Cena do trailer do filme Contágio, de Steven Soderbergh. Foto: Contágio/WarnerBros/Reprodução.
Sociedade

Como a literatura e indústria de entretenimento "previram" a COVID-19

Depois de quase um ano vivendo essa peça que o destino nos pregou, revisitei alguns dos trabalhos "visionários" que previram a pandemia do novo coronavirus

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De A Peste, de Albert Camus, ao Amor em Tempos de Cólera, de Gabriel García Márquez, à Hollywood, passando também por Dean Koontz que, nos anos 1980, escreveu um livro sobre o vírus “Wuhan-400”. Prestes a completar um ano – a OMS declarou que a doença causada pelo Sars-Cov-2 era uma pandemia no dia 11 de março – , revisitei os trabalhos “visionários” da literatura e da indústria do entretenimento que, de alguma forma, previram o que estamos vivendo hoje.

 “Ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”, diz o trecho de desfecho de A Peste, livro de Camus de 1947 que, no início da pandemia do novo coronavirus no ano passado, voltou à lista de best sellers.

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No trecho acima, o desfecho do livro de Camus, que trata sobre uma epidemia em uma cidade da Argélia, o personagem principal, um médico, reflete sobre a cidade que venceu uma epidemia, mas que, para ele, ignora futuras ameaças.

Em 2015, o co-fundador da Microsoft, Bill Gates, participou de um Ted Talks intitulado O próximo surto? Não estamos preparados. Nele, ele dizia não temer nem guerras nem bombas nucleares. “Quando eu era criança, o desastre que mais temíamos era uma guerra nuclear. Hoje, o maior risco de catástrofe global não se parece com uma bomba, mas sim com um vírus”.

E acrescentou: “Atualmente, o maior risco de uma catástrofe global está em um vírus altamente infeccioso, não numa guerra. Se algo matar 10 milhões de pessoas nas próximas décadas, serão micróbios, não mísseis”.

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De bilionários a médiuns famosos

Se o pessoal não acreditou nem Bill Gates, imagine nos médiuns. Sylvia Browne era uma autora e médium conhecida em Hollywood, tanto que chegou a ser entrevistada pelo legendário jornalista, falecido há poucos dias vítima da COVID-19, Larry King. Em 2008, em um livro, previu: “por volta de 2020, uma doença grave do tipo pneumonia se espalhará por todo o mundo, atacando os pulmões e os tubos brônquicos, resistindo a todos os tratamentos conhecidos.”

Como Bill Gates e Sylvia Browne, centenas de livros, filmes e programas de televisão já versaram antes sobre epidemias e pandemias. Alguns, pegaram carona em epidemias do passado para imaginar cenários futuros. O que poucos imaginavam é que muitos chegariam tão perto do cenário atual.

“Fique longe de outras pessoas”

O filme Contágio de 2011 ficou bastante tempo no ano passado entre os mais assistidos da Netflix. Não foi à toa. O thriller de Steven Soderbergh narra como uma epidemia virou pandemia, saindo da Ásia com a personagem de Gwyneth Paltrow, e chegando aos Estados Unidos. “Não fale com ninguém, não encoste em ninguém e fique longe de outras pessoas”, diz no filme a personagem interpretado por Kate Winslet, uma infectologista. O sucesso não foi à toa. O filme contou com a consultoria de Larry Brilliant, um epidemiologista que teve um papel importantíssimo na erradicação da varíola e no combate à poliomielite. Ele vinha avisando desde 2006, em suas palestras, que o mundo estava por enfrentar algo similar ao novo coronavírus. Soderbergh bebeu dessa fonte e acertou bastante no prognóstico.

De fake news ao Zoom, quem acertou

Ao que parece, nem epidemias nem mesmo as fake news são novidade. O escritor Daniel Defoe conta como elas, assim como a peste negra, se espalharam por Londres em 1665, no livro Um Diário de uma Peste, uma mistura de ficção e realidade. Muitos aderiram a tratamentos estapafúrdios como mascar tabaco e pendurar uma noz moscada no pescoço, espalhando a notícia que isso servia para afastar a peste bubônica.

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“Um mal sempre chama outro. Os terrores e medos do povo o conduziam a mil fraquezas, loucuras e atos perversos”, escreveu. Ele acertou também no isolamento social, tanto a quarentena imposta pelo governo, quanto as que se auto impunham certas famílias. “Houve famílias que se trancaram por meses: ninguém nunca as viu ou ouvir falar delas até a doença desaparecer completamente, quando, então, saíram para a rua, bem saudáveis”, conta Defoe. Ele também narrou como, com o tempo, as pessoas começaram a ignorar os alertas. “Quando a peste chegou ao clímax, as pessoas eram menos cautelosas do que no princípio. Se tornaram intrépidas e aventureiras: não se intimidavam mais umas às outras, nem permaneciam dentro de casa. Iam a qualquer lugar, iam a toda a parte e voltaram a conversar”.

Já na América Latina, o livro do escritor Gabriel García Márquez O Amor nos Tempos do Cólera tem como cenário uma epidemia de cólera na cidade colombiana de Cartagena, no século 19. No começo da pandemia do novo coronavírus, no ano passado, o livro também foi alvo de fake news quando um texto de um diálogo entre um menino e um capitão de navio inundou as redes sociais. O texto não está no livro. No entanto, há muitas metáforas com as miseráveis condições de combate a epidemias na América do Sul.

No livro, é o romance entre os personagens Florentino Ariza e Fermina Daza que mostra o impacto do isolamento no amor. Cartas e recados de uma relação à distância, por diversos motivos, são o Zoom dos nossos tempos. Há inclusive duas metáforas interessantes no livro: a primeira é que Florentino é tefegrafista, ou seja, operador de telégrafo, uma profissão quase extinta hoje, mas que conectava pessoas distanciadas; e a segunda é que ele precisa, em suas próprias palavras, “ficar vivo” se quer concretizar seu amor por Fermina. Alô Tinder, alô Happn? Sem saúde não tem date.

“Macacos me mordam”

Cena do filme Epidemia, que conta a história de uma doença altamente infecciosa surgida de um macaco. Foto: WarnerBros/Reprodução.

Outro filme que ficou entre os mais vistos durante a pandemia foi  Epidemia, de 1995, que conta a história de uma doença que se alastrou por uma cidadezinha na Califórnia graças a um macaco infectado trazido como mascote da África. O filme reforça a tese de que a epidemia vem do contato indevidos com animais, como a famosa sopa de morcego, que, dizem, começou essa tragédia toda. O personagem de Dustin Hoffman passa o thriller inteiro caçando o animal em busca de respostas para a doença.

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O “sexto sentido”

Duas narrativas acertaram em cheio no que diz respeito aos sintomas do novo coronavírus, como as perdas de sentidos como olfato e paladar. Ensaio Sobre a Cegueira, filme baseado no romance homônimo de José Saramago, é um deles. Na epidemia do livro as pessoas não ficam gripadas, não perdem olfato ou paladar, mas ficam cegas. E são isoladas, o que traz os piores aspectos delas para o convívio em sociedade. 

Cena do filme Ensaio Sobre a Cegueira, baseado na obra de José Saramago. Foto: Reprodução.

Já o filme Sentidos do Amor, de 2011, conta o romance entre um chef de cozinha (Ewan McGregor) e uma epidemiologista (Eva Green). No filme, as pessoas vão perdendo os sentidos, um a um, durante uma estranha epidemia, começando pelo olfato, seguido do paladar. E também vão pirando, tendo ataques de choro, entre outras reações psicológicas que não são incomuns no contexto atual.

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Wuhan-400

A obra de Dean Koontz, The Eyes of Darkness, causou uma enxurrada de publicações e matérias sobre uma suposta previsão da pandemia do novo coronavírus. O motivo: o livro de 1981 faz menção ao vírus “Wuhan-400”, nome da mesma região do primeiro surto de COVID-19, quatro décadas antes da atual pandemia. Mas as coincidências param aí.

Na novela de Koontz, o vírus é criado em laboratório, é algo sintético e não se parece com o Sars-Cov-2. No final do ano passado, o próprio autor, do alto do seu ostracismo, deu um ponto final à polêmica. “Era uma daquelas coisas da internet que são basicamente falsas”, disse Koontz. “Eu tinha um livro há 40 anos que mencionava o vírus Wuhan e ele veio de um laboratório na China. Eu não fiz uma previsão de uma pandemia, foi uma história totalmente diferente”, disse em rara entrevista, à ABC News.

Stephen King também negou em um Twitter que a série The Stand, baseada no livro homônimo do autor, tivesse qualquer conexão com a pandemia do novo coronavírus. A obra ganhou releitura em série da CBS no final do ano passado. “Não, o coronavírus NÃO é como The Stand. Não é nem de perto tão sério. É eminentemente passível de sobrevivência. Mantenham a calma e tomem todas as precauções”.

O imaginário e as lições aprendidas de outras pandemias; a arte imita a vida. É interessante ver como as maiores cabeças da indústria do entretenimento pensaram o que é visto hoje.

Mas, temos de admitir que a realidade atual é “mais estranha que a ficção”. 

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