É bem verdade que as produções latino-americanas já se consagraram na indústria cinematográfica mundial. Com um histórico que reúne uma longa lista de indicações ao Oscar, além de outras premiações, títulos como os brasileiros Cidade de Deus e Central do Brasil, o argentino O segredo dos seus olhos, o mexicano O Labirinto do Fauno e mais recentemente, Roma, do também mexicano Alfonso Cuarón, ajudaram a tornar a América Latina referência quando o assunto é cinema.
Mas, se antes, para que essas produções chegassem a uma audiência estrangeira, havia uma grande dependência do circuito cinematográfico – via grandes produções ou por meio de títulos voltados a um público de cinema independente – agora, elas ganham outro ritmo. E outras telas. “Nossa incursão na América Latina em 2011 reflete nossa convicção de que toda a região, do Brasil ao México, quer ver suas próprias narrativas refletidas na tela”, conta Francisco Ramos, vice-presidente de produções para a América Latina da Netflix, em entrevista ao LABS.
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“Rapidamente começamos a produzir na região – primeiro no México, depois no Brasil – nossas duas primeiras séries feitas fora dos Estados Unidos”, relembra. Em abril, a Netflix divulgou durante o maior evento de criatividade e inovação da América Latina, o Rio2C, planos de lançar trinta produções originais brasileiras, entre filmes e séries, até o final de 2020.
“O streaming trouxe muitas oportunidades para a produção brasileira. Com a chegada das plataformas como Netflix, Amazon [Prime Video], Globoplay e outras que ainda estão por vir, a procura e a necessidade pelo produto brasileiro aumentou muito”, relata Andrea Barata Ribeiro, sócia e produtora executiva da O2 Filmes. Os filmes Cidade de Deus e Ensaio sobre a Cegueira, dirigidos pelo renomado diretor brasileiro Fernando Meirelles, e a série original da Netflix Irmandade são algumas das obras que a O2 Filmes carrega em seu portfólio.

O grande público dessas produções ainda são seus países de origem, mas já se nota um movimento de audiências estrangeiras voltando os olhos para produções latinas ou hispânicas. “Eu acredito sim que o conteúdo tenha mais chances de viajar. Veja o sucesso tremendo da A Casa de Papel. Um bom conteúdo, uma boa história e a possibilidade de ter isso à mão aumenta relativamente a chance do seu produto ser visto fora. Ainda estamos aprendendo a explorar essas possibilidades e acredito que o mundo se tornará mais flexível a conteúdos de todos os cantos do mundo”, explica Ribeiro.

O sul-coreano Parasita, do cineasta Bong Joon-ho, ilustra a força desse movimento. Ao faturar quatro estatuetas na premiação do Oscar 2020, a produção fez história ao se tornar o primeiro título em língua não-inglesa a vencer como melhor filme. No palco da cerimônia, o diretor salientou que “uma vez superada a barreira das legendas, vocês conhecerão a muitos filmes incríveis”, em menção à falta de hábito dos norte-americanos em assistir obras de outros idiomas.
Há um apetite por histórias latino-americanas, evidentemente em toda a América Latina, Espanha e Portugal e, de certo modo, em outras regiões do mundo.
Francisco Ramos, vice-presidente de produções para América Latina, Netflix
Narrativas plurais
Os gêneros das produções latinas que chegam por meio das plataformas de assinatura também já são diversos. Não que isso tenha sido um advento desses serviços: já se produziam títulos dos mais variados gêneros mesmo antes da era do streaming. Mas o que parece ter mudado é a velocidade com que essas produções estão cruzando oceanos.
Em 2018, a coprodução entre Estados Unidos e Colômbia Narcos foi a quinta série original em serviços de assinatura mais procurada no mundo, segundo dados da Parrot Analytics, software que mede a demanda global por conteúdos em plataformas. Já 3%, série brasileira de ficção científica, também da Netflix, contou com metade da audiência da primeira temporada vindo de fora do Brasil, de acordo com informações da divisão brasileira da empresa.
Para a sócia e produtora executiva da O2 Filmes, os gêneros procurados pelas plataformas na hora de produzir seus originais no Brasil muda de tempos em tempos. “No momento é quase uma unanimidade ouvirmos que o desejo são produtos para engajar a audiência jovem. Já houve tempo em que buscavam personagens mulheres protagonistas. Acho que isso muda o tempo todo”, explica.
De olho nessa estratégia de localização, outras plataformas também têm apostado em produções latino-americanas. A Amazon Prime Video, que opera no Brasil desde 2016, lançou em 2020 suas primeiras produções originais no país, incluindo o reality show Soltos em Floripa e a série documental Tudo ou Nada – Seleção Brasileira. Na América Latina, a plataforma também conta com produções originais mexicanas desde 2018, além de produções em desenvolvimento para a Argentina, Chile e Colômbia, com estreias previstas em 2020 e 2021.
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Outro serviço de streaming que, no Brasil, já era líder em número de assinantes com 22 milhões de visitantes únicos por mês, mas até então, não operava em mercados internacionais, é a Globoplay. Desde janeiro disponível nos Estados Unidos, a plataforma, comandada pela maior empresa de mídia da América Latina, Grupo Globo, chegou em terras norte-americanas custando US$13,99 e oferecendo um catálogo de séries originais que incluem o thriller ambientado na Amazônia Aruanas, e o drama Assédio, produção que também é encabeçada pela o2 Filmes.

“Histórias autênticas e locais que têm impacto nos seus países de origem são o DNA da nossa programação. As parcerias com os melhores produtores, escritores, diretores, elencos, etc., em cada um dos países onde atuamos é o nosso melhor caminho para encontrar verossimilhança”, explica Ramos. O executivo revela que entre as novidades na Netflix estão a estreia da segunda temporada de Coisa Mais Linda, ambientada no Rio de Janeiro dos anos 50, Reality Z, primeira série brasileira de zumbis, além da última temporada de 3% e do suspense policial Bom Dia, Verônica.
O audiovisual brasileiro está se mantendo devido à entrada dessas plataformas. Se não fosse isso, nós praticamente estaríamos voltando à era onde só existia a publicidade.
Andrea Barata Ribeiro, sócia e produtora executiva, O2 Filmes
“Também estamos trabalhando na segunda temporada de Sintonia. Mais filmes, especiais de comédia e séries de não-ficção chegarão para os nossos assinantes no Brasil. No México, acabamos de lançar a série para jovens chamada Control Z e nossa programação também conta com as segundas temporadas de Monarca e Luis Miguel, além da aguardada nova série sobre a cantora Selena Quintanilla”. Já na Argentina, onde a Netflix anunciou a abertura de seu escritório este ano, o mais recente lançamento é o primeiro filme original no país, La Corazonada (em português, Presságio) que estreou em 28 de maio. “Na Colômbia, lançamos recentemente a segunda temporada de Sempre Bruxa e a primeira temporada de Chichipatos, que acabamos de renovar”, conta Ramos.
As mudanças no setor audiovisual
Mas se por um lado, o número de produções latino-americanas aumentou drasticamente quando as plataformas de streaming passaram a produzir seus originais, por outro, isso não necessariamente democratizou o acesso por parte de mais produtoras. É o que relata Antonio Gonçalves Junior, sócio da Grafo Audiovisual.
“Houve uma concentração gigantesca nas mesmas produtoras para plataformas de streaming e canais prime, sempre no eixo Rio-São Paulo”. A produtora curitibana tem em seu portfolio filmes premiados como o longa Ferrugem, vencedor dos prêmios de melhor filme no Festival de Gramado e de melhor filme íbero-americano no Seattle International Film Festival. A obra também foi indicada ao Festival Sundance e figurou na lista dos filmes brasileiros selecionados na fase final da seleção brasileira do Oscar.
Para Gonçalves, o combustível trazido pelas plataformas tem a ver com a possibilidade de um consumo imediatista e também com recursos, já que os serviços de streaming e canais prime de TV fechada começaram a investir em produções brasileiras com capital próprio. Quanto ao futuro do setor no cenário pós-pandemia, o produtor aposta em uma segmentação mais acentuada, com grandes produções dominando ainda mais as salas de cinema, enquanto as plataformas de nicho, como Mubi e a brasileira Looke, celebram a produção independente.
“Antes da COVID-19, a O2 estava com dez séries em produção”, conta a sócia da produtora, que prevê a retomada das produções tão logo seja possível. Ribeiro acredita que a tendência para o setor no Brasil é que as produções locais ganhem força. “Já está mais que provado que para haver crescimento da plataforma no lugar, há a necessidade de se produzir localmente. Portanto a tendência é que a medida que a plataforma cresça, aumente o número de conteúdos locais”.