Pedimos carros e comida apertando um botão no celular e estamos nos preparando para mandar pessoas a Marte. Apesar desses e de outros avanços notáveis, em alguns departamentos a humanidade ainda parece estar na Idade da Pedra. Por exemplo, na igualdade de oportunidades no mercado de trabalho. Demorou, mas enfim as empresas começaram a reconhecer e a valorizar a diversidade em seus quadros de funcionários — e um grupo de startups de recrutamento está ajudando as que tiveram essa epifania tardia a recuperar o tempo perdido.
Em julho, a Gupy, empresa de tecnologia para recursos humanos com 20 milhões de candidatos cadastrados, lançou uma solução de diversidade. Ela ajuda as empresas a tornar os processos de contratação mais justos, diversos e inclusivos. É uma solução de ponta a ponta para aumentar as oportunidades de públicos minorizados.
Em uma ponta, a Gupy incluiu campos no cadastro para que os candidatos se identifiquem como minorizados. Na outra, destinada aos recrutadores, a empresa oferece um vasto leque de recursos: “Ferramentas para analisar, identificar esses grupos, selecionar pessoas e, no fim, uma série de dashboards de análise para que eles entendam onde esse funil de recrutamento está acontecendo: de quais canais estou trazendo mais mulheres? Será que estou perdendo pessoas negras em alguma etapa?”, explica Guilherme Dias, co-fundador e CMPO da Gupy.

Os primeiros resultados da iniciativa já são percebidos. Até o final de agosto, entre as quase 100 empresas que aderiram ao pacote de diversidade houve um aumento de 55% na contratação de pessoas minorizadas. Naquelas que aderiram antes, na fase piloto, o percentual é ainda maior, de 72%.
No volume total de contratações, a Gupy registrou um aumento de 127,8% de mulheres, pessoas não-brancas, LGBTQIA+ e pessoas com deficiência (PcD) em agosto e setembro na comparação com o mesmo período de 2020.
Os aumentos relativos expressivos são uma ótima notícia e confirmam a tendência — todas as fontes com quem o LABS conversou foram unânimes nesse sentido, de que há uma tendência —, porém escancaram o histórico pouco diverso com que as empresas agora se confrontam, especialmente nos níveis hierárquicos mais elevados e com certas demografias.
Nos números globais da Gupy, por exemplo, o recorte que teve o maior crescimento em contratações foi o de pessoas negras em cargos operacionais, de 48,79% na comparação de agosto/setembro com junho/julho. Para cargos de liderança, porém, apenas 3,19% do total das contratações foi de pessoas negras, e as LGBTQIA+ não ficaram muito à frente (3,87%).
Levantamento feito entre janeiro e maio pela Revelo, startup especializada no recrutamento para áreas de tecnologia, descobriu que apenas 1,6% dos convites para processos seletivos no período foram enviados a pessoas com deficiência (PcD), grupo minorizado que conta com uma reserva legal de vagas em empresas com mais de 100 funcionários, instituída pela lei 8.213/1991.
Guilherme, da Gupy, reconhece que ainda há um longo caminho a percorrer, mas mostra-se otimista. “Eu realmente acredito que as empresas estão entendendo que é uma responsabilidade”, diz. Tal otimismo deriva de uma conjunção de fatores, como a pressão do público, cada vez mais atento às engrenagens das empresas que consome e demandando que elas reflitam seus valores e noções de justiça, e às vantagens que as próprias empresas descobrem quando abraçam a inclusão.
Não é só marketing, mas se fosse não seria problema
Em 1998, Andrea Schwarz se viu numa cadeira de rodas. Pouco tempo depois, ela e Jaques Haber, seu namorado, criaram um guia de acessibilidade na cidade de São Paulo. Foi o embrião da iigual, consultoria especializada na inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
“Tem muita gente que fala: ‘ah, estou em busca do meu propósito’”, disse Jaques em entrevista ao LABS. “No nosso caso foi o inverso, primeiro a gente encontrou o propósito e depois fomos pensar no que faríamos.” Dessa reflexão surgiu a ideia de trabalhar a inclusão de PcDs no mercado de trabalho.

Com a experiência de duas décadas, começando em um tempo em que as expectativas e até o termo eram outros — “integração”, ou seja, a PcD é quem deveria se adaptar à sociedade —, Jaques percebe uma mudança de postura em curso: “As empresas estão mais interessadas no tema e a liderança já incluiu isso no discurso também. Hoje, todas elas de alguma forma se preocupam pelo menos em dizer que são favoráveis a um ambiente inclusivo”.
A iigual já ajudou 20 mil pessoas a conseguirem um emprego formal em mais de 1 mil empresas. Embora reconheça a mudança de postura do mercado em relação à contratação de públicos minorizados, Jaques destaca que ainda existe uma distância entre discurso e prática, e que a prática do “diversity washing”, uma espécie de verniz de diversidade, ou seja, de fazer só pelas aparências, ainda é comum.
Para ele, as iniciativas de inclusão ainda são feitas mais como resposta a demandas sociais do que pelo valor estratégico que agregam ao negócio. O que não é ruim, diz. Estamos, na sua análise, em um momento de transição.
É muito positivo. As empresas querem ser mais inclusivas, mas ainda não sabem exatamente como fazer. Porque não é apertar um botão e do dia para a noite você vai corrigir todo um desequilíbrio social de séculos de menos oportunidades. [Mas] É um momento bom, porque o assunto está em alta.
Jaques Haber, cofundador da iigual
A justificativa dos gestores para olharem com mais atenção à inclusão é embasada por pesquisas e estudos elaborados por consultorias como Deloitte e McKinsey, por exemplo, que comprovam os benefícios da diversidade no ambiente corporativo. Para Guilherme, essas pesquisas mostram “como ambientes mais diversos impactam a inovação, impactam a construção de produtos, em serviços e processos melhores”. “Por ter diferentes formas de pensar, de background, de histórias ali que estão construindo essas soluções”, complementa.
O entendimento do mercado hoje é o de que times mais diversos são mais criativos. Se você junta pessoas muito parecidas, provavelmente vai encontrar soluções muito parecidas. Quando você traz pessoas diversas, você traz outras realidades, outras experiências. Isso faz o time ser mais flexível, ser mais resiliente, então tem esse impacto em times sendo mais produtivos.
Juliana Carneiro, CMO da Revelo
Uma das iniciativas de inclusão da Revelo é oferecer gratuitamente ao público transgênero o Revelo Up, programa que financia cursos com o intuito de capacitar e recolocar rapidamente profissionais no mercado. A empresa firmou uma parceria com a Casa Florescer, centro que acolhe travestis e mulheres transexuais no bairro do Bom Retiro, em São Paulo (SP).
“A demanda por profissionais de tecnologia é super alta, a gente — Brasil — não consegue suprir ela e, ao mesmo tempo, você tem pessoas ali que estão à mercê do desemprego por causas sistêmicas de baixa escolaridade, baixo apoio familiar…”, explica Juliana. “Então a gente resolveu juntar esses dois pontos.”

A Gupy, que tem entre seus quatro co-fundadores duas mulheres — uma delas negra — e duas pessoas LGBTQIA+, também detectou a lacuna na formação. Em outubro, adquiriu por valor não revelado a Niduu, uma startup de educação corporativa. Na época, a co-fundadora e CEO Mariana Dias justificou o negócio como uma forma de propiciar que “as empresas desenvolvam seus colaboradores na velocidade e qualidade que o negócio e as pessoas precisam”.
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Existem muitos outros desafios na promoção da diversidade dentro das empresas, como as oportunidades de crescimento na carreira e eliminar as diferenças salariais por critérios discriminatórios. Pesquisa da Revelo de 2020, feita com 27 mil profissionais, descobriu que enquanto a média salarial de desenvolvedores está entre R$ 6,4 e R$ 9,7 mil, apenas 30,5% das profissionais recebem salários nesta faixa. E apenas 9,2% das mulheres têm carreira longa, com mais de sete anos de atuação.
De qualquer maneira, como argumenta Jaques, há um interesse crescente pela diversidade no ambiente profissional que, genuíno ou motivado por pressão externa, tem promovido mudanças reais. Em outras palavras, dizem as startups de recrutamento, não é só marketing – as metas ousadas e de curto prazo seriam sinais de um comprometimento verdadeiro.
Eu custo a acreditar que seja só marketing. Seria mais fácil — se fosse só para fazer publicidade — colocar desafios menores, mas vejo que quem está comprando essa responsabilidade está saindo da zona de conforto, está colocando metas desafiadores. Acho que é porque querem fazer a diferença.
Guilherme Dias, co-fundador e CMPO da Gupy
“Não posso dizer por todas as empresas”, diz Juliana, da Revelo, “mas tenho certeza que tem muitas [empresas] sim que levantam essa bandeira de uma forma autêntica.”