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Sociedade

2020 será o ano que voltaremos a enxergar a América Latina?

É preciso ir além da teoria da exceção, que só elege o pior para as manchetes, e dos arquétipos e generalizações. Menos futurologia rasa, por favor

“Estou cego”, assim começa o livro Ensaio sobre a Cegueira do escritor português José Saramago. Nele, um motorista está tranquilamente esperando o semáforo abrir numa rua qualquer, quando, o que descreve como “mar de leite”, toma sua vista, tapando seus olhos em uma espécie de cegueira luminosa que, aos poucos, contagia o resto dos personagens do livro.

Eu tenho um arquivo mental dos primeiros parágrafos de livros que gosto. Meu anseio é saber como escritores prendem a atenção do leitor. Sei de cor meus preferidos. Vinha pensando nos dois primeiros parágrafos do livro do Saramago, quando comecei a escrever este artigo.

O ano de 2019 na América Latina foi, para mim, marcado por uma espécie de cegueira emocional. Votamos com ódio, fomos às ruas com rancor, cometemos fratricídio retórico ao não dialogar. Fez-se política com o fígado e economia, com ressentimento. Todos esses sentimentos, considero, causaram cegueira, que acredito ser temporária. Por essa razão, me lembrei do livro do Saramago. “Se podes olhar, vê”, diz o livro.

Na história, apenas uma mulher consegue enxergar e ela não entende se isso é uma benção ou uma maldição, pois vê cenas bonitas e outras escatológicas. Muitos críticos literários apontam para duas grandes parábolas no livro: a inutilidade de ver se outros não enxergam e a “responsabilidade de ter olhos quando outros perderam”. Enxergar, para mim, será a grande variável de 2020.

Os (falsos) arquétipos da América Latina…

Na primeira coluna para o LABS, eu falei como costumamos pensar na nossa região como uma espécie de Macondo, a cidade absurda e fictícia do realismo fantástico de Gabriel García Márquez. Nela, eu falei sobre uma experiência pessoal na Argentina, em 2010, quando assisti ao funeral do ex-presidente Néstor Kirchner

Por mais que as situações na região às vezes pareçam absurdas, muitas vezes a América Latina é apenas estigmatizada por arquétipos marcados, como, por exemplo, o do Zé Carioca, que sobrevive na base da malandragem, ou o de elite descomprometida com ideais nacionais que quer morar em Miami. Há ainda os personagens do ‘ridículo tirano’, como na canção Podres Poderes de Caetano Veloso, e de narcotraficantes, que a indústria cultural norte-americana adora perpetuar. Aqui vale um adendo: o mais reconhecido ator argentino, Ricardo Darín, percebendo essa tendência, tem uma postura que eu acho exemplar ao se negar a interpretar personagens em Hollywood que fortaleçam este arquétipo latino.

… e o que somos, na verdade

Mas a realidade é que, observando a história de mais de quinhentos anos de América Latina, encontramos algo que deixamos passar batido no contexto mundial. É certo que passamos por processos violentos e ainda temos “ridículos tiranos” por aí. No entanto, a América Latina é incrivelmente resiliente.

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Um continente que consegue atravessar longo períodos sem guerras (o último grande conflito mundial do qual participamos foi há 150 anos, a Guerra do Paraguai), com democracias que estão apenas completando 40 anos, e países que sustentam há décadas certas políticas de Estado, mesmo com o entra e sai de governantes.

Isso acontece, parcialmente, porque somos um continente que se rege pelo princípio de autodeterminação dos povos, de não interferência nos vizinhos. Algum governo aqui e acolá vocifera, por vezes, opiniões sobre outros países. No entanto, diplomaticamente, não costumamos intervir. Quantos continentes podem dizer o mesmo?

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Frequentemente, atravessamos crises econômicas. Mas, também por diversas vezes, nos reerguemos. 

Séculos atrás, o Haiti era um dos países mais ricos do mundo graças a sua produção de açúcar, a commodity mais valiosa da época. Não prosperou, porque, enquanto colônia, foi saqueado. Nos anos 1920, antes da grande depressão, a Argentina era riquíssima. Tanto que no mundo existia a expressão “tão rico quanto um argentino”. O país sucumbiu às mesmas mazelas econômicas da época em todo o planeta. Jamais retornou a esses tempos de glória, mas não é, nem de longe, o desastre econômico que os jornais pintam. 

Basta puxar os números da desigualdade social no país, que é bem menor os do Brasil, por exemplo. O abismo social, que é uma praga no Brasil, não é essa falésia vergonhosa lá. 

Entendam que não estou dizendo que a Argentina é o jardim de Éden, apenas que a distribuição de renda é melhor do que em outros vizinhos ou mesmo do que as manchetes dos jornais estampam.

Nesse contexto, somos sempre culpados por nossas ingerências e corrupção, mas as manchetes dos jornais excluem, constantemente, as crises que atravessamos provocadas por moléstias mundiais, e como sobrevivemos bravamente a esses nocautes.

A teoria da exceção nos relatos sobre a América Latina

A prestigiosa publicação The Economist disse que, em 2020, a América Latina continuará “desgovernada”. No entanto, ressaltou algo essencial: “A América Latina assistiu a uma explosão de eleições até novembro de 2019, foram 15 eleições presidenciais em dois anos. Em 2020, um período mais calmo se aproxima, a Venezuela será a exceção”, diz a publicação.

Pessoalmente, sou contra a futurologia no jornalismo. É óbvio que não se pode excluir a opinião de uma publicação como a The Economist, no entanto já vi tantas previsões falharem que me tornei cética. A verdade é que a “desgovernada” América Latina continua democrática, muito obrigada.

Essa, aliás, é uma das teorias que mais me intriga no jornalismo pressupõe uma incrível anomalia no ofício: a arte da exceção. Ninguém lerá jamais uma manchete que diga “mais um dia de sol, calma e bons ventos em Brasília, Buenos Aires ou Tóquio”. A ênfase estará sempre na exceção.

Um crime hediondo, por exemplo, é uma exceção em uma sociedade onde a maioria sobrevive sem ser esquartejado por um assassino em série. Mas, a menção do crime, suas nuances de terror, e as manchetes que se seguem, darão a impressão de que vivemos em perigo, numa sociedade violenta, mesmo que em um dado país os números de violência não justifiquem o medo. Essa sensação de loteria da desgraça permeia o jornalismo, do fato mais mundano às previsões econômicas. Isso não quer dizer que devemos desconsiderar previsões feitas por economistas nos jornais e, sim, tomá-las com pinças, como tendências e não como vidência.

O caso da Bolívia

Outro fator importante, por exemplo, é que nem sempre distúrbios políticos acontecem por mazelas econômicas – que fique claro que não estou propondo uma defesa do caso da Bolívia e, principalmente, de Evo Morales, que cometeu, ao que tudo indica, uma série de erros políticos. Mas, olhando os índices econômicos daquele país, as coisas não andam tão mal assim.

A Bolívia, a mesma que vemos degringolar nas manchetes, fechará o ano com o maior crescimento no PIB na região: 4%, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em artigo da BBC (que, vejam só, foge à regra jornalística e dá boas notícias), esse fato é magistralmente destrinchado. 

Desde 2006, quando Evo assumiu, o PIB boliviano cresce a uma média anual 5 pontos porcentuais, superando o crescimento econômico de muitos países da região. Enquanto a crise das commodities acertou em cheio o Brasil em 2014, na Bolívia, onde as commodities foram usadas para subsidiar programas sociais, ela passou batida, graças à política de transferência de renda e política fiscal expansionista, que diminuiu a miséria no país quase pela metade. “O porcentual da população abaixo da linha de pobreza na Bolívia caiu de 63% para 35% entre 2005 e 2018, de acordo com o Banco Mundial”, diz o artigo.

Evo também conseguiu controlar a inflação, mas nem tudo são “flores”, claro. O déficit fiscal é grande, mais de 8%. No entanto, o que levou a população às ruas dificilmente seria a consciência de um alto déficit fiscal e sim, supõe-se, a insistência de Morales em permanecer no poder.

A futurologia dos números e a invisibilidade social

Para aqueles que acreditam em previsões econômicas (estou entre as céticas, depois que vi o Chile cair no caos, nada mais me diz que posso prever algo), existem instituições muito sérias como, por exemplo, a Comissão Econômica a América Latina e o Caribe (Cepal).

Segundo uma publicação de novembro da Cepal, o ano de 2019 foi marcado por uma desaceleração econômica generalizada, fechando sete anos de permanência da América Latina em um baixo platô de crescimento – que por sua vez se traduziu em uma deterioração da renda per capita. No período, o PIB per capita da região caiu, em média, 0.8 ponto porcentual ao ano.

Para a 2020, a previsão da entidade para a América Latina é de baixo crescimento novamente, com uma expansão estimada do PIB de 1,4%. 

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Para a entidade, o crescimento pífio e as retrações acontecem devido a problemas endógenos domésticos de cada país da região, e devido à queda no comércio mundial. O alerta maior, no entanto, é o de que “a região tem subestimado a desigualdade social”.

“É necessário crescer para igualar e igualar para crescer. A superação da pobreza na região não exige apenas o crescimento econômico; isso deve ser acompanhado por políticas redistributivas e políticas fiscais ativas”, afirmou a Cepal.

Lendo isso, me vem à cabeça a expressão muito usada “invisibilidade social”, que me remete à cegueria do livro de Saramago, e a um artigo que li no jornal O Estado de S.Paulo há mais de uma década, e que nunca mais encontrei. 

Nele, o jornalista analisava como um programa social X, que outorgava microcréditos e uma bolsa por família, fazia girar a economia de um pequeno vilarejo se não me engano no Nordeste do Brasil. Nele, o jornalista mostrar a importância que R$ 400 tinham para uma família, e como isso impactava toda a economia local em cadeia.