A cannabis medicinal pode desempenhar um papel na luta contra a COVID-19? Essa é a hipótese por trás de um novo ensaio clínico brasileiro, que começará em janeiro de 2022. Mais especificamente, o estudo conduzido pelo InCor (Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) testará a eficácia da CBD (uma substância não psicoativa derivada da cannabis) na melhoria da qualidade de vida de pessoas que sofrem de sintomas de COVID longa.
Como se contrair COVID-19 não fosse horrível o suficiente, estudos indicam que mais da metade (54%) dos pacientes que sobreviveram ainda experimentam pelo menos um sintoma seis meses ou mais após o diagnóstico, de acordo com uma pesquisa abrangente publicada no Journal of the American Medical Association que compilou os resultados de 57 estudos com mais de 250.000 sobreviventes da COVID-19.
A síndrome pós-COVID, ou COVID longa, como ficou mais conhecida, traz uma lista assustadora de sintomas potencialmente debilitantes, incluindo ansiedade, complicações cardíacas, depressão, dificuldade para respirar, fadiga, distúrbios do sono e perda de memória a curto prazo, para citar apenas alguns.
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Para complicar, os sintomas da COVID longa podem afetar qualquer pessoa que tenha sido infectada pela COVID-19, mesmo aquelas que desenvolveram apenas sintomas leves ou que tiveram casos assintomáticos.
A COVID-19 não tem sido gentil com o Brasil, para dizer o mínimo. Nesse mês, o número de casos atingiu 22.094.459. Globalmente, os Estados Unidos e a Índia estão em primeiro e segundo lugar, respectivamente, seguidos pelo Brasil, em termos dos países que tiveram o pior desempenho no controle da doença.
Considerando a projeção de diversos estudos, quase 12 milhões de brasileiros provavelmente sofrerão de sintomas associados à síndrome pós-COVID. À medida que mais variantes aparecem – como a Omicron, com casos já confirmados no Brasil –, esse número pode subir drasticamente.
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Ainda, como resultado da pandemia em curso, a taxa de desemprego no Brasil atingiu um recorde histórico (14,7%) em março de 2021. É preciso considerar que se uma parcela significativa das pessoas que teve COVID apresentar sintomas prolongados, isso pode impactar ainda mais a recuperação de uma economia já enfraquecida, que entrou em “recessão técnica” no início de dezembro, após o Banco Central divulgar que o PIB encolheu 0,1% durante o terceiro trimestre de 2021.
Todo esse contexto é importante para compreender a dimensão do impacto que o ensaio clínico conduzido pelo InCor pode causar dependendo dos resultados obtidos.
Verdemed: novo estudo clínico para testar CBD
Nada sobre a cannabis medicinal no Brasil é simples. Mas para entender melhor o estudo clínico, é necessário algum contexto:
O Brasil mantém diretrizes rigorosas para regulamentar os produtos de cannabis medicinal, sendo que todos devem receber um selo de aprovação da ANVISA, a agência reguladora nacional de saúde do país (o equivalente à Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos). Uma dessas exigências é de que, antes que uma empresa possa fazer a indicação médica de um novo tratamento derivado de cannabis, ela deve fornecer dados clínicos indicando a eficácia do medicamento.
A Verdemed é uma empresa farmacêutica que desenvolve medicamentos a partir da cannabis fundada por brasileiros e sediada em Toronto, no Canadá. Ela possui uma subsidiária, a Verdemed Farmacêutica Ltda., sediada no Brasil. A Clever Leaves, um dos muitos fornecedores da Verdemed, é uma multinacional, produtora licenciada de canabinóides de qualidade farmacêutica, desenvolvida e processada a partir do seu cultivo de cannabis e de seus laboratórios na Colômbia.
Por meio de sua subsidiária brasileira, a Verdemed registrou junto à ANVISA um extrato de CBD de espectro completo, de qualidade farmacêutica, desenvolvido pela Clever Leaves. Por quê? Somente as empresas farmacêuticas brasileiras podem registrar produtos à base de cannabis no Brasil. O ensaio clínico do InCor testará uma versão de 50 miligramas por mililitro deste produto de CBD.
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A Lei Brasileira de Cannabis de 2019 (RDC 327) estabelece a estrutura regulatória para medicamentos derivados da cannabis produzidos de acordo com os mesmos padrões farmacêuticos rígidos aplicados a qualquer outra droga. Isto, segundo José Bacellar, presidente e CEO da Verdemed, faz com que a designação de grau farmacêutico seja essencial.
“Aderir a processos de fabricação de grau farmacêutico significa que nossa formulação de cannabis medicinal é consistente, e cada prescrição permanece estável por 18 meses”, disse Bacellar. “Os pacientes recebem a mesma qualidade intrínseca encontrada em qualquer produto de grau farmacêutico”.
A cannabis em ensaios clínicos
Edimar Bocchi, diretor do Núcleo de Insuficiência Cardíaca e Dispositivos Mecânicos para Insuficiência Cardíaca do InCor, liderará o ensaio clínico duplo-cego. Durante um período de três meses, 290 pacientes tomarão um placebo ou o extrato do CBD.
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“O objetivo do estudo é testar a hipótese de que o canabidiol pode melhorar a qualidade de vida de pacientes com síndrome pós-COVID em comparação com um placebo de 100 mg duas vezes por dia”, disse Bocchi. “E, também, avaliar o efeito do canabidiol na melhora de sintomas ou sinais específicos de doenças conseqüentes da COVID-19 depois de três meses de tratamento, em comparação com o placebo”.
Embora a COVID longa ainda seja nova, os dados sobre ela são ao mesmo tempo significativos e alarmantes.
Com base em dados epidemiológicos, é esperado que COVID longa seja o próximo desastre de saúde pública. Embora os dados ainda estejam surgindo, a idade média dos pacientes com COVID longa é de cerca de 40 anos, o que significa que a maioria dos afetados está em seus melhores anos de trabalho, o que pode gerar conseqüências econômicas.
Edimar Bocchi, diretor do Núcleo de Insuficiência Cardíaca e Dispositivos Mecânicos para Insuficiência Cardíaca do InCor
Até abril do próximo ano, tanto Bacellar como Bocchi esperam saber se a cannabis medicinal da Verdemed melhora a qualidade de vida das pessoas com COVID longa. Se provarem, Bacellar submeterá os resultados à ANVISA para exame. A agência pode solicitar mais estudos antes de validar os resultados da Fase 3 dos ensaios.
Se a ANVISA concordar que o ensaio clínico comprova com sucesso a eficácia do medicamento, Bacellar explicou que a agência certamente exigirá um ensaio clínico de Fase 4 envolvendo 1.000 pacientes. Ao mesmo tempo, Bocchi assumiria o trabalho acadêmico de publicar o estudo em uma revista médica para revisão por pares.
Entretanto, com o ensaio clínico de Fase 3 comprovando a eficácia do extrato, a Verdemed estaria livre para fazer a indicação médica do produto.
Este é um estudo muito importante, pois a CBD nunca foi testada para este fim. Primeiro, devemos provar a eficácia. Se pudermos provar a eficácia – que nosso CBD melhora a qualidade de vida de pessoas com COVID longa –, então tenho a obrigação moral de dizer às pessoas para discutirem isso com seu médico, porque isso pode ajudá-las.
José Bacellar, presidente e CEO da Verdemed
(Traduzido por Carolina Pompeo)