Estou certa de que o nome The Clinic, uma popular revista de sátiras políticas chilenas fundada em 1998, além de ironizar a The London Clinic – instituição privada na qual o General Augusto Pinochet se internou, em Londres, naquele mesmo ano, para se submeter a uma cirurgia depois de ser avisado pela Scotland Yard de que havia uma ordem de captura internacional em seu nome – também marcava para os editores o fim do que o General imaginava ser sua imortalidade.
Senador vitalício até então e gozando da fortuna usurpada durante seu governo absolutista, Pinochet passou 503 dias em Londres submerso em uma briga judicial que, no fim, chegou à conclusão de que a saúde do ditador havia se deteriorado tanto que ele não estava apto a ser julgado.
De volta ao Chile, Pinochet permaneceu até sua morte em prisão domiciliar, sem nunca ter sido condenado pelos mais de 300 casos que pesavam sobre ele, desde crimes de lesa humanidade, como assassinato e tortura, à corrupção, lavagem de dinheiro e falsificação de documentos. Mas, quando morreu, já não era um senador vitalício e nem a figura patriarcal chilena de um país forjado em sangue.
Morto Pinochet, faltava “matar” também um “livro” que sintetiza as ideias do ditador.
Há exato um ano, eu escrevia sobre os protestos que eclodiram no Chile. O motivo, que parecia mundano, o aumento da tarifa do metrô, mostrou-se apenas a gota d’água para uma população insatisfeita com o sistema econômico implantado desde Pinochet – na mesma época, protestos também explodiram no Equador e na Bolívia, reverberando as velhas diferenças identitárias da América Latina.
Naquela mesma época, a caminho de Buenos Aires para cobrir as eleições presidenciais, eu me perguntava se esses movimentos não eram eventos de resistência colonizatória, como se o continente estivesse passando por uma crise de identidade que vinha de uma infância extirpada por colonizadores, uma adolescência moldada por sistemas econômicos estrangeiros e ditaduras patrocinadas por interesses espúrios, além de maturidade alicerçada em uma globalização obrigatória.
Equador e Bolívia se encaixavam bem nesse modelo, com seu povo originário ainda vivendo sob apartheid econômico. Mas o Chile conservador, católico e neoliberal, aparentemente modelo de “civilização” para os vizinhos, “levantou sobrancelhas” quando mostrou que seus terremotos não eram apenas incidentes naturais.
Chile “o laboratório” do neoliberalismo na América Latina, se parecia mais à “clínica” de um sistema que respirava por aparelhos. Muitos foram pegos de surpresa, já que os índices econômicos, quando olhados por cima, não mostravam uma sociedade decadente por ser desigual.
A sombra de Pinochet continuava lançada sobre as páginas de uma constituição forjada durante a ditadura, pavimentada com os ideais de Milton Friedman, professor da Universidade de Chicago, precursor do neoliberalismo. Ironicamente, Friedman acreditava que capitalismo e liberdade andavam de mãos dadas, gerando igualdade, com um Estado mínimo.
Tal teoria aplicada no Chile, gerou para muitos as discrepâncias que vemos hoje e, para outros, o boom econômico de outrora. Porém, a clínica de experimentos econômicos de décadas de produtos financeiros e liberdade de capitais, sem um colchão social para a população, não contempla mais o novo Chile.
O fato é que, no Chile, tal sistema foi a base das revoltas que temos visto desde o ano passado, com uma população cansada de acumular deveres e ser deficitária em direitos. Foi a ausência de direitos fundamentais, como saúde e educação universitária gratuitas, a aposentadoria minguada (o Chile adota capitalização individual, com pouca ou nenhuma contribuição do Estado para a previdência), a forte presença policial, a privatização de empresas públicas e os resquícios tirânicos da ditadura de Pinochet na Constituição vigente que levaram milhares de chilenos às ruas e às urnas para pedir uma nova Constituição.
Muitos tardaram em ver que, apesar de o Chile liderar o PIB per capita da região, o país era também uma das nações com maior disparidade salarial da América do Sul, com um número de bilionários que supera a Rússia – ou seja, com uma desigualdade social que desafiava a prosperidade econômica.
Uma Constituição com participação de mulheres e minorias
A ideia de uma nova Constituinte foi acatada, no fim de semana passado, por cerca de 80% da população. Não só isso: a nova Constituição será escrita por constituintes eleitos (políticos que queiram participar devem abrir mão de seus cargos para concorrer a um lugar na Constituinte); com representatividade de minorias (10% deverão ser indígenas, já que os mapuches, etnia predominante entre os povos originários do país, eram considerados inexistentes na Constituição vigente): e pelo menos 50% terão de ser mulheres.
Será uma assembleia paritária, inédita em um mundo marcado por esmagadora maioria masculina na esfera política. O processo poderá tomar até dois anos, mas mudará para sempre a história de um dos países até então considerado berço do “neoliberalismo” na região. Alguns especialistas até se arriscam em dizer que pode estar nascendo o primeiro país pós-neoliberal do mundo e se perguntam se este movimento não será contagioso.
Os efeitos na América Latina
Ainda não se sabe que papel caberá ao Brasil nessa nova América Latina. Com o ministro da economia Paulo Guedes, o Brasil chegou a ensaiar uns passinhos espelhando-se na escola de Chicago, na qual Guedes fez escola, e no sistema chileno, cuja concepção ele teve participação. Mas a pandemia de COVID-19 freou o ímpeto de Guedes, por ora.
Uma derrota de Donald Trump na eleição presidencial nos Estados Unidos, e um aprofundamento da guerra comercial com a China, somados a uma Europa insatisfeita com as políticas ambientais do Brasil, freando acordos multilaterais devido a esta insatisfação, podem levar o país a se tornar um pária internacional.
Nesse tabuleiro, é imperativo estar atento ao que acontece na grama do vizinho. Será difícil vender um sistema moribundo cuja roupagem parece próspera, mas que, desnudo, é mais uma das faces da desigualdade social do continente.
O domingo do dia 25 de outubro de 2020 chegou carregado por um rio de sangue e perdas, mas que ditará os rumos da história chilena nos próximos anos. Nos protestos de 2019, 36 pessoas perderam suas vidas para a violência policial, mais de duas mil ficaram feridas e 356 terminaram cegas, vítimas das balas de borracha usadas pelas forças de segurança na repressão das manifestações. À época, a truculência dos carabineiros, os policiais chilenos, já parecia anunciar a profundidade das mudanças desejadas pelo povo chileno.

O domingo anterior ao referendo da Constituição já havia sido de comoção na América do Sul, com os bolivianos trazendo de volta ao poder o partido de Evo Morales, na pessoa do presidente Luis Arce. Morales havia deixado o país meses antes, após renunciar debaixo de violentos levantes. Exilado, ele passou por Cuba e México, e firmou residência na Argentina, protegido pelo recém-eleito Alberto Fernández. Arce, histórico Ministro da Economia de Evo, volta agora como presidente em uma espécie de redenção de Morales frente ao mundo.
Em fevereiro, será a vez do Equador escolher seu destino. A maré de mudanças açoita as costas do continente latino-americano numa velocidade considerável.
Pode ser que o Chile continue sua vocação de laboratório ou “clínica” de experimentos na América Latina, em uma maneira jamais contemplada por Pinochet. Ninguém sabe ainda o que significa exatamente desliberalizar um país.
Mas o Chile pode ser o laboratório de um novo sistema que permita o equilíbrio entre um Estado social e outro liberal. Ainda é cedo para dizer o que sairá da nova Constituição. Alguns pontos são previsíveis, outros dependem do processo em si. O fato é que os chilenos escolheram um novo caminho na direção proporcionalmente oposta ao trajeto que fazia até agora.