À medida que a economia digital vai ocupando mais espaço na vida dos consumidores conectados, é natural que até mesmo aqueles setores que não pareciam ameaçar sair do modelo tradicional de compra, também sejam impactados pela chamada transformação digital. É o caso dos supermercados.
Em 2017, a Nielsen e a FMI (The Food Industry Association) previram que as vendas de supermercados online chegariam a US$ 100 bilhões até 2025. Já em 2018, as duas entidades de pesquisa atualizaram seus números, apontando que o marco deve ser alcançado bem mais cedo do que imaginavam: esse tipo de compra online deve chegar a US$ 100 bilhões ainda entre 2022 e 2024.
Mas mesmo em economias mais maduras como a dos Estados Unidos, o setor tem um longo caminho pela frente. Com a indústria geral de supermercados correspondendo a uma fatia de US$ 632 bilhões em 2018, a adoção do hábito ainda é baixa: cerca de 10% dos consumidores norte-americanos dizem fazer esse tipo de compras no meio digital regularmente. Mas essa fatia está crescendo: em 2018, o valor da vertical de supermercados online foi para US$ 26 bilhões – mais do que o dobro, se comparado com o dado de 2016: US$ 12 bilhões. Os dados são do Online Grocery Shopping Report 2020, do Business Insider.
Dentre os responsáveis por esse acelerado crescimento aparecem algumas figurinhas carimbadas. A Amazon vem apostando em sua expertise de e-commerce e atendimento para oferecer uma variedade de serviços de supermercado online. Já o Walmart, se beneficia da sua forte presença física, somado a esforços como o uso de inteligência artificial – enquanto outros players locais, como Kroger e Aldi, vêm trabalhando com terceiros, como a Instacart, para fornecer seus serviços.
No Brasil, ainda que em menor escala, o cenário é parecido. Um levantamento encomendado pela Associação Paulista de Supermercados com 1200 pessoas em 2019, aponta que 15% dos consumidores afirmaram comprar em supermercados online. Ainda que não denote um comportamento habitual, o dado confirma o potencial do setor: “Foi a primeira vez que foi possível medir quem realmente está comprando em supermercados online,” disse ao LABS Thiago Berka, economista e Coordernador do Escritório de Gestão, Processos e Projetos da Associação.
Os critérios de escolha por parte do consumidor também reiteram a força do setor no Brasil: junto com a presença de seção de saudáveis, a opção de delivery aparece como fator decisivo na escolha do supermercado.
Em terra de duopólio, quem tem dados é rei
“Os dados dos supermercados estão ficando com Rappi e iFood. Quem é esse consumidor, o que compra, de onde compra, ticket médio,” explica o especialista.
Dados são minas de ouro: permitem promoções customizadas, ofertas direcionadas e uma série de análises big data para alavancar ainda mais as vendas
Thiago Berka, economista e Coordernador do Escritório de Gestão, Processos e Projetos da Associação Paulista de Supermercados
Os dois maiores players do setor no Brasil, tem, de fato, alavancado suas operações graças às compras de supermercados. Lançado em junho de 2019, o iFood Mercado – nome da plataforma do app de delivery – passou de 100 estabelecimentos parceiros para mais de 400, e de 20 cidades para mais de 80. Atualmente, o serviço vem crescendo 100% ao mês. “O serviço está disponível para compras express, onde é possível receber até 16 itens do dia a dia com entrega agendada para o horário mais conveniente e pagamento realizado via app do iFood. As entregas são feitas por entregadores parceiros e toda a logística é gerenciada pelo próprio iFood e disponível no app para o acompanhamento real time do usuário,” informou a empresa em comunicado ao LABS.
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E os planos para o primeiro semestre de 2020 seguem em ritmo acelerado: o iFood pretende ampliar a presença para cerca de mil estabelecimentos. “O objetivo é que a plataforma agregue grandes players do mercado e estabelecimentos locais, conquistando uma evolução sustentável para o negócio”.
A entrada do iFood nesse segmento faz parte da estratégia da foodtech líder na América Latina em investir cada vez mais em uma cadeia de alimentação mais ampla e que vai além do delivery de comida
iFood, em comunicado ao LABS
Segundo informações do InfoMoney, a Rappi opera com dois tipos de contrato: um que disponibiliza ao varejista o acesso aos dados de compra dos consumidores e outro em que isso não é permitido. O superapp colombiano tem contrato com a rede francesa líder no setor brasileiro de supermercados, Carrefour, há cerca de um ano. “Tenho acesso a quem comprou e o que comprou,” disse Paula Cardoso, presidente do Carrefour e-Business, ao veículo.
Para Berka, a estratégia adotada por iFood e Rappi, é de fato, a que mais vai crescer, pois o ganho em escala dos varejistas, principalmentes dos pequenos e médios, é imediato. “É a rapidez de já ter seu e-commerce ali disponível.” Outros players como SiteMercado e Supermercado Now, também são muito vantajosos para esses pequenos e médios supermercados, pois desoneram suas operações, uma vez que esses marketplaces absorvem o gasto do e-commerce. “[o setor de supermercados] É o último setor a entrar na revolução 4.0. Então [os players] vão tatear mais com parcerias.”
De olho nesse movimento, a B2W, gigante do varejo brasileiro, anunciou em janeiro a compra total das ações da plataforma Supermercado Now, que conta hoje com mais de 30 redes de supermercado parceiras e clientes com perfil de compra de alta recorrência. “A aquisição está em linha com a estratégia da B2W de melhor atender o cliente, oferecendo: Tudo. A toda Hora. Em qualquer lugar. Por meio da plataforma, o cliente escolhe o supermercado de preferência e pode criar um carrinho de compras totalmente personalizável. O cliente pode também optar por retirar os itens na loja ou receber no endereço desejado em até 2 horas ou em um horário agendado,” informou a varejista em nota.

Mas nem todos estão de acordo quanto à melhor estratégia para aproveitar o potencial desse mercado. Com o objetivo de integrar a rica base dos seus programas de fidelidade (20 milhões de consumidores cadastrados), com a base de dados do James Delivery, além de complementar suas operações de delivery com uma solução last mile – de entregas em até uma hora – o gigante que controla as redes Extra e Pão de Açúcar, GPA, adquiriu a startup curitibana no final de 2018. Dois meses depois de escalar a operação para São Paulo, o app James Delivery já correspondia a 40% dos pedidos online das 14 lojas atendidas na cidade até então.
Em entrevista ao LABS, o co-fundador do aplicativo, Lucas Ceschin, conta que foram dois os principais fatores que chamaram a atenção do gigante do varejo para a aquisição: uma empresa que já fazia delivery há algum tempo e o time engajado, com importante know-how de tecnologia. Já para o James, a aquisição foi encarada como oportunidade de estar mais próximo do cliente.
Varejo é olho no olho: é a forma de contato com o cliente. O público do GPA quer uma comunicação direta, e esse é o maior ativo que o James tem, controle total do cliente final.
Lucas Ceschin, cofundador do aplicativo de entregas James Delivery
“Em 2019, o James cresceu 15 vezes de forma geral e 50 vezes no ramo de supermercados – alavancado pelo GPA,” conta. Sem abrir valores de investimento, o executivo revela que, em 2020, o ramo de supermercados segue sendo a vertical de maior crescimento para a startup. “A missão do James é ser o melhor e o mais rápido pra poucos itens. Com o cruzamento de dados do James e do GPA conseguimos transformar nossa operação na melhor experiência de serviço e produto, entendendo o comportamento desse consumidor de ponta a ponta”.
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Na contramão da estratégia adotada por iFood e Rappi, o James, com a aquisição pelo grupo varejista, acredita ter outra carta na manga. “Com o GPA temos acesso ao estoque, à operação, a toda a cadeia. E esse controle nos dá diferencial competitivo frente aos outros players.” Para Lucas, a soma de uma empresa que nasceu 100% digital com um tradicional líder do mercado gera uma combinação única.
“O setor de supermercados é o que tem o maior potencial, inclusive maior do que o de restaurantes. A entrada de novos players confirma isso.”
Os desafios na fronteira
Para que esses apps consigam cruzar a próxima fronteira do e-commerce, no entanto, alguns obstáculos ainda impedem a maior adoção do hábito. Para o co-fundador do James, as maiores barreiras são a logística e os produtos frescos. “Entre os 85% dos consumidores que responderam o levantamento dizendo que não compram online: 51% admitiram que o frete é o obstáculo. O consumidor brasileiro, por ser mais sensível a preço, vai pensar duas vezes, e às vezes até desistir se tiver que pagar um frete de R$11, R$15 reais, isso pesa”, confirma o especialista da Associação Paulista de Supermercados.
Já quanto aos produtos frescos, menos de 20% dos respondentes da pesquisa encomendada pela Associação afirmaram comprar produtos perecíveis, como açougue, hortifruti, padaria, enquanto produtos de limpeza (87%) e bebidas são os campeões de compra.
Na disputa entre apps com melhores parcerias e redes com operações mais robustas, buscando solucionar fatores culturais, de custo, além do last mile, que ainda é barreira para todo o e-commerce – quem sai ganhando é o cliente. “A desconfiança do consumidor vem diminuindo,” complementa Berka.