Desde que foi fundado pelo general Juan Domingo Perón em 1946, o Partido Justicialista (mais conhecido personalisticamente como “Partido Peronista”) governou a Argentina em 39,5 anos de um total de 75. O resto do tempo, 36,5 anos, divide-se em 10 anos de governos ditatoriais militares; 10,5 anos de União Cívica Radical (UCR); 4 anos de UCR-Intransigente e 4 anos de Juntos por el Cambio.
Mas, se contabilizarmos o período transcorrido desde a volta da democracia, em 1983, o predomínio peronista é mais ostensivo. De um total de 38 anos, o peronismo governou 26,5. Os não-peronistas governaram apenas 11,5 anos. Ou seja, os peronistas administraram a Argentina em 69,73% do tempo.
Nessas décadas todas o Peronismo nunca teve que negociar amplos acordos com as oposições, apenas acordos pontuais. Nunca negociou porque nunca precisou, devido ao amplo poder que teve sempre que esteve ocupando a Casa Rosada, o palácio presidencial. E nas raras ocasiões nas quais esteve na oposição, sempre condicionou os governos rivais – os peronistas carecem das “habilidades mineiras” de articulação.
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Desde a volta da democracia o Peronismo sempre, de forma ininterrupta, controlou o Senado. E na maior parte do tempo teve também o controle da Câmara. De quebra, contou com a maior central sindical do país, a Confederação Geral do Trabalho (CGT), do seu lado em boa parte do tempo. A segunda maior central do país, a Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA), alternou períodos de confronto com períodos de idílio com os presidentes peronistas.
No entanto, o Peronismo sofreu um duro golpe no último domingo, 14 de novembro, ao ser derrotado nas eleições parlamentares. Na ocasião, os argentinos foram às urnas para renovar metade da Câmara de Deputados e um terço do Senado.
Na segunda-feira, 15 de novembro, com 98,84% das urnas apuradas, o Peronismo-kirchnerismo, com o nome de fantasia de “Frente de Todos”, recebeu 33,57% dos votos, um dos patamares mais baixos da História do partido. O principal grupo da oposição, a coalizão “Juntos por el Cambio”, de centro-direita, conseguiu 41,97%.
O mau desempenho do Peronismo-kirchnerismo nas urnas foi algo impressionante levando em conta que nas eleições de 2019 Alberto Fernández foi eleito presidente com 48% dos votos. O “Juntos por el Cambio” conseguiu naquela ocasião 40,28% (1,71% menos do que registrou nas eleições parlamentares desse domingo).
Adeus, Senado
O maior impacto sofrido pelo Peronismo-kirchnerismo nesse domingo foi a perda do controle do Senado – de 41 cadeiras, passou a controlar apenas 35; para ter a maioria, precisaria de 37. Isso é um colossal choque para os peronistas, porque o partido sempre deteve o controle do Senado nos períodos de democracia plena. Além disso, essa derrota tem um simbolismo maior pelo fato de a vice-presidente Cristina Kirchner ser também a presidente do Senado.
Cristina agora será obrigada a estabelecer um diálogo com os opositores, caso deseje que o governo avance em uma série de medidas. No entanto, ela é historicamente alérgica à negociação.
Recuo na Câmara
Na Câmara de Deputados, o governo perdeu terreno, ficando 11 cadeiras distante da maioria simples, de 129 parlamentares. Nesse arranjo, o governo teria 118 cadeiras e a coalizão Juntos por el Cambio, 116; o resto estaria atomizado entre os partidos pequenos. No entanto, na segunda-feira continuava sendo feita a apuração de urnas em três províncias que poderiam definir uma queda de mais um deputado para o Peronismo e de um aumento eventual de um parlamentar para o Juntos por el Cambio. Dessa forma, Fernández corre o risco de sequer ser a primeira minoria, mas sim de ficar empatado 117 a 117 cadeiras com o principal grupo de oposição.
Para simplificar, o Peronismo, acostumado a estar com a faca e o queijo na mão – e quando não tinha o queijo, tinha pelo menos a faca –, dessa vez ficou sem nenhum dos dois. É um cenário inédito em todos os períodos de democracia plena desde 1946.
Derrotas nos feudos
Outro duro baque para o Peronismo – ou mais especificamente para Cristina Kirchner – foi a derrota na província de Santa Cruz, na Patagônia. Desde 1991, Santa Cruz foi uma espécie de feudo da família Kirchner. Atualmente, a governadora é Alicia Kirchner, irmã do defunto ex-presidente Néstor Kirchner e cunhada de Cristina. Nesse domingo, o kirchnerismo não foi só derrotado, mas amargou um terceiro lugar, com 26% dos votos.
Em outro tradicional feudo peronista, a província de Buenos Aires, que concentra 37% da população do país e produz 38% do PIB argentino, nova derrota amarga. A despeito de o governo Fernández ter distribuído subsídios e verbas a granel para prefeitos, além de manter enormes estruturas assistencialistas, o peronismo conseguiu apenas 38% dos votos, contra 52% obtidos em 2019.
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Na capital do país, Buenos Aires (diferente da província), historicamente refratária ao peronismo, o grupo político registrou 25% dos votos no último domingo. Há dois anos, havia conseguido 35%.
Dormindo com o inimigo
Para Fernández o cenário é quase apocalíptico. Além de perder a maioria do Parlamento, tem que enfrentar a enorme crise econômica, terminar de vacinar a população e lidar com uma inflação galopante. Como se não bastasse, o presidente agora tem que enfrentar uma oposição fortalecida enquanto volta à guerra que sua própria vice-presidente lhe declarou de forma ostensiva desde as eleições primárias de setembro, nas quais o governo perdeu inesperadamente.
Na noite da derrota no último domingo, já com a confirmação da surra nas urnas, Cristina anunciou que não iria ao quartel-general da campanha para o tradicional discurso após as eleições, argumentando que estava se recuperando ainda de uma recente operação. No entanto, três dias antes ela esteve em um comício. Sem contar que, nos dias atuais, poderia ter feito uma live de apartamento no bairro portenho da Recoleta. Mas optou por não fazê-lo.
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Em 2013, quando era presidente, Cristina também perdeu a eleição parlamentar do meio de seu mandato (mas não com a contundência atual) e argumentou que não iria ao quartel-general da campanha devido a uma operação. Em 2015, quando seu candidato presidencial Daniel Scioli, perdeu as eleições, Cristina também desapareceu do quartel de campanha. O gesto da ex-presidente e atual vice é um claro sinal de que pretende deixar nas costas de Fernández o peso da derrota nas urnas.
Fernández e Cristina protagonizaram uma novidade na política argentina em 2019 (e também uma novidade na política mundial), quando ele foi o candidato a presidente ungido pela vice-presidente. Geralmente os presidentes é que definem – ou fazem um pacto para definir – seus vices.

Antes dessa manobra, quando o Peronismo estava no poder, sempre existia um líder absoluto. Assim foi com Perón enquanto esteve vivo, posteriormente com Carlos Menem, Eduardo Duhalde e Néstor Kirchner. Cada troca de comando era feita de forma categórica, eliminando totalmente o poder do antecessor, sem piedade, em uma espécie de degola simbólica.
Mas Cristina, após a morte de Néstor em 2010, fez uma reconfiguração desse esquema, criando uma minoria permanente dentro do Peronismo.
Dessa forma, o kirchnerismo se consolidou como uma espécie de sub-peronismo. Um simbionte, como nos filmes de ficção-científica. Uma espécie de bote salva-vidas quando o transatlântico peronista afundava. Dessa forma, ela sobreviveu à derrota do Peronismo em 2015 para Maurício Macri. Na ocasião, Daniel Scioli foi derrotado e fritado em público. Cristina, que era a presidente, fez de conta que não era com ela.
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Quando o governo atual foi derrotado nas primárias de setembro último, aliados da vice xingaram Fernández e seus ministros de forma explícita. Cristina o acusou da derrota. Fernández se viu obrigado a remover vários de seus ministros “albertistas” para colocar mais ministros “cristinistas”. Isso gerou enorme desgate adicional à imagem do presidente. Pesquisas indicam que apenas 8% dos argentinos acreditam que Fernández é quem governa de fato.
O mistério agora é: Fernández cederá mais poder para Cristina? Ou se afastará dela para se aproximar da oposição e negociar a governabilidade nos dois anos que lhe restam de mandato? Cristina, por sua vez, se afastará mais de Fernández, deixando que ele frite sozinho e evitando que o enorme desgaste do governo respingue em sua imagem, preservando assim seu capital político? Os ministros cristinistas, continuarão em seus cargos?
Uma coisa é certa: Cristina não renunciará ao posto de vice, já que isso lhe garante o foro privilegiado que lhe impede de ser presa devido à saraivada de casos de corrupção pelas quais está sendo processada nos tribunais portenhos.
“Perder ganhando”
No discurso gravado na noite das eleições de domingo, Fernández convidou a oposição para um amplo “diálogo”. Ou melhor, não convidou, já que – nos padrões peronistas – isso demonstraria fraqueza. Por isso, Fernández indicou que, se a oposição fosse “patriótica”, dialogaria com ele em breve.
No entanto, em um segundo discurso após as eleições, horas depois, já no quartel de campanha, o presidente convocou a militância a festejar os resultados nessa quarta-feira, 17 de novembro, na Praça de Mayo. Uma de suas principais deputadas, Victoria Tolosa Paz, tentou explicar que o governo havia vencido as eleições de alguma forma: “A oposição ganhou perdendo e nós (peronistas), perdemos ganhando”.
A oposição ouviu o pedido do presidente Fernández para o diálogo. Mas o clima nas fileiras opositoras é “Ok, Fernández quer dialogar conosco… mas quem manda de verdade é Cristina. E Cristina topa que esse diálogo seja feito?” Ao que parece, se Fernández quiser negociar com a oposição, primeiro terá que definir esses parâmetros com Cristina.
Nos próximos dois anos, se quiser completar o mandato e, talvez, tentar uma reeleição, Fernández terá que reativar a economia (que está em recessão intermitente desde 2009 e se agravou desde 2018); recuperar a unidade interna do Peronismo (anulando o poder de sua vice Cristina Kirchner); recuperar a confiança popular; convencer os empresários argentinos a voltar a investir no país bem como os investidores estrangeiros a apostar de novo na Argentina; e renegociar a dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Dizer que isto será uma tarefa “hercúlea” é um eufemismo.
Novos players na política argentina
Os partidos tradicionais do governo e da oposição, embora ainda sejam os grandes protagonistas da política argentina, perderam terreno. Em comparação com a eleição de 2019, o partido Peronista perdeu 5,2 milhões de votos, enquanto a oposição, o “Juntos por el Cambio”, perdeu 1,2 milhão de votos. Em contrapartida, cresceram os setores mais radicalizados, aproveitando o desencanto do eleitorado. Nesse contexto, se destacam dois novos players da política argentina, situados nesses extremos.
Um é a coalizão de partidos da esquerda trostkista, que ficou com 5,91% dos votos. Esses grupos existem há tempos, mas cresceram recentemente. Essa esquerda considera o Peronismo um partido “burguês” e “fascista”.
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O outro player vem da extrema-direita (setor que nunca teve representatividade formal na democracia argentina) e abocanhou 4,96% dos votos em todo o país. Sua estrela é Javier Milei, economista ultra-neoliberal (mas a favor de monopólios) que se diz professor de “sexo tântrico”. Com ironia, humoristas indicam que talvez seja necessário reconfigurar o leque ideológico e rebatizar isto de “direita tântrica”.
Adepto do clássico estilo populista, de gritaria e linguagem chula, até então exclusividade do Peronismo, Milei ficou famoso anos atrás ao participar dos programas de fofocas na TV como comentarista econômico (pois é, até nos programas de fofocas argentinos tem economia) e por sua cabeleira esdrúxula. Dos programa de fofocas, pulou para a política. Ele considera o ex-presidente Maurício Macri, de centro-direita, um “socialista”.
O que levou à derrota do Peronismo
Há vários motivos por trás da derrota do governo nas urnas nessas eleições parlamentares. Um deles é a inflação, que em outubro chegou a 3,5%, o que indica um acumulado de 52% nos últimos 12 meses. Um dos sinais de que existem enormes temores pelo futuro a curto e médio prazo é a escalada do dólar, o refúgio favorito dos argentinos para momentos de crise. Na semana passada, a divisa americana, no mercado informal, bateu recorde desde 1991, chegando a 207 pesos.
Além disso, existe irritação pela lenta vacinação contra a COVID-19. A campanha começou em dezembro e até agora somente 59% da população está plenamente vacinada. Muito menos que o Chile, com 81%, ou o Uruguai, com 75%.
De quebra, o governo protagonizou escândalos relativos à pandemia. Um deles foi o caso dos “vacinados-VIP”, de dezenas de políticos e amigos do poder que furaram a fila da vacinação. Mas o caso que o próprio governo admite que foi um duro baque foi a divulgação das fotos do aniversário da primeira-dama, em plena pandemia em julho passado, fazendo uma festa na residência presidencial de Olivos, sem distanciamento e sem máscara. Na mesma época, o presidente proibia a realização de reuniões familiares.
Além disso, os últimos meses foram intensamente marcados pela falta de organização do governo, com declarações disparatadas dos ministros e do próprio presidente. Uma fonte do governo admitiu que ocorreu uma overdose fora do normal de mancadas: “Damos um tiro no pé a cada semana!”
Spoiler
Nunca se pode bater o martelo sobre a política argentina. Como poderão ver, em parte alguma do texto coloquei algo como “é o fim do peronismo” ou “é o fim do kirchnerismo”, já que na política argentina tudo é possível, mais ainda se na variável um dos protagonistas é o Peronismo.
Mas, o que é afinal o Peronismo?
Um dos slogans históricos dos peronistas é “Ni yanquis ni marxistas, peronistas!”. Isto é, “nem ianques, nem marxistas, peronistas!”, para indicar que não são de esquerda nem de direita. Na realidade são tudo isso ao mesmo tempo. Um presidente peronista pode assinar um decreto neoliberal na hora do almoço e na hora do cafezinho estampar sua rubrica em um projeto de lei intervencionista estatal.
Perón, o fundador do Peronismo, era amigo dos ditadores de direita do Paraguai, Alfredo Stroessner, e da Nicarágua, Anastácio Somoza. Néstor e Cristina Kirchner citavam as frases de Perón, mas faziam pose para fotos ao lado do cubano Fidel Castro. Nos anos 90, Cristina foi aliada do peronista neoliberal Carlos Menem e foi respaldo crucial para as privatizações. No entanto, uma década e meia depois, ela reestatizou o que havia privatizado (e com apoio do ex-neoliberal Menem!). O Peronismo se aliou à igreja nos anos 80 contra a lei de divórcio… mas em 2010 aprovou a lei de casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Por isso, nunca se pode subestimar a capacidade de metamorfose (e sobrevivência) do Peronismo.