Uma mulher acende uma vela em uma vigília em Bogotá. Dezenas de mortes durante as manifestações, que começaram em abril, foram reportadas. Setor de Chapinero Bogotá, Colômbia, 4 de maio, 2021. Foto: Sebastian Delgado C/Shutterstock.com
Sociedade

A esperada crise colombiana (ou como empurrar os problemas com a barriga)

Os protestos das últimas semanas não são consequência apenas de aumento de impostos ou falta de vacina – questões mais imediatas. São resultado de décadas de problemas mal resolvidos e um alerta para a América Latina

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Ao longo das últimas sete décadas, a Colômbia passou pela mais prolongada e sanguinária guerra interna da América do Sul, com grupos guerrilheiros de esquerda controlando mais de um terço do país (basicamente zonas de selva) e grupos paramilitares de direita assolando outras regiões (áreas menores comparadas às de seus rivais marxistas). Todas essas áreas ainda estão cravejadas de minas explosivas deixadas por esses grupos. De quebra, durante boa parte dessas décadas, organizações do narcotráfico dominaram áreas periféricas de grandes cidades.

Ao mesmo tempo, a outra “metade” do país, por assim dizer, supostamente livre desses grupos, viveu na institucionalidade democrática, com eleições regulares, pluralidade de partidos, embora sofrendo periodicamente com a violência desses grupos. Em outros países, tal república já teria sido alvo de diversos golpes de Estado, com ditadores argumentando a “pacificação nacional”.

O último golpe de Estado protagonizado por militares na Colômbia, no entanto, ocorreu no distante 1953, quando o general Gustavo Rojas Pinilla derrubou o presidente Laureano Gómez com o argumento de liquidar o período denominado de “La Violencia” (fase de confrontos entre os principais partidos políticos do país e mortes). Rojas Pinilla foi substituído por uma breve Junta Militar que, mais tarde, em 1958, convocou eleições. Nunca mais os militares voltaram à presidência do país.

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Otimismos que foram a pique

Desde os acordos de paz com a guerrilha das FARC, em 2016, e a desativação de boa parte dos grupos paramilitares nos anos prévios, a “metade” mais democrática do país passou por uma “normalização” gradual.

Embora muitos tenham se mantido céticos, uma euforia de que o fim da guerra civil permitiria um rápido desenvolvimento de várias áreas abandonadas do país emergiu. Esse otimismo, no entanto, escondia uma série de problemas que os diversos governos colombianos foram empurrando com a barriga de forma permanente.

Entre esses problemas estão a enorme desigualdade social no país, a falta de punições explícitas para os integrantes dos diversos bandos (de esquerda e direita) que protagonizaram massacres, estupros, sequestros, torturas, grilagem de terras e violência a comunidades indígenas, além dos frequentes assassinatos de líderes comunitários em áreas distantes dos grandes centros urbanos.

Gotas d’água, por toda a América Latina

Em 2019, quando o presidente Lenín Moreno acabou com os subsídios aos combustíveis em vigência desde 1974, o Equador foi cenário de intensos protestos. Na sequência, aderiram aos protestos os indígenas, que paralisaram o país durante duas semanas. Dias depois foi a vez do Peru, onde multidões foram às ruas protestar contra o controvertido impeachment do então presidente Martín Vizcarra, que na época tinha alta popularidade por sua cruzada anti-corrupção. Pouco depois, começaram os protestos no Chile. O que começou com uma manifestação contra o aumento da passagem do metrô de Santiago acabou por abarcar outras reivindicações, de reclamações contra o sistema previdenciário à necessidade de uma nova Constituição (que levou às eleições constituintes que serão realizadas nos dias 15 e 16 de abril). Ainda na sequência, também ocorreram protestos na Bolívia e Paraguai.

Na Colômbia não foi diferente. Lá, porém, os protestos foram esvaziados pelo presidente Ivan Duque, que iniciou negociações, propôs diálogo e avanços sociais, que foram, no entanto, sendo gradualmente “arquivados”. Não por acaso, o pano de fundo da tensão atual, da explosão social do fim de abril, teve como gota d’água o projeto de lei de reforma tributária de Duque.

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A reforma implicava em aumentos de impostos, especialmente na criação do Imposto de Valor Agregado (IVA) para serviços de 19%, além da ampliação da base de contribuintes. Essas medidas irritaram a população, que padece da maior crise econômica em muitas décadas.

O PIB colombiano caiu 6,8% no ano passado e o desemprego subiu para 15,9%. Atualmente 46% dos colombianos estão na pobreza. Outro fator de irritação foi o projeto de reforma do sistema de saúde, que implicaria na descentralização dos sistemas sanitários, deixando a responsabilidade para as províncias. Isto é, o governo federal deixaria os problemas para os governadores e prefeitos. Em algumas províncias o sistema poderia melhorar ao ser administrado diretamente. Mas na maioria das províncias, com problemas de déficit fiscal, a gestão hospitalar poderia ser catastrófica, com queda na qualidade.

O temor de vários setores é de que, em pouco tempo, perante um eventual colapso do sistema, o governo implementaria a privatização de várias áreas da saúde, fato que complicaria o acesso dos colombianos mais pobres (atualmente quase metade do país) ao serviço

O sistema sanitário gera grande preocupação devido à pandemia do novo coronavírus, já que nas principais cidades colombianas a ocupação das UTIs passou da faixa de 90% (em Medellín chegou aos 99%). O governo, acumulando fracasso após fracasso na gestão do combate à pandemia, mantém o país em um lockdown intermitente desde o ano passado. Nos últimos tempos implementou o sistema denominado 4×3, isto é, 3 dias com todas as atividades sociais e econômicas fechadas e 4 de funcionamento “normal”.

Apesar de recuos e repressão, manifestações continuam

No domingo dia 2 de maio, assustado com protestos cada vez mais intensos, o presidente Duque recuou e retirou o projeto de reforma tributária. Mas as manifestações continuaram. Na segunda-feira, dia 3, o ministro Alberto Carrasquilla, autor da reforma, renunciou. Mas as manifestações continuaram. Na sequência, o novo ministro da Fazenda, José Manuel Restrepo, anunciou que o governo estava cancelando a compra de novos moderníssimos 14 aviões de guerra, como forma de cortar gastos públicos e assim tentar conter o déficit fiscal de 7,8% do PIB previsto para este ano. Ainda assim, as manifestações persistiram.

Acontece que a reforma não era o único motivo dos protestos. As pessoas também estão se manifestando contra a lenta vacinação no país: até agora somente 6,19% dos colombianos foram vacinados contra a COVID-19 e destes, apenas 2,9% receberam as duas doses. 

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Tal como ocorreu em 2019 no Chile, o governo colombiano reprimiu os manifestantes com ferocidade. Isto é, por um lado recuou com seu projeto de reforma mas por outro apostou em reprimir. Para complicar, Duque enviou forças militares para controlar algumas cidades, como Cali, onde as manifestações foram mais intensas. O mentor político de Duque é o ex-presidente Alvaro Uribe, apologista da mão-de-ferro.

O ministério da Defesa colocou nas ruas 47,5 mil soldados em todo o país para lidar com os manifestantes civis. Só em Cali Duque instalou 700 soldados e 500 homens da truculenta ESMAD, sigla do corpo anti-distúrbios. A presença militar nas ruas teve o efeito de turbinar os protestos

Na quarta-feira, dia 5, a Ouvidoria-Geral da República anunciou um saldo de 24 civis mortos devido à intensa repressão policial contra os manifestantes. Mas a organização não-governamental Temblores afirmou no mesmo dia que seriam 37 falecidos. Segundo a ONG, foram registrados 77 casos de disparos contra os olhos dos manifestantes. Dez pessoas foram abusadas sexualmente pelos policiais. Neste contexto ficou comum o cartaz feito em cartolina com os dizeres “Estão nos matando”.

A prefeita de Bogotá, Claudia López, de centro-esquerda, declarou que a escalada da violência é “brutal”. Ela criticou a violência das forças de segurança mas também de setores dos manifestantes que, na última quinta-feira, destruíram ônibus do sistema de transporte público e tentaram queimar vivos 15 policiais dentro de uma delegacia.

A ONU e a União Europeia condenaram o uso de força fora de proporções contra os manifestantes na Colômbia. A Procuradoria-Geral da República começou a investigar as ações violentas da Polícia em diversas cidades. 

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Ainda na quarta-feira, dia 5, centenas de manifestantes concentrados na Praça Bolívar, no centro de Bogotá, apedrejaram os policiais nas portas do Parlamento para tentar invadir o edifício, algo inédito em décadas. A sessão que estava ocorrendo na Câmara de Deputados, foi encerrada subitamente. A Polícia disparou gás lacrimogênio e balas de borracha e a multidão se dispersou.

Enquanto isso, o país continua paralisado. Avenidas e estradas estão bloqueadas por manifestantes. Os militares e policiais reprimem com violência, gerando mais manifestações. As forças de segurança atiram nos civis desarmados, enquanto que diversos grupos aproveitam a confusão para depredar estabelecimentos comerciais. As lojas, abaladas pelo estancamento da economia desde o início da pandemia, permanecem com as persianas baixas devido ao medo de ataques de manifestantes e dos tiros da polícia contra suas vitrines.

O jovens estão sendo os protagonistas principais dos protestos, especialmente os universitários e do ensino médio. Sindicatos e organizações sociais participam também, mas a grande massa dos manifestantes vai às ruas de forma espontânea – algo muito parecido ao que ocorreu no Brasil em 2013

O presidente Iván Duque tentou recuperar o protagonismo político oferecendo diálogo aos líderes das manifestações. Mas não existe um único interlocutor, já que protestam uma miríade de grupos com as mais diferentes reivindicações, fato que complicaria uma negociação rápida. Mas essa é a consequência de empurrar problemas com a barriga; quando eles explodem, dificilmente podem ser resolvidos de forma rápida.

Para ilustrar como o cardápio de reclamações é amplo, citarei brevemente o caso dos indígenas da comunidade Misak, que protestam para reivindicar justiça histórica. Eles derrubaram uma estátua do conquistador espanhol Sebastián de Belalcázar em Cali. Os indígenas argumentaram que essa era uma forma de reivindicar a memória de seus antepassados assassinados e escravizados pelas elites.

Esta é a segunda derrubada de estátuas de Belalcázar em menos de um ano no país. Outros grupos indígenas exigem a derrubada de mais monumentos de conquistadores espanhóis que agiram no território colombiano, como Pedro de Heredia, que está na histórica cidade colonial de Cartagena de Índias. E também exigem a retirada de estátuas de Cristóvão Colombo. Neste caso, o problema é mais profundo, já que o nome do próprio país é “Colômbia”, uma homenagem ao navegante genovês a serviço da coroa espanhola.

La minga entra em cena

Nos últimos dias cresceu o protagonismo das comunidades indígenas nas manifestações. Ou, “La Minga Indígena”. “Minga” é a palavra em quéchua que designa uma espécie de mutirão com sentido de mobilização e resistência.

A entrada em peso de “la minga” nas manifestações é um fator diferenciado, já que os indígenas são o setor com mais experiência em protestos em toda a Colômbia.

Nos últimos cinco anos foram assassinadas 300 lideranças indígenas em toda o país. Segundo a ONU, dos 66 diferentes povos nativos, 33 estão em vias de extinção. Os indígenas constituem 5% da população colombiana e 63% deles são assolados pela pobreza.

Os indígenas pedem respeito à sua cultura e exigem o fim das ações dos grileiros e mais segurança perante a violência que sofrem por parte dos remanescentes grupos paramilitares de direita, pelos restos das guerrilhas de esquerda e pelas cada vez mais poderosas “bacrim“, as organizações mafiosas.

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Neste domingo (9), centenas de manifestantes indígenas estavam entrando em Cali pela zona sul dessa cidade de 2 milhões de habitantes quando foram atacadas por grupos de civis armados. Diversos indígenas foram feridos pelos tiros. O presidente Duque decretou toque de recolher e lei seca em Cali e enviou mais tropas para a área. O prefeito de Cali, Jorge Ospina, declarou que o que está acontecendo na cidade pode “atropelar toda a Colômbia”.

Band-aids ou o caminho chileno

O país tem dois caminhos pela frente. Um, é o de colocar band-aids políticos nesta crise e tentar empurrar os problemas para a frente, o que implicaria em um remake (talvez mais grave) das explosões sociais atuais mais para frente. Outro, mais difícil, mas com expectativas de resultados mais consolidados, é a de seguir o caminho chileno e realizar uma constituinte que tente resolver as graves pendências políticas e sociais desse país.

De qualquer maneira, o país terá eleições presidenciais no ano que vem. O cenário turbulento é tenebrosamente ideal para todo tipo de aventuras autoritárias, sejam em mode Jair Bolsonaro ou em mode Nicolás Maduro

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