Com US$ 11 bilhões movimentados em 106 saídas, 2020 foi o melhor ano da América Latina em exits, fruto de uma particular aceleração nos pedidos de abertura de capital na brasileira B3. O ano ainda marcou US$ 4 bilhões investidos em 488 rodadas de venture capital; e, para além das cifras, viu nomes como VTEX, Loft e Kavak emergirem como unicórnios.
“De cara, quem se beneficiou e pegou um vento de cauda muito grande foi e-commerce e logística em geral – e delivery, que seria essa intersecção do e-commerce com logística,” pontua, em entrevista ao LABS, Romero Rodrigues, managing partner do Redpoint eventures, fundo investidor de nomes como Rappi, Olist, Oyster, Housi, Tembici, entre tantas outras.

Otimista com o atual momento do ecossistema brasileiro de startups, Rodrigues considera que 2020 foi um ano de quebra de paradigmas, com as aquisições de startups por companhias nacionais ganhando escala e com o fluxo de IPOs em terreno brasileiro; e ainda que considere os setores de e-commerce, saúde e fintech repletos de oportunidades em investimentos, aposta em outra tendência para os próximos anos: ESG (sigla em inglês para governança ambiental e social, e que se refere a um conjunto de critérios que investidores conscientes passaram a observar com atenção antes de tomarem suas decisões).
“Se parássemos hoje de investir [em novas startups] não haveria impacto nos próximos sete anos, haveria impacto no oitavo. (…) É uma perspectiva muito otimista,” avalia Rodrigues, que também foi um dos cofundadores, em 1998, do Buscapé, site de comparação de preços que revolucionou o mercado de e-commerce no Brasil.
Confira os principais trechos da entrevista com Rodrigues, que traça um balanço do amadurecimento do ecossistema brasileiro e compartilha suas apostas para o futuro do setor de venture capital:
LABS – Segundo relatório da LAVCA, e-commerce, delivery sob demanda e logística foram alguns dos setores mais beneficiados pelo volume de venture capital em 2020. Como isso se refletiu na carteira de investimentos da Redpoint eventures?
Rodrigues – Os setores que mais se machucaram por causa do COVID foram eventos, alguns ligados à mobilidade em um primeiro momento e turismo. De cara, quem se beneficiou e pegou um vento de cauda muito grande foi e-commerce e logística em geral – e delivery, que seria essa intersecção do e-commerce com logística. Em e-commerce, vimos Rappi, que é do nosso portfólio, se beneficiar muito, ABC da Construção, que é de material de construção para a casa – todo mundo ficou preso em casa e resolveu reformar –, Olist, que vende em marketplaces, também se beneficiou muito.
Em saúde também houve crescimento, com empresas como a Memed, de prescrição digital. A Memed está no mercado há anos – fizemos o primeiro investimento neles em 2014 –, mas existia uma barreira de adoção. Os médicos adoravam a Memed mas não faziam a prescrição lá dentro. Aí [com a pandemia] foi avassalador, todo mundo passou a usar o serviço, porque não tinha outro jeito de fazer prescrição médica.
O mesmo aconteceu com a Vittude, que é um marketplace de saúde mental. Investimos na Vittude no final de 2019 e achávamos que com o tempo ia se vencer aquele preconceito das pessoas contarem que estão fazendo terapia. A pandemia veio e derrubou esse estigma e acelerou: a Vittude cresceu 5x ano sobre ano em 2020. Esses foram os efeitos de primeira derivada.
Mas tiveram efeitos de segunda derivada: companhias que não necessariamente em 2020 mudaram radicalmente de tamanho ou aceleraram tanto, mas que estão em espaços que a partir de 2020, de 2021 em diante, vão se tornar cada vez mais sexy. Nisso, eu destaco principalmente ESG.
Todas as companhias que tem uma pegada de meio ambiente, impacto social, governança. Alguns exemplos que estão mais próximos da Redpoint eventures: a Tembici sofreu muito durante a pandemia porque obviamente ninguém saiu nas ruas, as bicicletas pararam. Aí vieram os entregadores e começaram a usar o serviço e agora tem as pessoas voltando [usar e os] entregadores. Tanto o governo quanto as pessoas falando: quero uma cidade mais inteligente. É uma companhia que hoje é duas vezes maior do que era antes da pandemia e ainda nem acabamos o [período de] isolamento.
LEIA TAMBÉM: iFood e Tembici lançam projeto de bicicletas elétricas para entregadores em São Paulo
Outra companhia nesse sentido: Repassa, que faz a “sacola do bem”. Tudo que você não quer mais no closet e seleciona para doação, ela separa o que ainda dá para vender e o que não dá, ela doa. Do que ela vende, você fica com 60% e pode pegar em crédito para outras roupas ou pode doar. Economia circular: o grande objetivo do fundador é fazer com que uma roupa seja usada mais vezes. Na média, as roupas no mundo são usadas só sete vezes. Moda é a segunda indústria que mais polui no mundo, a primeira que mais consome água, a primeira em problemas de trabalho escravo e infantil. Então, se você consegue fazer com que uma roupa seja mais usada, você impacta diretamente toda essa cadeia.
Outros exemplos são a Ribon e a Eu Reciclo, que ajuda as empresas na logística reversa das embalagens de plástico (…) Acho que ESG é uma categoria que vai pegar muito dessa segunda derivada. Vai impactar a parte de cidades inteligentes, meio ambiente e reciclagem, e-commerce propriamente dito, pela maior preocupação com o impacto do e-commerce. Isso não necessariamente se reflete ainda em grandes empresas, porque elas estão começando a ganhar atenção dos investidores e a receber investimentos agora. É um efeito cascata.
De certa forma, se falasse assim: há 5 anos a moda era fintech, há 2 anos vocês já falavam na Redpoint eventures que seria health. O que vai ser a moda ano que vem ou nesse ano? Vai ser ESG.
L: CondoConta, Holberton School e Olist foram algumas das rodadas da Redpoint eventures anunciadas neste ano. O que podemos esperar em termos de volume de investimento e setores para o ano de 2021? Que setores/startups estão no radar da Redpoint eventures?
R: Nós gostamos muito de evitar o consenso. Se você falasse, saúde mental é um bom investimento? É, sem dúvida, mas foi muito mais em 2019. As teses que não são consenso, em geral, costumam me trazer mais atenção. Investimos especificamente em companhias de e-commerce como Repassa, Olist, ABC da Construcão, num momento pré-pandemia – quando inclusive e-commerce não era mais sexy. E-commerce foi muito sexy em 2010, época que vendemos o Buscapé, e depois ficou como o “patinho feio” por muito tempo. Então se você perguntar: você não investiria em e-commerce? Investiria, tanto que a gente investiu na Olist agora. E-commerce é um mercado gigantesco: no ano passado, cresceu 41% [dados Ebit]. Em 2019 tinha crescido 16%. Fomos de R$ 62 bilhões para R$ 87 bilhões em vendas, um crescimento super expressivo. Mas quando você pega o quanto isso representa do varejo como um todo, ainda é muito pequeno. Por um lado, são 80 milhões de consumidores, sim, são 80 milhões de 210 milhões de brasileiros, mas esses 80 milhões de consumidores ainda fazem um bom percentual das suas compras offline. Então tem muito potencial, e tem muita ineficiência. Onde tem ineficiência, tem oportunidade.
Ou seja, tem oportunidade em e-commerce, saúde? Tem, apesar de estar todo mundo correndo atrás dessas bolas, tem. E tem muita oportunidade surgindo em outros setores. A CondoConta é um exemplo muito legal porque falamos de banco para PME, para PF, mas condomínio é único, é um CNPJ que não some, é uma pessoa jurídica que transaciona muito dinheiro, e tem muitas dores. Isso é nicho? Parece nicho, mas quando você pensa no número de condomínios que tem no Brasil vezes o volume financeiro que existe e ninguém está atendendo, é um mercado gigantesco que estava sem ser descoberto.
Na prática, pelo menos na nossa filosofia na Redpoint eventures [o que queremos saber é]: tem fundadores muito bons resolvendo um problema importante de um mercado grande? Não me preocupo qual é o setor. E se for um setor que não é sexy, melhor ainda, porque vai ter menos disputa pelo investimento.
Mercados nichados
R: Onde tem dor, tem muita ineficiência. E onde tem ineficiência, só se consegue resolver com tecnologia. Em relação ao nicho, existe, por exemplo, o Buscapé: quando a gente começou era nicho. Comércio eletrônico, comparação de preços. Realmente, se você olhar como comparação de preços, é nicho. Mas comparação de preço era como vendíamos para o consumidor entender o que fazíamos. Se eu olhar como busca de produtos, é 35% da receita do Google: mercado gigantesco.
Existem vários nichos que na verdade estão ainda para serem descobertos, ou eles são nichos hoje mas, em dez anos, quando a empresa estiver grande, serão gigantescos, porque essa empresa vai ajudar a criar esse mercado. (…) Tem que saber jogar onde a bola vai estar, e não onde ela está agora.
L: Como avalia a evolução do ecossistema de venture capital no Brasil e na América Latina nos últimos anos? Quais desafios o setor ainda enfrenta?
R: Não só fico muito feliz com a evolução, como também é muito fácil comparar este segundo ciclo de 2010 até agora; com o primeiro, de 2000 a 2009. No primeiro, tivemos o boom da internet, então por 6 meses, no Brasil, houve muito investimento: Globo.com recebeu investimento da Telecom Italia, IPO da Starmidia, Starmidia comprando Cadê, valuations tremendos, Submarino, Terra comprou Lycos. E acabou muito rápido: começou em setembro de 99 e acabou em abril de 2000, quando a bolha estourou. E aí veio um inverno nuclear que durou até 2009. A primeira notícia boa depois daquele burburinho de 2000 de empresas fechando, startups falindo foi em 2009. Por isso até que o anúncio do Buscapé chamou tanta atenção, porque fazia muito tempo que ninguém escutava nada sobre internet. Então teve a saída do Buscapé, que foi o primeiro a fechar aquele ciclo, e vieram outros depois: Pagseguro; Netshoes; fora do Brasil, na Argentina, Mercado Libre (um ano antes do Buscapé, com IPO na Nasdaq). Nesse primeiro ciclo se “plantou muitas sementes” e quem sobreviveu colheu os frutos dez anos depois.
LEIA TAMBÉM: Investidores de risco despejaram US$ 4 bilhões em startups da América Latina em 2020
Em 2010, começa um novo ciclo, motivado pelas primeiras saídas – quem investiu no começo do Buscapé fez 300 vezes o valor investido. A segunda safra; Gympass, Creditas, Nubank, Quinto Andar e todas essas outras companhias, que, não por acaso, tem suas fundações em 2010/2011. Quase 10 anos depois elas estão aí já em status de unicórnio, sendo adquiridas, como a RD Station pela TOTVS, por exemplo. A grande diferença é que nós só plantamos no começo do ciclo anterior. Já neste ciclo, não plantamos apenas em 2010, mas em todos os anos seguintes: e mais do que isso, “regamos” durante todo o tempo, com as diferentes rodadas de VC.
E agora, o que foi adicionado em 2020: cada vez mais rotas de saída. O que 2020 trouxe que não existia? Tinha aquisição por estratégico internacional: a Naspers adquirindo Buscapé, DiDi adquirindo 99. Mas não tinha aquisição de empresa nacional pagando bilhões por outra empresa nacional. Nos bastidores se falava: se você vender para um estratégico nacional, ele vai pagar pouco, e se ele for listado vai pagar menos ainda porque o múltiplo dele na bolsa é baixo. Bom, tivemos RD sendo disputada por TOTVS e Localweb – esse paradigma caiu. Ah, mas IPO de empresa pequena, na Bovespa de tecnologia, nunca vai funcionar. Tivemos Méliuz, Enjoei, Mosaico, e vamos ter outras agora: esse paradigma caiu. Somado ao IPO lá fora, que é mais difícil, e que companhias maiores fizeram, como Stone, XP, PagSeguro; você tem IPO na Bovespa, e além de estratégico internacional você tem estratégicos nacionais pagando bem pela companhia. Por último, você soma isso às SPACs que também estão vindo para ajudar nessa liquidez. Então quer dizer, o principal desse jogo, que é a liquidez lá em cima – quando você devolve dinheiro para o investidor investir de novo, libera empreendedores para criarem outros negócios –, está acontecendo como nunca antes. Diria que [2020] foi o ano de fechar o ciclo do ponto de vista de construção do ecossistema.
Se parássemos hoje de investir [em novas startups] não haveria impacto nos próximos 7 anos, haveria impacto no oitavo. Se continuássemos apenas a regar [rodadas subsequentes] as que já plantamos, teríamos 7 anos de pipe de empresas monstruosas sendo construídas. É uma perspectiva muito otimista.
LEIA TAMBÉM: Méliuz faz terceira aquisição do ano e compra startup Promobit por R$ 13 milhões
L: Como a sua experiência com o Buscapé ajudou a construir a expertise da Redpoint eventures?
R: Ser investidor e ser empreendedor são coisas bem diferentes, que requerem soft skills diferentes. De cara, você tem que saber que você não é o holofote, tem que ter muita humildade intelectual. Não é porque uma coisa deu muito certo há 10 anos em e-commerce ou qualquer outro setor, que vai dar certo agora, o mundo é dinâmico. Eu falo que um bom investidor consegue guiar um excelente empreendedor só com perguntas. Por isso é muito bom um empreendedor escutar, ser coachable. A experiência anterior traz uma conexão – o empreendedor olha o mercado e sabe que vai apanhar muito. De certa forma, quando ele vê do outro lado um cara que foi empreendedor (…) essa identificação ajuda muito.
A segunda coisa: track record e experiência. Às vezes são coisas pequenas, mas tem muito investidor que é excelente, mas nunca passou por desafios como, por exemplo, demissão em massa. Alguém que já passou pode dar uma ou outra dica que sai um pouco dos livros de academia e traz mais humanismo. Quando você soma essas coisas pequenas ao longo de sete anos de convívio, causa um impacto grande. Uma das checagens que eu faço é: se ficarmos [empreendedor e investidor] presos no aeroporto, juntos pelas próximas sete horas: isso é uma boa ou uma má notícia? Se for má, não aceite o cheque, porque não são sete horas, são sete anos. Esse é um casamento difícil de se divorciar.