País com um excelente marketing pessoal (ou, neste caso, talvez seria melhor dizer “marketing nacional”), o Chile passava ao exterior (e especialmente para os habitantes dos países latino-americanos que não possuem fronteiras com ele) a imagem de uma nação previsível, sóbria, sem solavancos ou sobressaltos. “A imagem”, ressalto.
Mas a partir de 2019 os chilenos começaram a viver em uma inédita montanha-russa. E assim tem sido nestes últimos dois anos. Dias atrás, o país teve mais um carimbo no atestado da imprevisibilidade com os resultados do primeiro turno das eleições presidenciais. Pela primeira vez desde a volta da democracia, nenhum dos dois candidatos que passaram para o segundo turno pertence a uma das duas grandes coalizões que comandaram o país desde 1990.
Uma coalizão era de centro-esquerda (uma centro-esquerda light, diet, quase centro-centro). A outra, de centro-direita (tendendo mais para direita-direita). Esses grupos aglutinavam a imensa maioria dos votos dos eleitores chilenos.
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O melhor exemplo foram as eleições de 1999, quando o socialista Ricardo Lagos e o conservador-direitista Joaquín Lavín, juntos, tiveram 98% dos votos. Já em 2017, as duas coalizões não eram vistas como essa “Brastemp” toda e receberam juntas quase 60% dos votos, distribuídos entre os então candidatos Alejandro Guiller e o atual presidente Sebastián Piñera. Mas, apesar disso, ainda eram as grandes protagonistas da política chilena.
No entanto, o primeiro turno das eleições realizado dias atrás mostrou que as duas coalizões eram cartas fora do baralho, já que juntas somente conseguiram exíguos 24% dos votos.
Obviamente, nenhum dos dois candidatos, nem a opositora Yasna Provoste nem o governista Sebastián Sichel passaram para o segundo turno.
Por trás desta perda de poder e da passagem desses dois grupos ao status de atores coadjuvantes da obra de teatro da política chilena estão as manifestações populares de 2019.
A fúria das pessoas que protestavam era principalmente direcionada contra o governo do presidente Piñera. Mas também era contra os partidos tradicionais da oposição. E por “tradicionais” não me refiro aos “tradicionalistas”, mas sim aos partidos históricos de centro, direita e de esquerda, alguns de um século de existência, outros de mais de meio século.
A reação lerda dos dois grupos tradicionais perante as maiores manifestações da história do Chile causou mais erosão às respectivas imagens. Isso levou boa parte da sociedade a olhar com atenção as figuras que estavam na periferia da política. Isto é, os chilenos foram se afastando das coalizões que sempre haviam orbitado ao redor do centro e foram para os extremos.
Estas figuras da periferia política – rigorosamente falando – não eram “outsiders”.
Uma pessoa que é um “outsider” da política é alguém que está totalmente fora da política. Não era este o caso das duas figuras que surgiram neste primeiro turno: o esquerdista Gabriel Boric e o extrema-direitista José Antonio Kast.
Kast, de extrema-direita, da coalizão Frente Social Cristã, liderada pelo partido Republicano, fundado há apenas 2 anos, teve 27,9% dos votos.
Já o candidato da esquerda Gabriel Boric, do partido Convergência Social, fundado há 3 anos, da coalizão “Aprovo Dignidade”, conseguiu 25,8% dos votos. A diferença entre Kast e Boric foi pequena, de apenas 2,1 pontos percentuais.
Eleições polarizadas? Nada disso
Por isso, vamos desmistificar o chavão de “eleições polarizadas no primeiro turno presidencial chileno” deste ano. Necas de pitibiriba. O processo eleitoral da primeira etapa foi “fragmentado” (ou “atomizado”, se preferirem).
Teria sido “polarizado” se Kast tivesse conseguido 48% dos votos e Boric 46%, por exemplo. Mas, não foi assim.
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Aliás, Kast, ao obter seus 27,9%, teve a menor proporção de votos de um primeiro colocado em uma eleição presidencial chilena.
No entanto, agora sim, para o segundo turno, a eleição ficará polarizada. Mais ainda com a pirotecnia verbal que os dois começaram a disparar. Kast, acusando Boric de “comunista” e “terrorista”, enquanto que Boric chama o rival de “fascista”.
A missão dos dois candidatos no exíguo tempo que resta até a segunda parte das eleições será dupla:
1 – Por um lado, seduzir o eleitorado que ficou perto do centro. Para isso, os dois precisarão moderar seus respectivos discursos, algo que não será fácil.
2 – Por outro lado, terão que convencer as vastas multidões que não foram votar no primeiro turno. E este é um gigantesco problema, já que 53% dos eleitores não compareceram perante as urnas, proporção que constitui a segunda maior abstenção eleitoral desde a volta da democracia em 1990.
É um paradoxo, mas as pessoas de 20 a 24 anos que foram em massa às manifestações nos últimos dois anos, constituem o grupo que menos vai aos centros de votação. Isto é, ali poderiam estar grande parte dos potenciais votantes de Boric. Sua missão será convencer essas massas de jovens de que manifestar é importante…mas votar é mais ainda, pois é a única forma de formalizar, legalmente, os pedidos de mudança na política.
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Na contramão, o grupo que mais participa das eleições é a faixa dos 65 a 69 anos de idade. E esse é um setor que sente mais apreço pela mensagem de “ordem” de Kast.
A matemática do primeiro turno indica que, se a política não tivesse nuances, a direita seria vencedora na próxima etapa, já que a soma de todos os votos do leque da direita, passando pela centro-direita, direita e extrema-direita, é de 53,5%.
E a soma dos votos dos candidatos da esquerda, centro-esquerda e esquerda radical é de 46,5%. Mas, o eleitorado latino-americano é mutável, tal como a ária “la donna è mobile”, de Giuseppe Verdi, da ópera “Rigoleto”, na qual indica que uma pessoa muda de opinião e de postura como uma pena levada pelo vento.
Neste caso, o mistério é o comportamento que terão no segundo turno os eleitores do terceiro colocado, Franco Parisi, da direita populista, do Partido de la Gente (Partido das Pessoas).

Parisi é um caso sui generis da política latino-americana. Ele fez toda a campanha online; não discursou em palanques nem beijou bebês e sequer participou dos debates dos candidatos presidenciais. Paris fez toda a campanha desde o Alabama, Estados Unidos, onde mora, já que não podia voltar ao Chile pelo risco de ser detido pela Justiça por uma série de falcatruas.
No entanto, entra para a História por ter feito a primeira campanha presidencial da história com resultados de peso, já que obteve 13,1% dos votos.
Mas voltemos aos eleitores deste peculiar candidato. Parisi era o candidato que não tinha chance alguma de vencer. Por isso, seus eleitores, mais do que votar em uma plataforma política para chegar ao poder, estavam – pela via do voto – mostrando seu desagrado com o sistema.
Mas a pergunta é “se ele é da direita populista, todos seus eleitores iriam para Kast?”. Ah! Boa pergunta. São uns 900 mil votos, majoritariamente masculinos, com uma formação educativa de nível médio baixo, economicamente de classe média baixa, além de relativamente jovens, pois uns 60% desses eleitores teriam menos de 40 anos de idade.
Este grupo tem como característica principal seu rechaço à política tradicional. Portanto, poderiam aderir a qualquer tipo de oferta (e gritaria) populista. Isto é, o apelo emocional com a apresentação de “soluções fáceis” e categóricas para os problemas do país.
Uma pesquisa feita com esse eleitorado pela consultoria Pulso Ciudadano indicou que dos eleitores de Parisi 28,4% destinariam seu voto a Boric no segundo turno, enquanto que 26,7% votariam por Kast. E quase uns 45% daqueles que dizem que votaram em Parisi não votariam no segundo turno. Isto é, não sairiam de suas casas para votar, ou votariam em branco ou anulariam.
Paradoxos da atual conjuntura chilena
A sociedade foi em peso protestar contra o atual sistema econômico e político em vigência desde 1990. No entanto, boa parte da sociedade decidiu votar em candidatos – como Kast e Sichel – que defendem a permanência do sistema (um de forma enfática e fervorosa e o outro de forma mais sutil). No entanto, boa parte da sociedade – tal como acabamos de explicar – decidiu ficar em casa e não votar no primeiro turno.
Os analistas políticos não chegaram a conclusões categóricas sobre este fenômeno. São os mesmos chilenos que protestaram em 2019 e 2020 contra o sistema e que em maio elegeram governadores e prefeitos em todo o país de esquerda e centro-esquerda (eleição na qual a direita ficou de escanteio, exceto por um estado). E na mesma ocasião votaram em uma constituinte que tem uma maioria avassaladora de centro-esquerda.
No entanto, ali está uma pista interessante que mostrava a tendência antissistema atual dos chilenos: 70% dos candidatos eleitores para a Constituintes eram independentes. Esse era um prenúncio de que o primeiro turno presidencial seria fragmentadíssmo.
Mas, a esquerda considerou que, com esses resultados positivos nas eleições de governadores e constituintes, a vitória nas presidenciais estava assegurada.
Ao mesmo tempo, os analistas destacam que muitas pessoas que até participaram dos primeiros protestos em 2019 depois se afastaram, assustados com a violência de umas minorias que desataram saques e depredação de estabelecimentos comerciais e patrimônio público. Esses setores, que inicialmente simpatizavam com propostas de mudanças, agora se refugiam nos pedidos de “ordem” e “segurança” por parte da extrema-direita.
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Isto é, há um enorme setor de centro que deseja um sistema de aposentadorias menos (ou nada) neoliberal, tal como foi até agora, privado. Existe um desejo de maior presença do Estado nisso (o que Kast não quer de forma alguma). Mas ao mesmo tempo esses vastos setores querem “ordem” e não os destroços das manifestações (o que Boric não condenou de forma clara).
Tudo isso indica que se o caminho para o segundo turno fosse um cenário de guerra poderia equivaler a um campo minado no qual os candidatos pisarão terreno desconhecido.
Kast terá que moderar seu discurso para atrair outros eleitores. E terá que domar seus aliados mais extremistas (sim, existem deputados mais extremistas do que Kast). Esse foi o caso de Joahnnes Kaiser, deputado “kastista” que dias depois de ser eleito renunciou devido a uma série de comentários públicos misóginos e xenófobos. Kaiser havia emitido comentários nos quais ponderava que o direito de voto às mulheres deveria ser eliminado, além de ironizar as vítimas do regime militar do ditador e general Augusto Pinochet (1973-99). “Nós rejeitamos qualquer expressão do estilo emitida pelo deputado eleito Kaiser”, disse Kast rapidamente, tentando se livrar do caso, especialmente sobre a questão do direito de voto das mulheres.

Kast, embora declarado fã de Pinochet, tenta manter que os pinochetistas mais frenéticos de suas fileiras evitem declarações que lhe compliquem o acesso ao eleitorado de centro. Junto com isso, tenta conter os fundamentalistas religiosos que o respaldam. Isto é, seria como um grupo de fanáticos que seu líder lhes dá a mensagem de “podem continuar fanáticos, mas tentem mostrar isso menos, pelo menos até terminar o segundo turno”.
Boric, enquanto isso, está moderando seu discurso. Ele já não repete sua frase “se o Chile foi o berço do neoliberalismo, o país também será o túmulo dele”. Isso, por um lado, torna esse ex-líder estudantil em uma figura mais potável para o eleitorado do centro. No entanto, a insistência de Boric de agradar o centro nos últimos dias e de atrair integrantes do Partido Socialista (que fizeram parte da coalização de centro-esquerda que governou o Chile em 23 destes 31 anos de democracia) desatou a irritação do Partido Comunista, que é um dos pilares de sua campanha.
O PC considera que o PS é um partido burguês. Os comunistas indicam que se os socialistas tiverem muita presença em um eventual futuro governo Boric, a ala esquerda radical ficará preterida.
O ex-senador e ex-ministro da Economia Carlos Ominami, de centro-esquerda, apoia Boric (Ominami faz parte do grupo de economistas de sua equipe), mas o critica afirmando que sua campanha tem “uma estética juvenil muito ‘ñuñoína’. Este termo se refere ao bairro do nordeste de Santiago, a capital, o de Ñuñoa, de classe média alta e alta.
As divisões da esquerda costumam ser mais viscerais do que as divisões da direita. Esse é um clássico mundial. E isso se repete, mais uma vez, no sul deste continente. E, para complicar, a caminho de um segundo turno.
Se eventualmente Kast for eleito, terá que governar com um Senado com um empate entre a totalidade dos parlamentares da direita e da esquerda. Na Câmara de deputados a centro-esquerda terá uma leve maioria (se ela votar de forma 100% alinhada).
A Assembleia Constituinte
O maior desafio será o de lidar com uma Assembleia Constituinte que está em pleno andamento, preparando o texto da nova carta magna, de intenso tom progressista.
Esta Constituinte avalia seriamente reduzir de forma drástica o poder presidencial. Isto é, a Constituinte definirá se o sistema continuará sendo hiper-presidencialista (tal como é hoje, já que o chefe do Poder Executivo tem poderes para bloquear diversas iniciativas do Parlamento), ou se será presidencialista mas com um peso menor do presidente. Ou, se o Chile será governado por um sistema parlamentarista.
Desta forma, não dá para descartar que o novo presidente assumirá com os amplos poderes que a constituição atual lhe confere. E, meses mais tarde, a partir do segundo semestre do ano que vem, poderia ter os poderes amplamente reduzidos.
No entanto, obviamente, tudo isso depende que a nova carta magna seja aprovada. E aí desponta a nova incerteza com a qual o Chile terá que lidar no ano que vem.
A Constituinte tem um prazo de 9 meses para preparar a carta magna. Mas, pode contar com uma única prorrogação de 3 meses. Desta forma, teria que concluir o texto até, no mais tardar, julho do ano que vem. Depois, terá que ser aprovada por dois terços da Constituinte. E na sequência, passar pelo crivo de um plebiscito (e esse sim, com voto obrigatório).
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Como estará, psicologicamente, o eleitor chileno no ano que vem? Aprovará a nova carta magna e enterrará dessa forma a constituição em vigência desde 1980, a do general Pinochet? Ou votará contra a nova carta magna? Se for assim, continuará a carta magna pinochetista. E, consequentemente, será o pano de fundo de mais conflitos sociais pelos próximos anos no Chile.
Meses atrás a Constituinte era definida como “o último vestígio de Pinochet na vida dos chilenos”. Mas o surgimento de Kast mostra que a figura do defunto e sanguinário ex-ditador continua pairando sobre o cotidiano deste país, no mais assustador mode Walking Dead.