Muitos dos povos originais na Amazônia chamam dinheiro de “folha verde que não se come”. É essa folha que o governo brasileiro deve pedir explicitamente e aos montes durante a Cúpula Global do Clima que acontece, de maneira virtual, entre os dias 22 e 23 de abril, organizada pela Casa Branca. Mais de 40 chefes de estado discursarão sobre temas de relevância ambiental, principalmente aqueles que versam sobre a redução da emissão de carbono.
Nos bastidores do Palácio do Planalto, já se costura um discurso para a conferência, seguido de material que reforçará a posição do Brasil. O principal ponto versa sobre essa “folha verde que não se come”. O Brasil quer que a Amazônia tenha uma função econômica. Isso não é uma surpresa. Essa é a posição do governo de Jair Bolsonaro desde sua campanha. O que vai cair mal, é o pedido explícito de fundos em troca de conservação durante a conferência.
Em carta ao presidente norte-americano do dia 14 de abril, Bolsonaro diz isso claramente, depois de narrar compromissos que diz que irá adotar que vão completamente na direção oposta ao que se vê hoje. É uma chantagem a céu aberto que pode cair muito mal no primeiro encontro (ainda que virtual) entre Biden e Bolsonaro.
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O mandatário brasileiro vai apontar o dedo para países desenvolvidos cuja emissão de carbono é superior ao Brasil, após assumir compromissos nunca alcançados por nenhum gestor brasileiro antes, com promessas com datas e detalhes que vão completamente na direção oposta às vistas até agora durante sua administração. E é exatamente isso que estará no centro da discussão dos países que enxergam a proposta como uma ameaça e não um acordo.

Bolsonaro envia carta a Biden: “Correio elegante”
“O Brasil merece ser justamente remunerado pelos serviços ambientais que seus cidadãos têm prestado ao planeta”, diz Bolsonaro na carta endereçada a Biden. A carta tem um detalhe que chama a atenção, só dois trechos escritos à mão, a data (14 de abril) e a assinatura do presidente. É a prova de um documento costurado sabe-se lá a quantas mãos. Aliás, o correio elegante antes da conferência está a todo vapor.
Dos 27 governadores do Brasil, 24 entregaram uma carta ao embaixador norte-americano em Brasília, Todd Chapman, dizendo que estão abertos a negociar fundos diretamente com países estrangeiros sem a anuência da União. Vale lembrar que a Amazônia é parte de apenas nove estados brasileiros, embora constitua 59% do território nacional. E, mais uma vez, o que está no fundo da questão? São os fundos em si, o dinheiro. Os governadores querem o mesmo que Bolsonaro, apenas sem intermediários no Planalto.
Outra carta enviada ao presidente Joe Biden, que pede exatamente o oposto, é assinada por 36 artistas. Entre eles estão Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Joaquin Phoenix, Sonia Braga, Wagner Moura, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Alec Baldwin, Jane Fonda, Orlando Bloom, Katy Perry e Roger Waters, entre outros. “Nós apelamos ao seu governo para ouvir o pedido deles (indígenas e ambientalistas) e não se comprometer com nenhum acordo com o Brasil a esta altura”, lê-se no documento. Para estes artistas e ativistas, liberar fundos para a Amazônia durante o governo do presidente Jair Bolsonaro não é uma boa ideia.
A gafe de Ricardo Salles no Instagram
Já que o assunto é aquecimento global, quem ajudou a aumentar a temperatura antes do encontro foi o próprio ministro do Meio Ambiente, que reclamou do recado da carta dos artistas em suas redes sociais.
“Primeiro diziam que não haveria diálogo. Depois ficaram bravos com o diálogo. Agora querem melar qualquer acordo sobre Amazônia … a questão é pura política, realmente”, escreveu. E aproveitou para cometer uma gafe um dia após o Dia do Índio, data marcada por protestos em Brasília pela defesa dos povos originários. Em uma publicação no Instagram postou fotos de indígenas carregando celulares e a legenda: “recebemos a visita da tribo do iPhone”. O que Salles ignorou, além do óbvio objetivo que deveria ter a pasta que coordena, é que milhares de indígenas vivem em zonas urbanas e tem acesso à tecnologia. Muitos deles usam celulares inclusive como ferramenta para denunciar agressões ambientais, suas condições de vida e ameaças de grileiros, mineradores, etc.
Soma-se a essa troca de cartinhas, uma assinada por quinze senadores democratas de peso do Congresso norte-americano enfatizando que Biden não terá apoio para negociar com Bolsonaro. Os senadores se mostraram antenados com os desdobramentos recentes do desmonte dos órgãos ambientais no Brasil e reclamaram da violência contra ambientalistas e indígenas.
“O presidente Bolsonaro ridicularizou publicamente a principal agência ambiental do Brasil e sabotou sua capacidade de fazer cumprir as leis ambientais no Brasil. Ele tem procurado enfraquecer a proteção de territórios indígenas, muitas vezes sujeitos à invasão de madeireiros ilegais, mineiros e fazendeiros. Ele tem desprezado abertamente os ambientalistas brasileiros, referindo-se a eles como um ‘câncer’ na Amazônia que ele ‘não pode matar’, acusando-os falsamente de incendiar a floresta tropical e tentando excluí-los do envolvimento que lhes cabe em aspectos-chave da formulação de políticas ambientais”, escreveram os senadores na carta. E reiteraram: sem resultados sustentados ao longo do tempo não tem retórica brasileira que os convença de liberar financiamento.
Os EUA não são signatários de alguns dos maiores acordos ambientais do mundo (…) Bolsonaro é , neste sentido, também um boi de piranha para quem precisa criar uma cortina de fumaça para esse fato. Mas isso não exime nem o presidente Bolsonaro, nem o mundo, da responsabilidade sobre os efeitos nefastos sobre o meio-ambiente.
US$ 1 bilhão para reduzir desmatamento: “Folhas verdes não comestíveis”
Mesmo assim, o Brasil quer sair da Cúpula de bolsos cheios, US$ 1 bilhão para começar. Depois deseja uma indenização pelo carbono emitido por outros países que poderia chegar a US$ 133 bilhões, previsto no Acordo de Paris, mas com desdobramentos ainda a serem discutidos. No entanto, esse valor é relativo a um período de onze anos em que Bolsonaro não estava no poder. Desde então, desmatamento, mineração e incêndios na Amazônia aumentam virtuosamente, ao passo que a fiscalização não só diminui como é boicotada pelo próprio governo Bolsonaro.
A porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, afirmou que além dos quarenta chefes de Estado, um pequeno número de empresários e líderes da sociedade civil foram convidados e que o encontro vai abordar questões como a inovação tecnológica, criação de empregos e como financiar de maneira sustentável medidas necessárias para desacelerar o ritmo das mudanças climáticas. Entre os países latinos, vão discursar os presidentes da Colômbia, México, Chile, Argentina e Brasil.
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Mesmo se os Estados Unidos aplicarem uma merecida surra no Brasil por sua terrível gestão ambiental, é preciso lembrar que não há vilões nem mocinhos neste contexto. Por mais que o recém-empossado Biden já tenha conseguido progressos significativos (como o extraordinário acordo que fez com o maior sindicato de mineradores do país recentemente, conseguindo um crédito de dois trilhões de dólares para um plano de energia verde), os EUA não são signatários de alguns dos maiores e mais importantes acordos ambientais do mundo. E, quando são, não se comprometem com as metas. O Bolsonaro é , neste sentido, também um boi de piranha para quem precisa criar uma cortina de fumaça para esse fato. Mas isso não exime nem o presidente Bolsonaro, nem o mundo, da responsabilidade sobre os efeitos nefastos sobre o meio-ambiente que a humanidade vem testemunhando.
O importante é nunca perder de vista o essencial: a Amazônia pode (na visão de muitos) ser derrubada (uma vez) para fins econômicos. Mas em pé pode ser, sabe-se lá por quanto tempo, a maior biblioteca viva do planeta, com recursos que a imaginação humana ainda nem imagina.