 2020/2021, ao mapear os investimentos em agtechs brasileiras, considerou a participação das startups em rodadas de investimento, programas de incubação e de aceleração. Ao todo, foram listados 337 eventos distribuídos por 223 agtechs brasileiras.

No Brasil, a Embrapa desempenha um papel importante de incentivo a esse ecossistema como empresa pública e principal desenvolvedora de tecnologia para o agro no país, explica a diretora executiva de Inovação e Tecnologia Adriana Regina Martin

Adriana Regina Martin, diretora executiva de Inovação e Tecnologia da Embrapa. Foto: Divulgação

A empresa atua no ecossistema de inovação por meio do modelo de transferência de tecnologia, em que startups desenvolvem produtos a partir da tecnologia transferida pela Embrapa para o mercado.

“Como empresa pública, não podemos acelerar startups ou colocar um produto no mercado. Nós desenvolvemos tecnologias e transferimos essa tecnologia, esse conhecimento, para startups que levam o produto ao mercado, revertendo em valor para o produtor rural e a sociedade”, disse Adriana.

Entre as agtechs que desenvolvem tecnologias transferidas pela Embrapa estão a GIRA, do segmento de agfintech, a Blue Agro e a Agribela, de produção de insumos biológicos, a Bem Agro e a AdroitRobotics, de automação, e a Amazonica Mundi, de substitutos de proteína animal. 

De acordo com a diretora, em muitos casos investidores aportam recursos em startups para que elas desenvolvam a tecnologia transferida pela Embrapa. Além da transferência de tecnologia, a empresa também oferece mentorias com especialistas em agronegócio, tecnologia e negócios, e oportunidades para as startups apresentarem suas ideias para representantes do setor produtivo e investidores, como o programa Pontes para Inovação, que conecta agtechs a investidores e parceiros.

LEIA TAMBÉM: Com criptomoeda, AgroVantagens quer facilitar acesso a crédito e aumentar produtividade no campo

Por que investir no agro

No Brasil, a gestora de venture capital SP Ventures se dedica exclusivamente ao investimento em soluções tecnológicas para agricultura e alimentos em toda a América Latina e costuma trazer para o seu portfólio startups early-stages, do qual já fazem parte mais de 30 agtechs. O terceiro fundo de venture capital da gestora, o AG Ventures II, reuniu investidores de peso como Syngenta Venture Capital, Basf Venture Capital, FoF Capria e International Finance Corporation (IFC), braço do Banco Mundial para o setor privado, entre outros. O AG Ventures II já captou R$ 210 milhões e a meta é concluir a captação em R$ 300 milhões. A gestora espera investir em 20 agtechs com os recursos. A SP Ventures tem cerca de R$ 460 milhões sob gestão atualmente.

Em conversa com o LABS, Francisco Jardim, CEO da SP Ventures, explicou que a gestora nasceu em 2007 como uma empresa de venture capital generalista, mas logo percebeu o enorme potencial do agronegócio no Brasil e na América Latina. “Depois de uns 20 pitches de empreendedores do agro, eu pensei: ‘O único setor que me dá confiança de que a gente vai criar um ecossistema pujante, global, transformador, é o agro’. O agro brasileiro tem uma história empreendedora brilhante,” disse. 

Francisco jardim, CEO da SP Ventures. Foto: SP Ventures/Divulgação

Veja os principais trechos da entrevista:

Investimento defensivo

“A agricultura é um setor defensivo. Quando falamos isso da perspectiva de alocação de portfólio, significa que é uma estratégia que deve ir bem mesmo quando a economia vai mal. Uma característica dos investimentos defensivos é que geralmente eles são conservadores, não crescem muito, mas garantem um bom desempenho.

O agro é um investimento ultra defensivo devido à perspectiva irrefutável de aumento da demanda alimentar global, porque é denominado em dólar e porque está inserido na cadeia de suprimento global, de modo que o agro brasileiro não depende do mercado doméstico.

Francisco Jardim, CEO da SP Ventures

Revolução tecnológica no agro

“A principal variável da agricultura é o clima. Na época em que começamos a investir, já havia muitos estudos sobre o impacto das mudanças climáticas no agro. E já estava muito claro que a única forma de dar um salto de produção em condições cada vez mais adversas seria por meio da adoção brutal de tecnologia. Aqui estamos falando de adaptação, de agricultura resiliente.

Quando falamos de mitigação e do impacto da agricultura no meio ambiente, na emissão de gases do efeito estufa, na conservação de florestas, manejo de solo, entre outros, fica clara a necessidade de uma agricultura mais verde. Então, por um lado, temos a necessidade de uma agricultura mais verde, e por outro lado precisamos de uma agricultura que sobreviva e consiga alimentar o planeta nessas condições. Em outras palavras, precisamos de uma agricultura muito mais tecnificada.”

LEIA TAMBÉM: Agtech argentina ZoomAgri levanta rodada pré-Série A de US$ 3,3 milhões

Teses de investimento

“A SP Ventures olha para algumas categorias na hora de escolher agtechs para investir: em qual cadeia de produção atuam (agricultura ou pecuária); que tipo de tecnologia desenvolvem e em qual estágio da cadeia produtiva o business está (dentro, antes ou depois da fazenda). 

Hoje vemos algumas grandes teses nos nossos investimentos: e-commerce e marketplace para o agro, fintech para o agro e ferramentas de gestão para o agro. Acreditamos que estamos construindo uma nova estrutura de distribuição de serviços e produtos agrícolas, uma indústria high tech de serviços financeiros para o agro e uma nova indústria de produtos biológicos para o agro.”

Acesso à tecnologia no campo

“O grande negócio para as startups é vender com escala. No agro não é diferente. De modo geral, diria que o público alvo principal das agtechs é o grupo de produtores que está no meio da pirâmide – o médio-grande e o médio-pequeno – e precisa de um bom software de gestão, de soluções preditivas, de monitoramento de solo etc. No entanto, o poder e o processo da tecnologia é, no médio prazo, muito democratizante. A tecnologia vai se tornando mais barata e acessível. As fintechs do agro vão ter um papel fundamental para a expansão do crédito rural, que vai possibilitar aos pequenos mais acesso à tecnologia e bons produtos.”

Apostas

“Como investidora, nosso portfólio é muito diversificado. Nós estamos em todas as etapas da cadeia produtiva do agro. Temos empresa de gestão de fazenda, de SaaS para o agro, de soluções preditivas, de barter digital, de soluções biológicas, de análise de solo… Tem de tudo.”

LEIA TAMBÉM: iFood promete neutralizar emissões de carbono até 2025 e acabar com plástico no delivery

Arrependimentos

“Tem dois tipos de investimento que geram arrependimento: o muito errado que você fez, e o muito certo que você não fez. O investimento que você fez e com o qual perdeu dinheiro, não tem problema, faz parte do business. O que dói é aquele investimento que deu certo e que você deixou passar, não viu o potencial.”

Solinftec, campeã brasileira de funding, já está presente em 11 países com soluções SaaS para o agro

Campeã nacional de funding – daqueles US$ 67,3 milhões aportados no setor de agtechs no ano passado, US$ 40 milhões foram para a Série B levantada pela empresa em rodada liderada pela Unbox Capital – a Solinftec é hoje referência mundial em agricultura de precisão. Suas soluções SaaS (Software as a Service) permitem o monitoramento dos processos agrícolas em tempo real e, segundo a empresa, geram economias superiores a 30% e aumentam a eficiência do maquinário em até 50%. 

A solução de entrada da Solinftec é o monitoramento dos equipamentos para apoiar os produtores rurais na tomada de decisão. Os produtos da empresa são modulares, ou seja, os clientes podem optar pelos que melhor atendem às suas necessidades. Além disso, a agtech desenvolveu a ALICE, uma plataforma que reúne todas essas soluções, fazendo a conexão e integração das aplicações – diariamente, 35 mil equipamentos agrícolas conectados e 120 mil usuários interagem com a ALICE. 

LEIA TAMBÉM: Solfácil: fintech que quer tornar energia solar mais acessível capta US$ 30 milhões da QED Investors

Criada em 2007 por um grupo de sete engenheiros de automação cubanos que vieram ao Brasil para um programa de intercâmbio tecnológico, hoje a agtech monitora 9 milhões de hectares em 11 países da América Latina e da América do Norte e possuí escritórios no Brasil, na Colômbia e nos Estados Unidos.

A empresa começou quando o grupo liderado por Britaldo Hernandez, atual CEO, percebeu que havia pouquíssimo controle na lavoura de cana, predominante na região de Araçatuba, onde estavam baseados. Daí surgiu a primeira solução desenvolvida pela Solinftec, para padronizar o corte de cana sem intervenção humana. A agtech atualmente monitora 86% da área plantada de cana do país. 

Thiago Rodrigues, COO da Solinftec para Brasil e América Latina. Foto: Solinftec/Divulgação

Por volta de 2015, a demanda por conectividade começou a crescer e a empresa ampliou seu portfólio com soluções para monitoramento de grãos. Thiago Rodrigues, COO da Solinftec para Brasil e América Latina, explica que a adoção de tecnologia pelo agronegócio no Brasil varia conforme a cultura e o tamanho da empresa. O forte da agtech é responder rapidamente aos novos problemas identificados. 

Cada mercado tem uma dor específica. A Solinftec é reconhecida como desenvolvedora de soluções em parceria com seus clientes, para atender suas dores específicas. Este é um dos fatores principais do sucesso porque, até então, as soluções disponíveis no mercado eram mais reativas. A agricultura do futuro passa pela digitalização.

Thiago Rodrigues, COO da Solinftec para Brasil e América Latina

Rodrigues explica que no cultivo de grãos, o ponto chave é a janela” de safra – a busca pelo período ideal para iniciar um novo plantio em função do clima e das condições hídricas. Por ser um ciclo de produção curto, a eficiência operacional é fundamental. Eficiência demanda dados quer permitam ao produtor o planejamento da operação e a mitigação dos riscos relacionados a fatores externos, como o clima. A plataforma da Solinftec oferece todo esse conjunto de informações e previsões das variáveis.

“Quando passamos a monitorar grãos, percebemos que as máquinas trabalhavam pouco tempo, em função das variações climáticas, administrativas e operacionais, e entendemos que seria necessário unificar todos estes dados, em tempo real, e criar parâmetros, para orientar o produtor na tomada de decisões proativas, que evitem erros de operação.”

Já em culturas perenes, como laranja e café – produtos com alto custo de produção por hectare e grande valor agregado -, é necessário um controle de custos muito eficiente, e um dos pontos mais relevantes é a pulverização para controle de pragas, que podem comprometer toda uma cultura. “Para as culturas perenes, temos soluções de rastreabilidade, de forma a criar uma certificação de origem e um selo de qualidade, que valorizem os produtos de exportação.”