O filme O Labirinto do Fauno (2006), do diretor mexicano Guillermo Del Toro, foi um dos precursores do gênero que mistura política e terror como ferramenta de espanto. Talvez tenha sido o filme a ir mais fundo nos aspectos aterrorizantes dos sistemas tirânicos. Ele se desenvolve de maneira inusitada e lúdica, numa mistura visual e onírica, que vai da inocência à brutalidade da ditadura franquista na Espanha, sob o olhar de uma criança, em uma proporção ainda não repetida em filmes subsequentes.
Del Toro destronou nossos medos mais comuns, trocando-os por outros reais do passado. Não valia mais, portanto, ter apenas fantasmas, ETs, seriais killers, tubarões e anacondas como protagonistas dos sustos espelhados pela indústria cinematográfica.
Quando o filme sul-coreano O Parasita ganhou o Oscar de melhor filme em 2019, parecia, inicialmente, que a indústria audiovisual e seus críticos estavam reconhecendo o fortalecimento do cinema transfronteiriço. No entanto, era algo maior do que isso. Estava aberto o espaço para que a realidade das disfunções sociais do século se infiltrassem fortemente na sétima arte, com metáforas visuais e recursos comuns a filmes de terror. Apresentava-se um roteiro de suspense como uma espécie de horror, tão assustador quanto um fantasma que puxa o cobertor por debaixo da cama.
E os filmes sul-americanos têm um papel preponderante nessa modalidade que vai se solidificando. O primeiro filme argentino a vencer o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro foi História Oficial (1986), o primeiro Oscar da América Latina. Nele, uma professora de história vai descobrindo, com suspense e horror, que pode estar submersa inadvertidamente em uma ditadura que roubava crianças de presos políticos, podendo ser ela mesmo a mãe adotiva de uma.
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O segundo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro da América do Sul, também da Argentina, não pode ser colocado na mesma caixa. Transita, porém, pelos períodos mais obscuros da história daquele país. O Segredo de Seus Olhos (2009) traz à tona mais uma vez a ditadura como um período lúgubre e assustador, um pano de fundo que escurece ainda mais o thriller.
A importância da solidificação do gênero de terror se soma ao revisionismo histórico pelo qual passa o continente latino-americano. O cinema não fica aquém das perguntas colocadas nesse contexto e as responde com a leitura artística, questionando o passado político. As ditaduras, o colchão social ausente em tantos países da região e os massacres dos povos originários têm levantado multidões em protestos.
O choro do arrependimento
O general está em seu labirinto. Confrontado pelo massacre que perpetrou, pela velhice, doença e pela decadência. Ele é emparedado por uma das lendas mais arrepiantes no folclore. Preso em sua mansão com um fantasma, ele e sua família são aterrorizados pelo passado. Trata-se do filme guatemalteco La Llorona, do diretor Jayro Bustamante, indicador ao Oscar 2021, que vem especificamente tratar da ditadura, com certo revanchismo. Calcula-se que milhares de indígenas maias tenham sido massacrados por militares entre os anos 1981 e 1983 na Guatemala.
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No filme, um general é absolvido pela Justiça, mas não consegue escapar dos fantasmas do genocídio que ajudou a perpetrar. Assim, sua família passa a conviver com os segredos do passado, rodeada pelos mortos da mansão, particularmente da figura tradicional de uma mulher de longos cabelos negros que chora de forma intermitente. Essa figura, la llorona, é uma das lendas mais aterrorizantes da América.
“O que ficou para trás, está atrás”, diz a esposa do general à filha, que começa a entender que o pai é um genocida. Ela é dita para mostrar o silêncio que se impôs em certos eventos históricos do continente. É ainda simbólica de três variáveis comuns a quase todos esses países: a falta de memória, o folclore (que, no caso do filme, não é visto como uma abstração e sim uma realidade que vem punir aqueles que escaparam da Justiça) e a impunidade, que permeia quase todos os sistemas políticos e jurídicos da região.
O símbolo do remorso
O fantasma do filme é um velho conhecido das artérias deste continente. Quase todos os países da região têm uma modificação do mito da mulher vestida de branco que chora a morte dos filhos que ela mesmo matou.
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Os primeiros relatos vêm da América prévia à conquista espanhola e chegam a ser um presságio dos filhos que morreriam com a conquista. Ao longo dos séculos, passou a ter diversas conotações nas sociedades latino-americanas, do México à Argentina. Desde uma figura cuja luxúria é punida, ao de uma mulher vingativa contra homens que cometem crimes sexuais, ou uma metáfora de arrependimento da mulher que imolou seus filhos em um contexto de guerra e ditadura. O arrependimento permeia todas as histórias dessa figura na região.
Trata-se do mesmo medo que o continente tem em desenterrar seu passado e confrontá-lo, como já vem acontecendo, para o bem e o mal, em muitos países da região. É uma exumação que conta um conto, uma narrativa. Não, “o passado não ficou para trás”. Não só não ficou como virou assombração, e está dentro do armário. Hoje com o continente discutindo as ditaduras, massacres e sistemas tirânicos da América Latina, a lenda da la llorona vem nos lembrar que esse choro pode não ser audível, mas está à espreita esperando para que possamos chorá-lo, como os fantasmas debaixo da cama. É parte de um roteiro comum no gênero de terror, o fantasma só vai embora quando resolve suas pendências no mundo dos vivos.