De volta para o futuro, um inventário sobre imaginação e a realidade
Sociedade

De volta para o futuro, um inventário sobre imaginação e realidade

A colunista do LABS discorre sobre o lugar da inovação e da tecnologia em meio a elucubrações futurísticas

O imaginário popular esticou o futuro e o visualizou de distintas maneiras. No entanto, em um aspecto, ele sempre foi igual: ele era amanhã, distante, longínquo e, por vezes, até adiável por mais que, em muito da literatura, tivesse data específica.

Para o escritor inglês George Orwell este futuro era 1984, que se passa 35 anos depois da publicação do romance com data homônima. Orwell foi visionário em muitos aspectos em sua maneira de ironizar um Estado totalitário, para muitos estudiosos há um paralelo direto com a ascensão da União Soviética, dado o momento histórico no qual o escritor estava submerso e alusões à burocracia e uni partidarismo. No entanto, entre as maiores visões do livro, o escritor é vanguarda no que hoje se vê como controle da informação e revisionismo histórico. Orwell foi pioneiro, por exemplo, em entender que parte do controle da sociedade, era feito por meio da informação que ela tinha acesso. Em seu romance, há, por exemplo, o “Ministério da Verdade”, exclusivamente dedicado a reescrever a história para caber nos objetivos do governo vigente, o partido. Nesse sentido, não estava muito longe de prever as “fake News” e o impacto que a manipulação da informação teria em certas sociedades. 

Nem tão distante estavam as teorias de simulação e simulacro da realidade que, subsidiaram por exemplo, pensamentos filosóficos como as escritas do francês Jean Baudrillard, inspiração para que os irmãos Wachowski levassem às telas os filmes, sucesso de bilheteria, idolatrados por muitos fãs, Matrix, cujo primeiro thriller estreou em 1999. Consistiam em um exemplo de ilação sobre a perda do “fio da meada” da realidade que o futuro trazia, colocando em xeque, como humanidade, nossa capacidade de ver a realidade em um universo dividido entre espaços paralelos e acontecimentos reais, versando também sobre nossa capacidade de livre arbítrio e o impacto que este gera no futuro.

De meados do século XX até aqui, diversas gerações cresceram com projeções do que seria o futuro. O desenho animado dos anos 60, por exemplo, Jetsons antecipava a mecanização do trabalho, no ano de 2062, com robôs domésticos como a simpática Rose, que apesar de ser um robô, possuía sentimentos compatíveis aos humanos. Já os filmes dos anos 80, como de “De volta para o Futuro”, jogavam com a curiosidade humana do porvir, com as visitas ao futuro e as consequências de alteração da realidade que esse vislumbre poderia trazer, uma espécie de certa forma recatada de tentar controlar o incontrolável desejo humano de influenciar seu destino.

O escritor norte-americano Carl Sagan foi outro pioneiro em buscar “o futuro” dentro do inconsciente coletivo de uma geração, valendo-se de elucubrações científicas e a delgada linha entre ciência e ficção. Seu livro “Contato”, sobre a busca por inteligência alienígena no espaço, transformado em filme em Hollywood, é um inventário de nossa curiosidade sobre tudo que poderia nos acometer em um futuro, disfarçado sob a metáfora de um universo espacial ainda desconhecido e cheios de possibilidades. Ele antecipa ainda futuros conflitos entre religião e ciência, discussão precipitada pela descoberta de vida inteligente em outros planetas no livro. É neste momento que o futuro encontra um dos maiores mistérios da criação: Deus. Mais que isso, Sagan colocava em xeque a presença diante do inefável e como reagiria a humanidade diante de mudanças extremas de paradigmas, como o “contato” com formas de vida fora da Terra.

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Chama a atenção, a falta de sinônimos significativos e exatos da palavra futuro nos dicionários (tempo que se segue ao presente, conjunto de fatos relacionados a um tempo que há de vir; destino, sorte, etc), por refletirem, de certa forma, o barco a esmo em que estávamos navegando. Um barco imaginário cuja quilha corta um mar de dúvidas e projeções. Versam mais sobre a indefinição que a definição, ironia para um dicionário. Porém, jamais paramos de imaginá-lo. É curioso ver, que projeções de futuro foram tão ricas nos anos 80 e 90 que levaram a certo saudosismo de como sonhávamos o mundo, criando espaço para séries de sucesso como Stranger Things, que não deixa de refletir esse imaginário do futuro, quando parecíamos saber tão pouco sobre ele. O que pode levar a reflexão sobre o que é o tempo, com a tendência ocidental de vê-lo de forma linear. Uma exceção a isso, por exemplo, é a crença de diversas tribos amazônicas que não enxergam o tempo de maneira contínua e sim como um círculo que tudo comporta.

Nos anos 90, a indústria cultural inundou ainda o mundo com filmes sobre catástrofes naturais e fatos que poderiam mudar fisicamente nosso estilo de vida: terremotos, maremotos, tsunamis, invasões alienígenas e apocalipses zumbis, todas reflexões sobre um provável futuro que não deixavam de refletir, em parte, nosso medo do desconhecido. Muitos antecipam, de certa maneira, discussões vigentes hoje, como por exemplo, as mudanças climáticas. No entanto, em certo momento, e em suas devidas proporções, existiu o momento em que o futuro deixou de ser um temor e passou a maravilhar-nos, não sem receios, com cautela, mas sem o peso exagerado do medo do desconhecido. Boa parte disso se deu com a ajuda da tecnologia, aproximando as civilizações do conhecimento.

Nesse sentido, a tecnologia é um espaço palatável para as discussões e projeções de “futuro”, sempre aliada ao desenvolvimento do porvir. Consumo, inovação e natureza nunca andaram tão de mãos dadas. O mundo se abalança agora sobre discussões que incluem empoderar o ser humano em um contexto de mudanças, mecanização e migração de várias realidades ao mundo virtual. Trata-se de crescer sem perder a humanidade, com ideias inclusivas que não gerem pobreza e exclusão, e sim empoderamento e inclusão. Guardadas as devidas exceções ao clichê, o futuro é mesmo agora, espaço onde não é possível mais correr de discussões antes adiadas. Chegamos à exaustão de diversos modelos que caíram de velhos, como a exploração da natureza e ausência do uso racional do planeta, vocação humana em um sistema de mudanças laborais e desenvolvimento, entre outros aspectos hoje inadiáveis. Dentro da inconstância do mundo, dizem diversas linhas de pensamentos orientais, o único fator inevitável é mudança. Nesse mesma lógica, estes pensamentos dispõem sobre a aceitação como meio e caminho que geram contentamento. Não se trata de engolir sem deglutir, e sim de evoluir sem desumanizar-nos. 

Caberá a presente geração, e as que estão por chegar, não mais olhar com subjetividade para o futuro. Não se poderá mais se apequenar diante do medo do desconhecido, nem fazer vista grossa ao que já se sabe, menos ainda rechaçar o que já chegou. Com o futuro na mesa, é preciso tratar com generosidade e genialidade a inovação.