silhueta de pessoas com smartphones nas mãos
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Sociedade

A eterna crônica da morte anunciada do jornalismo

Em um mesmo dia, um executivo inglês e um motorista de Uber me perguntaram sobre o fim do jornalismo. Aqui está minha resposta

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Era a segunda pessoa a me perguntar a mesma coisa naquele dia. “Você acha que os jornais vão acabar?”, ele me perguntou assim que soube qual era a minha profissão. Sou jornalista, mas podia ser um  dinossauro, dá no mesmo para muita gente. Era um homem de negócios bem-sucedido, trabalhava com novas tecnologias, mercado, startups. Mais cedo, na prosa com o motorista do Uber, ele havia questionado o mesmo que o executivo inglês.

– Eu acabei de pedir e ganhar uma vitrola de LP de aniversário – eu respondi de maneira atrevida ao financista.

– Não entendi – ele retrucou.

– Eu acho que devia ser proibido escutar Billie Holiday, por exemplo, em qualquer coisa que não seja uma vitrola. Aquele ruído que lembra a chuva, a cadência da agulha, a ordem das músicas, tudo é parte da experiência –acrescentei.

– Então você acredita que as modas voltam? – ele me perguntou.

– Não necessariamente. Geralmente sim, mas isso não se trata nem de nostalgia, nem de preciosismo – continuei.

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O velho fim do jornalismo

Durante todo aquele dia, eu pensei em quão perdidos nós ficamos no jornalismo com os últimos adventos tecnológicos e as mudanças sociais. Da reportagem “cidadã” ao imediatismo das novas gerações, das fake news à guerra de Estados contra seus jornalistas, até a rendição precoce ao obscurantismo do futuro de todos nós. Mas sempre sobrevivemos.

Posteriormente, fui futucar meus livros sobre o jornalismo e descobri que, por motivos diferentes, essa inquietude, sobre o futuro do jornalismo, nunca deixou de estar presente. 

Em 2001, quando ainda estava estudando, comprei o Manual de Redação da Folha de São Paulo – eu tenho vários manuais que ajudam a solucionar de dúvidas gramaticais a dilemas éticos. Nas primeiras páginas, escritas por um conselho editorial que incluía os papas do jornalismo de então, lá estavam as mesmas preocupações relativas à extinção dos jornais.

“O jornalismo reflete fraturas e deslocamentos que ainda estão por mapear e se defronta com dilemas capazes de pôr pressupostos em questão: o que informar e para quê?”, dizia o Manual em sua introdução. Parei nessa frase.

Durante muitos e muitos anos, o sucesso ou fracasso do jornal esteve atrelada a uma equação simplória: a tiragem. “Estamos usando a régua correta para medir o êxito do jornalismo?”, venho me questionando.

Informação é poder, desde que seja qualificada

Na conversa que tinha tido com o jovem entrepreneur naquele dia, perguntei se ele não se preocupava em ler o que a imprensa publicava para saber como o entorno afetava seus negócios. A resposta foi contraditória.

Primeiro ele disse não e me deu um bom argumento: em seu mundo, ele circulava com uma série de stakeholders, ou seja, dialogava direto com altíssimas fontes.

Depois, afirmou que havia muita porcaria circulando com o nome de notícia (concordei), mas acabou citando uma fonte que considerava qualificada: The Economist

Eu, então, expliquei a ele a diferença entre jornalismo e futurologia e, como na minha vida profissional, as melhores manchetes haviam saído das fontes menos prováveis, muitas delas da base da pirâmide, gente simples, invisível para o mundo das autoridades. Acabei por convencê-lo que informação é poder, não importa de onde venha, desde que seja qualificada. Esse, era ao ver, o grande desafio atual: legitimidade. 

Não era apenas um conselho macro àquele executivo, mas algo vindo do meu autoconhecimento, do micro ao macro. A frase “informação é poder” eu havia tirado do livro O ano do pensamento mágico, da jornalista Joan Didion, que, em um breve espaço de tempo, perdeu o marido de toda vida e a filha. Para não sucumbir à dor, ela decidiu estudar minuciosamente o que era luto. Ela queria não só obter informações sobre aquilo que estava enfrentando, mas fazer um mapa de uma dor que, hora ou outra, todos nós atravessamos na vida. 

Naquele dia, eu pensei sobre a função dos jornais sob todos ângulos que podia imaginar e ao longo da história. Das cartas marítimas que guiavam os marinheiros a rotas comerciais, aos primeiros jornais, à massificação do livro com a prensa de Gutemberg, do desespero da tiragem às fake news. 

No fim do dia, eu havia chegado à conclusão de que essas mudanças foram vistas com pavor por jornalistas, mas que, no entanto, poderiam ser a pedra fundamental para a pergunta lançada em 2001 pelo Manual da Folha. “O que informar e para quê?”.

O inimigo no sofá

Eventualmente, a falta de filtro no que circula como “notícia” levaria à extinção de um modelo para o jornalismo, eu pensei. Faltava apenas fechar a equação da credibilidade. Os jornalistas teriam de qualificar-se mais se quisessem competir com seu pior inimigo: Seu Tio aposentado Sr. Gilberto que, do auge do seu sofá, replica tudo que recebe no WhatsApp para um grupo de 30 familiares, que, por sua vez, fazem o mesmo, sem qualquer método de aferição de legitimidade de fonte noticiosa em detrimento dos jornais. 

Mas a verdade é que o jornalismo não começou a mudar nem com a Internet, nem com a falta de credibilidade (ainda que ela seja imprescindível). Ele vem sofrendo mudanças que espelham transformações civilizatórias, tecnológicas e sociais.            

O fator Holliday

George Holliday conta que estava em casa, no subúrbio de San Fernando Valley, na California, quando escutou o barulho de sirenes e helicópteros. Era pouco antes da 01h00 de um domingo quando ele, dono de uma pequena empresa de encanamento, viu um homem afro-americano no chão, apanhando.

O lançamento da Sony Handycam nos anos 1990, uma versão que qualquer um poderia operar, fez dos EUA o país mais vigiado do mundo. De pequenos momentos familiares a casamentos, batismos, poucas famílias escaparam da febre de uma câmera para registrar a vida cotidiana. No entanto, o que Holliday fez naquele dia, inadvertidamente, foi dar início a uma nova era do jornalismo. Um terremoto tão grande quanto o advento da Internet e das redes sociais.

Às 12h53 da noite, Rodney King era submetido, já imobilizado, a uma surra de três policiais que chegou a infligir mais 50 cacetadas por minuto, enquanto Holliday filmava de sua varanda. No dia seguinte, ele enviou a fita a um canal local.

Quando as imagens chegaram à CNN, a tensão entre policiais e cidadãos afro-americanos havia chegado ao limite. O resultado foi um levante em Los Angeles que causou 53 mortes e mais de US$1 bilhão em prejuízo.  O dia 3 de março de 1991 mudou para sempre a história do jornalismo. 

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Holliday perdeu apenas para Abraham Zapruder, um trabalhador, que pouco menos de três décadas antes, filmou os 26 segundos mais assistidos da história: o assassinato de JFK. Isso, bem antes da massificação das câmeras Sony.

Atordoado com a possibilidade de todos poderem aportar ao jornalismo, o próprio jornalismo ficou tonto. Isso bem antes da era dos smartphones. Hoje, esse tipo de contribuição é conhecida como jornalismo cidadão. É lógico que donos de meios de comunicação querem cortar custos, mas terão de qualificar esse tipo de colaboração se não querem sucumbir ao meteoro do excesso de informação.

De volta ao diálogo como financista

Com mercados financeiros totalmente vulneráveis ao mundo que os rodeia, por que um financista não estaria preocupado em obter informação? Foi quando comecei a entender que o problema se aproximava mais da pergunta do que da resposta. 

O problema não é tiragem dos jornais, nem os jornais. O problema é o que e como informar. Voltam à tona teorias antigas como a do “gatekeeper”. Do fato ao editor, os portões (gates) pelos quais passam a notícia terão de ser reengendrados. 

Os laureados jornalistas norte-americanos Bill Kovach e Tom Rosentiel acreditam que “cada geração cria seu próprio jornalismo”, mas que a função, informar, nunca muda. Nossa geração terá de provar que essa função é seu objetivo.

“Boa sorte”

Eu era ainda adolescente quando fui a uma palestra da escritora brasileira Nélida Piñon–isso décadas antes dos ebooks. Ela falou e falou sobre literatura. No fim da palestra, alguém perguntou que conselho ela daria a um magnata de tecnologia que dizia que iria acabar com os livros como objetos.

Ela nem se coçou, esboçou um largo sorriso e restringiu-se a dizer: “Boa sorte!”. 

Podem me chamar de otimista, mas eu, hoje, diria o mesmo ao executivo inglês e ao motorista de Uber.