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Foto: Drop of Light/Shutterstock
Sociedade

Dois Papas, o polêmico filme da Netflix que trata da ascensão do Papa Francisco

Da incredulidade dos argentinos à relação com a ditadura: o que o novo filme de Meirelles mostra e não mostra

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No dia 13 de março de 2013 não se poderia dizer que havia um clima de antecipação em Buenos Aires. Era uma das primeiras tardes com temperatura amena desde o início do verão, uma quarta-feira qualquer na capital argentina. O anúncio do Vaticano apontando o portenho Jorge Bergoglio, então arcebispo de Buenos Aires, como o novo Papa tomou de surpresa até mesmo os correspondentes da imprensa argentina em Roma. Nos canais argentinos de televisão, os apresentadores improvisavam como podiam, descrentes.

Eu ainda me lembro de ligar para um cinegrafista de um grande canal de televisão estrangeiro, baseado em Buenos Aires, que não estava ciente de que o Papa agora era um argentino. Ele parecia estar atordoado. “Para onde vamos?”, me perguntou. “Para a Catedral”, respondi.

Se em Buenos Aires era o meio da tarde, em Roma, o relógio marcava 20h14 quando o cardeal francês Jean-Louis Tauran revelou quem assumiria o posto mais alto da Igreja Católica, após a renúncia de Joseph Aloisius Ratzinger, o Papa Bento XVI, que, naquele momento, estava envolto em uma série de escândalos. À época, a explicação oficial da Igreja era de que Bento XVI havia abandonado o posto por razões de saúde.

Essa é só uma das controvérsias por trás do filme Dois Papas, produção original do Netflix, com direção do brasileiro Fernando Meirelles, que estreou na última sexta-feira (20) na plataforma, apenas algumas semanas depois da exibição nos cinemas.

Na imagem de cima, Hopkins, como Bento XVI, e Price, como Bergoglio. Na imagem de baixo, Bento e Francisco na vida real. Foto: Reprodução/Netflix/Facebook.

Habemus discórdia

O que ficou de fora do filme é o fato de que, na ocasião, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, demorou mais de uma hora para divulgar algum tipo de comunicado felicitando o argentino. Após forte insistência da imprensa mundial, incluindo a minha, ela emitiu um comunicado, desejando que ele tivesse uma “frutífera tarefa pastoral”.

Mais tarde, em um evento, Cristina desejou apenas um “boa sorte” ao novo Papa, mas nunca mencionou o nome “Bergoglio”. Os jornais da época davam conta da relação do escolhido com o governo peronista, chamando Bergoglio de “desafeto político”, “opositor”, etc.

Após a morte de Néstor Kirchner, em 2010, cuja missa foi realizada por Bergoglio, as relações com os Kirchner se suavizaram. Restaram conflitos relativos a temas contra os quais o cardeal se opunha, como a legalização do casamento homoafetivo e a mudanças de documentos de transsexuais. Eu me lembro que Bergoglio chegou a publicar uma carta aberta incitando a população a ir às ruas para pedir que tais mudanças não fossem aprovadas no Congresso.

Naquele dia, na capital argentina, tanto os protestos quanto as comemorações só começaram no fim do dia, horas depois do anúncio, com centenas de fiéis se acumulando na Catedral de Buenos Aires. A poucos metros dali, na Casa Rosada, manifestantes repudiavam a novidade. Esta dicotomia é tratada levemente por Meirelles no filme, assim como o motivo para tal divisão: a suposta conivência de Bergoglio com a ditadura argentina.

No dia seguinte ao anúncio do Vaticano, 14 de março de 2013, o jornal Página 12, tradicionalmente de esquerda, trazia em sua capa a expressão “Meu Deus!”, uma alusão ao espanto causado pela nomeação de Bergoglio. Na mesma edição, um longo editorial do escritor e jornalista Horacio Verbitsky, autor do livro El silencio, de Paulo VI a Bergoglio: Las relaciones secretas de la Iglesia con la ESMA*, altamente crítico de Bergoglio e sua suposta relação com a cúpula da ditadura militar argentina.

“Eu não sou um consenso na Argentina”, diz Bergoglio no filme. Essa frase me intrigou pois a verdade é que, após certas manifestações mais enérgicas, pouco se falou no assunto na Argentina. Pouco depois, Cristina até foi vê-lo no Vaticano e, depois dela, Mauricio Macri e o recém-eleito presidente da Argentina Alberto Fernández.

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O Papo dos Papas

A relação entre a Igreja Católica e a ditadura militar argentina (1976-1983) estava no cerne da falta de consenso no país naquela quarta-feira de revelação do novo Papa. A posição de Bergoglio como chefe dos jesuítas durante o regime, e sua proximidade com líderes da junta militar, como Emilio Eduardo Massera e Jorge Videla, é um dos pontos altos do longo diálogo entre Jorge Bergoglio e Ratzinger na Capela Sistina. O diálogo no qual os dois confessam as suas mazelas é também usado por Meirelles como ferramenta narrativa. No filme, Bergoglio supostamente havia ido a Roma pedir a Bento XVI sua aposentadoria, por não acreditar nos rumos que a Igreja estava tomando. Este seria o ponto de partida para o diálogo entre os dois.

Segundo publicações especializadas, porém, embora o filme se apresente como “baseado em fatos reais”, os reais encontros entre os dois Papas não teriam acontecido da maneira mostrada na produção.

Segundo estas publicações, Bergoglio não teria participado ativamente da decisão de renúncia de Bento XVI, embora tenha o encontrado em Roma em diferentes ocasiões. Este fato seria uma “espécie de licença poética” narrativa de Meirelles. O diretor se baseou no livro do autor e roteirista neozelandês Anthony McCarten, nomeado ao Oscar, em 2014, por seu roteiro da biografia do físico Stephen Hawkins, no filme A Teoria de Tudo.

Com interpretações memoráveis de Anthony Hopkins, interpretando Ratzinger, e Jonathan Price, como Bergoglio, a biografia do Papa argentino vai sendo destrinchada aos poucos pelo filme.

Da paixão pelo futebol ao chamado ao celibato; da postura durante a ditadura a uma espécie de castigo, imposto pela Igreja, que o levou a uma pequena paróquia em Córdoba, província argentina, por seis anos, onde ele refletiu e supostamente se martirizou por seu papel durante a ditatura.

Contrição

Na juventude, na Argentina, Bergoglio é interpretado por Juan Minujín, que ficou famoso como personagem principal da primeira temporada da série argentina El Marginal, também transmitida pela Netflix. É Minujín que conta o episódio mais polêmico da vida de Bergoglio: o papel que teria, ou não, nas detenções dos padres Orlando Yorio e Francisco Jalics, sequestrados, presos e torturados por cinco meses durante a ditadura militar argentina.

O filme mostra um Bergoglio contrito, arrependido das suas atitudes no período militar, e ignorante dos crimes do regime durante o período. Mas mostra também sua austeridade e carisma, além do comprometimento com os pobres. O mesmo não acontece, na mesma proporção, na narrativa sobre Bento VXI, que toma um lugar secundário, ainda que importante e aumentado pela impecável atuação de Hopkins.  

Um ersatz

Lendo hoje o editorial de Verbitsky, que eu guardei, pois tenho o hábito de guardar jornais de datas históricas, me pego boquiaberta. Que distante está da visão que temos do Papa hoje e, pelo visto, da visão que ele tem de si, se tomarmos em conta o filme de Meirelles!

No editorial, Verbitsky destaca um diálogo com a irmã de Orlando Yorio, Graciela Yorio, entre centenas de ligações que recebeu quando Bergoglio foi eleito Papa. Segue:

“Não posso acreditar. Estou tão perturbada e com tanta raiva que não sei o que fazer. Ele conseguiu o que queria. Estou vendo Orlando na sala de jantar em casa, há alguns anos, dizendo ‘ele quer ser papa’. É a pessoa certa para cobrir a podridão. Ele é o especialista em cobertura. Meu telefone não para de tocar, Fito falou comigo chorando”, narra. Fito descrito no diálogo é Adolfo Yorio, outro irmão de Orlando, padre que morreu em 2000 sustentando sempre a versão de que Bergoglio o havia entregado aos militares.

O título do editorial também chama a atenção. Nele, Verbitsky usa a palavra alemã ersatz, que entre várias definições significa suplente, ou substituto de qualidade inferior, provavelmente uma alegoria usada pelo escritor para dizer que Bergoglio não era muito diferente de Bento XVI, cujas relações com o nazismo nunca foram totalmente esclarecidas. Também pode ser uma referência a uma outra suposta razão para a renúncia de Bento XVI, o suposto encobrimento de abusos sexuais de menores por padres da instituição.

Hoje, os organismos de direitos humanos argentinos sustentam que 30 mil pessoas desapareceram naquele período, e se sabe que os militares empregaram alguns dos métodos mais cruéis e desumanos de tortura e assassinato com seus prisioneiros. O mais célebre era atirá-los vivos de aviões no Rio da Prata, método que ficou conhecido como “Voos da Morte”.

O editorial de Verbitsky me lembrou um episódio que aconteceu comigo em uma fazenda na província de Buenos Aires. Eu havia sido convidada por uma colega para passar um fim de semana na fazenda de sua família. Chegando lá, entrei em contato pela primeira vez com uma outra visão da ditadura argentina. Em uma conversa informal, a mãe da minha colega afirmou casualmente que os militares não foram tão ruins e que haviam feito algumas “cagadinhas”. Afirmação que eu respondi com um comentário mais respeitoso que pude: “Senhora, trinta mil desaparecidos não podem ser considerados cagadinhas”, rebati.

Na Argentina, às vezes, emerge a discussão que nos remete à teoria de Hannah Arendt. Em A banalidade do Mal, a escritora judia sustentou, usando o julgamento do funcionário nazista Adolf Eichmann, que ele não era movido pela ideologia ariana e sim por ambição pessoal, cumprindo um papel mundano, ainda que dentro de um genocídio.

Há uma pergunta temida por muitos até hoje na Argentina. “Onde você estava entre 1976 e 1983, período do regime militar?” Muitos dirão que não sabiam dos terrores ocorridos nos porões da ditadura ou que cumpriam ordens. Outros afirmam que fizeram o que puderam para sobreviver e cuidar dos seus. É o caso de Bergoglio, segundo a visão de Meirelles e do personagem no filme de Bergoglio. Dos dois Oscars que a Argentina possui, um foi para o filme a La historia oficial que trata exatamente de como os civis viveram esse período.

“Acusações infundadas”

Outra observação importante é que Francisco Jalics, o outro padre foi torturado pela ditadura e é citado no filme, sustenta o contrário de Yorio. Ele considera “infundadas” as acusações de que Bergoglio o tenha entregue à ditadura. Em um comunicado em 2013, uma semana depois do anúncio da ascensão de Bergoglio ao Papado, Jalics diz considerar o caso “encerrado”.

“Em algum momento eu mesmo estive inclinado a crer que fomos vítimas de uma denúncia”, afirmou. “No fim da década de 1990, após inúmeras conversas, ficou claro para mim que esta suspeita era infundada. Portanto, é um erro afirmar que nossa detenção ocorreu por iniciativa do padre Bergoglio”. Foi a única vez que ele se pronunciou, via comunicado, e hoje vive em clausura, em um monastério na Baviera.

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Mutação

Enquanto escrevo, uma borboleta que pousa na minha janela me faz lembrar de outra alegoria que Meirelles usa no filme para eximir Bergoglio de supostas responsabilidades que ele pode ou não ter tido, durante o regime militar. No filme, algumas falas são usadas para levantar a ideia da mudança, mutação, transformação e evolução do ser humano. Ele não é um ser estático, muda com o tempo. Isso é utilizado para explicar por que, tacitamente, um cardeal conservador pode ter se transformado em um dos Papas mais queridos da história moderna.

Crítica

Ainda que tenha estreado há poucos dias, a crítica especializada afirma que o filme de Meirelles tem tudo para se tornar um dos sucessos do ano do Netflix.

É interessante ver como o filme levanta a fumaça branca de Bergoglio, vale acompanhar como vai se comportar a crítica na Argentina. O filme não semeia dúvidas, mas o Papa sabe que existe uma névoa que deixou em Buenos Aires.

*ESMA – Refere-se à Escola de Mecânica da Armada, anteriormente Escola Superior de Mecânica da Armada – ESMA, localizada no bairro de Nuñez, em Buenos Aires. Durante a ditadura militar, se transformou no maior centro de detenção e tortura da repressão militar argentina, por onde passaram supostamente mais de cinco mil presos, muitos desaparecidos até hoje.