Ex-ditadores argentinos mortos e enterrados caminhando pelas ruas em mode “The walking dead”, presidentes bolivianos invadindo o Brasil com suas tropas, bases russas instaladas na Venezuela que nem o Pentágono conhece (mas que uma advogada na região do rio Pinheiros afirma que tem)…esses são os insólitos “cases” com os quais Sigmund Freud teria vasto material para novos livros. A pena é que o bom doutor austríaco faleceu em Londres em 1939 (sim, antes que alguém invente a teoria da conspiração de que “Sig” fingiu sua morte perante os bombardeios nazistas em Londres e mudou-se para Itabuna, Bahia, onde tem uma pousada com Elvis Presley, aviso que ele faleceu mesmo na capital britânica). Mas, são esses tipos de coisas que cotidianamente surgem em Twitterdorf, capital do Tuiteristão, país vizinho ao Esquizo-Sultanato de Feissibóquia e da bananeira República Paranoicativa de Guatsápe.
O italiano diretor de cinema Pier Paolo Pasolini (1922-1975) afirmava que “as teorias da conspiração geram delírios porque liberam as pessoas de confrontar-se com a verdade”. E esses delírios nas redes não são exclusividade da direita, já que também com frequência ao longo dos anos assolam setores da esquerda. O “peyote internético” afeta todo o leque ideológico.
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Videla Walking Dead
Em dezembro de 2015, uma semana após a posse do neoliberal Mauricio Macri na presidência da Argentina (um “neoliberal” que nunca privatizou coisa alguma), desatou-se uma onda de boatos na redes sociais do Brasil que sustentavam que Macri havia anistiado e liberado da prisão ao redor de mil ex-integrantes da última ditadura militar argentina (1976-83) que estavam presos até esse momento devido a seus crimes contra a humanidade (sequestro, tortura e assassinato de civis, entre outras violações aos Direitos Humanos).
Entre os anistiados em dezembro de 2015, afirmavam nas redes e blogs, estava o ex-general e ditador Jorge Rafael Videla. A informação gerou uma onda de elogios por parte da direita e críticas por parte da esquerda. A coisa era mais ou menos neste tom:
Grupo 1: “Muito bem, parabéns ao presidente Macri por liberar aqueles que protegeram o país de uma ditadura comunista! Viva Jesus, viva Videla!”
Grupo 2: “Canalha lambe-botas dos ianques, Macri soltou Videla, que está nas ruas”.
Mas ambos grupos estavam colossalmente errados. Não havia ocorrido anistia.
1º – Uma anistia desse tipo teria ocupado as principais páginas da mídia internacional.
2º- A notícia também teria gerado o interesse imediato de biólogos. E também de teólogos. O motivo: se Videla havia saído da prisão, só poderia ter sido em mode “walking dead”, pois o sanguinário ex-ditador bateu com as botas (ou “foi bater alcatra na terra ingrata”, como dizíamos outrora em Londrina) em maio de 2013. O Universo descontinuou Videla enquanto estava sentado em posição pouco marcial no vaso sanitário de sua cela na penitenciária de Marcos Paz.
No entanto, é difícil convencer do contrário as pessoas que desejam fervorosamente ter fé nas fake news. Mas a coisa se expandiu: dois dias depois, na cúpula do Mercosul no Paraguai, a então chanceler venezuelana Delcy Rodríguez, criticou Macri em público, acusando-o de ter anistiado os ex-ditadores. Na Argentina essa fake news não havia se espalhado, já que era absurda demais. Desta forma, Macri olhava estupefato a chanceler, sem entender do que falava.
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Médicos cubanos “expulsos”
Um mês mais tarde, em janeiro de 2015, surgiu outra fake news sobre Macri. E, mais uma vez, ele foi aplaudido pela direita e xingado pela esquerda por algo que Macri não havia feito.
A nova fake news – que circulou nas redes sociais e dali se espalhou para programas de rádio e pequenos jornais do interior do Brasil – sustentava que Macri havia botado para fora da Argentina milhares de médicos cubanos.
Segundo as fake news, estes médicos (“comunistas infiltrados para implantar um soviete”, segundo a direita), haviam sido levados ao país pelo governo Kirchner. Uma espécie de remake do programa de médicos cubanos do Brasil feito pelo PT.
No entanto, Macri não havia expulsado médico cubano algum. E o motivo era simples: Cristina Kirchner nunca levou para a Argentina médicos da ilha caribenha. Ora, se você não tem um médico cubano para expulsar fica impossível expulsar. Dica: botem mais René Descartes (um dos pais da lógica moderna) em suas vidas.
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“Estatização de empresas”
No ano passado, setores do governo brasileiro começaram a divulgar fake news de que o presidente Fernández havia “estatizado as empresas de telefonia, internet e TV à cabo”. No entanto, no mundo real, Fernández não havia realizado estatização alguma. Tal como disse no caso do setor agrícola, a hipotética estatização de todos esses setores de serviços teria sido notícia mundial. Mas, não foi notícia porque não aconteceu. Tal como o casamento do Coelho da Páscoa com o Curupira. Não ocorreu, para começar, porque ambos não existem (me perdoem os fabricantes de ovos de chocolate).
No ano passado, o governo Fernández decidiu intervir na importantíssima empresa de exportação de produtos agrícolas Vicentin, da província de Santa Fe, devido a um imenso calote que havia dado no estatal Banco de la Nación. No entanto, perante a oposição de vários setores agropecuários, o presidente deu marcha ré e abandonou o projeto.
No Brasil, na época, circulou a fake news de que a empresa havia sido estatizada. A empresa – que continua sendo privada – atualmente tenta renegociar sua dívida com o Banco de la Nación e outros credores.
Ursal, um delírio exclusivamente brasileiro
Em 2018 surgiu a fake news que indicava a criação de uma entidade demoníaca-marxista, a URSAL, uma espécie de transgênico político entre a URSS — fenecida em 1991 — e a América Latina. Os autores da teoria da conspiração indicam que a URSAL (embora inexistente) pretenderia implantar o “comunismo” em todos os países ao sul do Rio Grande e ao norte do Cabo Horn.
Em 2018 o presidente americano era Donald Trump. Mas, nem o intensamente conspiranoico chefe de Estado e dono de cassinos citou uma vez sequer a tal URSAL. A CIA e o Pentágono tampouco falaram sobre essa entidade “marxista-leninista-trotskista-stalinista-maoista-guevarista-bolivariana”. Isto é, vários grupos de pessoas no Brasil, aliadas de Bolsonaro, se consideravam supostamente mais informadas do que Trump. No restante da América Latina, os principais líderes dos partidos de direita ignoraram a nova teoria da conspiração made in Brazil. Existe uma URSAL na Argentina, Paraguai e Bolívia. No entanto, é a União de Redentoristas do Sul da América Latina, associação de padres católicos devotos da Virgem do Perpétuo Socorro, sem um único touch marxista em suas catequeses.
O que seria das medíocres vidas de pessoas sem uma teoria da conspiração que as tire do tédio que padecem diariamente?
No caso da URSAL, o assunto torna-se mais interessante porque foi usado pela primeira vez pela acadêmica brasileira Maria Lúcia Victor Barbosa, embora de forma satírica sobre algo inexistente. No entanto, anos depois, um desavisado astrólogo brasileiro (mas residente no estado americano de Virgínia), Olavo de Carvalho, acreditou que aquilo (que era piada) era sério e começou a despotricar contra essa entidade regional que pretendia “comunistizar” toda a América Latina.
A coisa saiu do controle, com políticos de direita vociferando contra a inexistente URSAL (e com setores de esquerda – mas em menor quantidade – acreditando também que era verdade, mas defendendo a ação ursaliana como forma de deter a expansão da CIA e de Wall Street na região). Uma multidão de pastores evangélicos aproveitaram o assunto e – indo mais além de seus assuntos teológicos também dispararam contra a URSAL em seus púlpitos e canais de TV. Os pastores alertavam para essa organização que pretendia construir uma “nação comunista e anti cristã” na América Latina.
E, como a política brasileira tem superávit de delírios, o assunto foi parar no debate eleitoral da campanha presidencial de 2018. Na ocasião, o ex-bombeiro militar e deputado Cabo Daciolo, candidato presidencial, perguntou ao candidato Ciro Gomes: “O senhor é um dos fundadores do Foro de São Paulo. O que pode falar sobre o Plano URSAL? Tem algo a dizer para a nação brasileira?”
Do jeito que a coisa vai, no debate eleitoral de 2022 teremos algum candidato perguntando a outro algo como “é verdade que recebe dinheiro sem declarar da embaixada da Atlântida?? Responda!!!”
“Pablo Escobar” na Patagônia
O narco-traficante colombiano Pablo Escobar foi a figura mais famosa da história mundial do tráfico de drogas. Ele, apesar de morto há quase três décadas, ainda é o nome mais conhecido relacionado ao business da cocaína e afins. Por esse motivo, seus biógrafos investigaram – e continuam investigando – os detalhes de sua turbulenta e sanguinária carreira.
No entanto, os participantes das redes sociais sempre acham que sabem mais do que o Pentágono, Harvard, a CIA e Albert Einstein juntos. Desta forma, em 2014, surgiu uma foto que tuiteiros e facebuqueiros afirmavam de pé junto que mostrava um “encontro em 1990” entre Escobar e o casal Néstor e Cristina Kirchner. Néstor, nessa época específica citada era prefeito de Río Gallegos, uma pequena cidade capital da província de Santa Cruz, nos cafundós meridionais da gélida Patagônia. Cristina era deputada estadual.

Seria muito peculiar um rendez-vous entre o poderoso traficante mundial e Kirchner, na época um ignoto prefeito. Mais ainda porque a província de Santa Cruz não estava na época na rota dos narcotraficantes (sequer atualmente faz parte da rota). Santa Cruz está perto das ilhas Malvinas. Ahá!!! Escobar queria traficar para as ilhas! Não. Até para uma fake news seria delirante demais…
A foto foi desmentida por Mariana Zuvic, filha do tal “Pablo Escobar”. Em vez do narcotraficante, a pessoa que aparece na imagem, de cara rechonchuda e bigodão é o político santacrucenho Miguel Ángel Zuvic, que na época era amigo dos Kirchners (e com o qual brigou posteriormente). As pessoas que aparecem como Cristina e Néstor Kirchner na foto são eles próprios.
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Dias depois, quando a foto com o suposto bigodudo Escobar já havia sido desmentida em Buenos Aires, o efeito delay das redes apareceu no Brasil. Pessoas brasileiras nas redes (e blogs e pequenos meios de comunicação) estamparam a foto. Mas, acrescentando um personagem novo: Dilma Rousseff.

Os divulgadores da foto tentavam indicar que havia sido um encontro da “esquerda sul-americana” financiada pelo narco-tráfico.
Mas em “1990” os Kirchners faziam parte da direita neoliberal peronista, aliados do então presidente Carlos Menem (mais de uma década depois é que fariam a guinada intervencionista estatal).
1º – Dilma, que já era de esquerda, e os Kirchners, que na ocasião eram de direita, não se conheciam na época. E nem fazia sentido um encontro deles na ocasião.
2º – Rousseff não havia viajado na época para os confins das Américas.
3º – A pessoa que aparece de cabelo curto, sentada entre Cristina e Néstor Kirchner não é Dilma, já que era Ema Zuvic, a então esposa do bigodudo Miguel Zuvic Scepanovic. Disclaimer: nem todas as mulheres do planeta com cabelo curtinho são Dilma Rousseff.
Mas, existe um fator adicional nesta fake news: essa foto não era de 1990, como afirmava a desinformação, mas sim de 1981. A menininha de cabelo preto que aparece do lado de Zuvic é Mariana, futura deputada opositora, que na época tinha 7 anos (e que em 2014 se encarregaria de desmentir a fake news).
Na ocasião o casal Kirchner sequer havia entrado na política. Eles eram advogados que estavam enriquecendo executando hipotecas de pessoas que haviam falido por causa da política econômica do então ministro José Alfredo Martinez de Hoz.
Em resumo: as fake news, além de criar universos paralelos no presente (tal como as “estatizações de grandes empresas” atribuídas ao presidente Fernández) também tentam alterar o passado. Não me surpreenderia que alguma hora apareça alguém no Brasil afirmando que Winston Churchill visitou Búzios em 1970 e ali exaltou a caipirinha. Churchill podia ser chegado em biritas. Mas nunca esteve em Búzios. E, além disso, existe um fator crucial: Winston havia falecido em 1965.
O ensaísta italiano Umberto Eco (1932-2016), pouco tempo antes de falecer, estava estarrecido com a propagação das fake news na época (talvez nem imaginaria que a situação seria muito mais grave meia década após seu falecimento). Na ocasião, afirmou “ internet dá o direito de fala a legiões de idiotas, tal como o idiota do vilarejo, que antes falava só no boteco depois de um copo de vinho, sem prejudicar a comunidade (…) Mas agora ele tem o mesmo direito a falar que um prêmio Nobel. A internet promoveu o tonto da aldeia ao nível do portador da verdade…”.