Mulheres do movimento feminista na Argentina se abraçam após a aprovação do aborto legal na Câmara dos Deputados, em 11 de dezembro de 2020, dias antes da votação no Senado. Foto: HCDN/Fotos Públicas
Sociedade

Aborto legal: como é a luta das feministas na Argentina

Das Madres de Maio ao Ni Una a Menos. Uma nova legislação sobre o tema começa a ser votada nesta terça-feira no Senado argentino

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Quando Maradona morreu, em novembro deste ano, uma pequena controvérsia rondou as homenagens ao ídolo na Argentina. Muitas feministas levaram sua tristeza em torno dos atos de despedida do jogador às redes sociais – é preciso ser um ermitão naquele país para não saber que Maradona foi um homem abusivo com as mulheres que passaram pela sua vida. Mesmo esse movimento, no entanto, não abalou o que Maradona representava para a identidade nacional: a mão da providência divina que devolveu, em um passe, o orgulho a uma nação humilhada por uma guerra desenhada por militares que se aferraram a um regime moribundo e que causou a morte de centenas de argentinos. Para entender o que o aborto legal representa para o movimento feminista do país é preciso conhecer sua história. 

**ATUALIZAÇÃO: Senado argentino aprova a legalização do aborto no país**

As feministas argentinas são pioneiras na América Latina, criadoras de movimentos que transcendem fronteiras como, por exemplo, o “ni una menos”, que luta contra a impunidade em casos de feminicídio e acende mulheres em todo o mundo, há anos, na luta por igualdade. Foi a luta das mulheres argentinas que esculpiu na história jurídica do mundo a caracterização do feminicídio, mostrando que, muitas vezes, o gênero é um fator definidor do trágico destino das vítimas. 

Esse movimento das mulheres argentinas que hoje inundam os noticiários com seus lenços verdes (símbolo do movimento) nasceu de “um parto a fórceps” décadas atrás. Foram elas as primeiras a mostrar ao mundo a brutalidade do regime militar, indo todas as semanas à Praça de Maio, em Buenos Aires, pedir pelos filhos desaparecidos. As Madres de Maio não pararam nunca.

Com o passar do tempo, tornaram-se avós e continuaram marchando. Quando já era certo que não encontrariam os filhos, continuaram lutando pelos incontáveis netos que nasceram no porão do regime militar e foram dados para adoção. Essas avós uniram-se à ciência e, se hoje temos a tecnologia de identificação por DNA, é preciso creditar o desenvolvimento de tal descoberta também a elas. 

Foram os “avós de Maio” que, junto aos cientistas, encontraram métodos de não deixar nenhum neto para trás. Hoje marcham juntas a outras mulheres argentinas que pedem a descriminalização do aborto.

São mulheres que não se curvam para a barbárie passar. As mesmas que não pensaram duas vezes em expor os seios no centro de Buenos Aires em protesto, quando policiais começaram a constranger a amamentação em público em nome dos “bons costumes”. Essa é a raça da mulher argentina. Por isso, são tão emblemáticas para o continente.

O que muitas feministas querem que o mundo entenda é que não se trata de uma castração religiosa, nem de um ataque à masculinidade, mas sim do reconhecimento de que gêneros distintos estão, hoje, sujeitos a diferenças no quesito liberdade.

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A luta pela legalização do aborto (voluntário e gratuito) não é de hoje. É a nona vez que o tema será apreciado no Congresso por legisladores, em sua maioria homens, de meia idade, brancos e católicos. Se a aprovação na Câmara dos Deputados já foi apertada, no Senado essa querela, prevista para começar nesta terça-feira, 29 de dezembro, parece ser ainda mais difícil.

Nada que impeça essas mulheres de, em plena pandemia, fazerem vigília na porta do Congresso, aos milhares, com cartazes que pedem para que a Igreja “tire o rosário de seus corpos”. Assim como a pandemia não impede que as mulheres que acreditam que a vida começa na concepção façam a mesma vigília com seus lenços celestes, contra a aprovação da lei.

A lei viria para dar um novo marco legal, aliviando calvários como o de “Lucia”, pseudônimo dado à menina nascida no empobrecido Norte argentino que foi estuprada pelo avô, e que, aos 11 anos de idade, não tinha condições físicas de dar à luz. No final do ano passado, ela ficou um mês em um hospital esperando que se cumprisse a ordem judicial que autorizada o aborto, sendo constrangida por grupos pró vida e ganhando uma notoriedade indesejada por grupos pró aborto, uma situação que estendeu a via crucis da criança, enquanto os médicos locais negavam-se a cumprir a decisão da Justiça. 

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Se, por um lado, o envio da proposta pelo presidente argentino Alberto Fernández ao Congresso é considerado populista e inoportuno por detratores da lei, por outro, a proposta estabeleceria diretivas claras para casos como o de Lucia; dando aos médicos a liberdade de escolher se querem ou não realizar o procedimento, dentro de prazos seguros e de diretrizes que oferecem o amparo necessário às mulheres mais vulneráveis.

A esperança das ativistas é de que a aprovação da nova legislação no Congresso aqueça a discussão em outros países da região. Na América Latina, apenas Cuba, UruguaiGuiana preveem o aborto legal. Mas a “gestação” dessa ideia vem crescendo também em países de tradição católica como o Chile e o México, cujos movimentos feministas avançam a passos largos, mas esbarram em históricas tradições religiosas.

Ainda assim, a pergunta mais feita aos jornalistas que cobrem a região é: que efeito isso teria nos países desta comarca do mundo?

É possível que nenhum, em um primeiro momento. Mas se a legalização do aborto for aprovada na Argentina, a semente será plantada e dela nascerá uma ideia. Pode ser que essa ideia leve décadas para florescer, mas cumprirá seu propósito.

Na Argentina, estudos recentes apontam que uma a cada três crianças vive em condições de pobreza. Para muitas mulheres, a noção romântica da maternidade é um choque frontal com a realidade. A gravidez indesejada é uma prisão biológica. 

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Muitas gestações nascem do abuso, do estupro, da desinformação, e outras acontecem por acidente em um ambiente que já não comporta financeiramente mais ninguém. Em um continente onde muitas crianças são abatidas por violência policial, ou violência de classe, sexual e até a fome, elas valem mais como feto em uma bandeira política do que como seres humanos que vão crescer em condições insalubres. É preciso derrubar esses unicórnios ideológicos para dar vazão a um argumento pragmático. Quantas crianças cumprem pena numa fila de adoção, por exemplo? 

A América Latina tem avançado muito no que diz respeito aos direitos das mulheres. Ainda assim, a exemplo da Argentina, legislam sobre os úteros homens, ricos, de meia idade, religiosos, em uma desproporcionalidade de representatividade que não vem de hoje. Um abismo se abre entre o que deveria ser e o que é. Neste sentido, trata-se de corrigir incoerências históricas de um continente que continua legislando para o que deveria ter sido: uma população com condições igualitárias de vida. 

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Para muitas defensoras da nova lei, ela vai além das condições socioeconômicas da região. Trata-se de uma questão talhada em restrições da liberdade individual. Para elas, essa decisão não cabe a esses homens e sim a quem biologicamente teria de levar a gestação adiante. A avaliação deles deveria estar restrita às questões que lhe dizem respeito: ao impacto no sistema governamental de orçamento e saúde. 

Os legisladores que se opõem à proposta de lei usaram os mesmos argumentos da desigualdade social e pobreza para frisar que, por essa lógica, essas mulheres só abortam porque o Estado falha em ampará-las. Para contornar esse argumento, o presidente Alberto Fernández incluiu na proposta o que chama de “Plano dos mil dias”. 

Nele, medidas equitativas serão adotadas para amparar mulheres que decidem seguir com a gestação, entre elas apoio financeiro, de saúde, educação e social para que possam continuar com a gravidez, assistindo mulher e filho na escolha da concepção.

Liberdade é um conceito contagioso. Como escreveu Cecília Meireles uma vez: “Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. Não se sabe quanto tempo levará para que esta palavra seja reconhecida por um continente historicamente dominado por restrições religiosas e governos omissos.

Apenas uma coisa é certa: é impossível parar uma ideia, ela não morre de tiro, nem nas guerras; resiste aos tempos, pode até hibernar, mas não falece nem no mais duro inverno de intenções. 

Para muitas mulheres, a gestação é o que chamam de “doce  espera”. Para muitas outras deste continente, a doce espera é a gestação de uma ideia de liberdade.

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