“Estas ilhas não produzem coisa alguma. Neve, granizo e gelo. O ar está sempre úmido. Os alimentos daqui restringem-se a peixe. É para mim este um país cruel. O reino deverá subsidiá-lo”. Com estas palavras, escritas em 1767, o frei espanhol Felipe de Mena descreveu o desolado panorama existente na época nas ilhas Malvinas, arquipélago localizado nos cafundós meridionais do Atlântico Sul, na periferia (ou melhor, na periferia da periferia) do então Império Espanhol, longe das jóias da coroa colonial, que eram o Peru, México e Cuba. Duzentos e quinze anos depois tropas britânicas e argentinas viriam a travar uma feroz guerra pelas mesmas ilhas áridas e sem poder de sedução algum. Talvez por isso o escritor argentino Jorge Luis Borges tenha descrito tudo com ironia: “é a briga de dois carecas por um pente”.
A data oficial do início da guerra das Malvinas é 2 de abril de 1982. Mas o desembarque das tropas do ditador Leopoldo Fortunato Galtieri nas ilhas ocorreu na noite do dia 1º de abril, o dia da mentida em boa parte da planeta (embora não no mundo hispano-falante, o dia seja 28 de dezembro). Para não passarem ridículo, os generais da ditadura argentina decidiram manter a data oficial como 2 de abril mesmo.
O assunto Malvinas sempre foi tema permanente na sociedade argentina. As ilhas estão no mapa oficial do país. Os quilômetros quadrados de seu território são contabilizados de fato como se fossem controlados pelo governo da Argentina. Além disso, nas escolas (e já era assim mesmo antes da guerra), as crianças aprendem desde o primeiro ano do ensino fundamental que “las Malvinas son argentinas”.
Todos os presidentes, em seus discursos de abertura dos anos parlamentares no Congresso Nacional dedicam sempre um parágrafo à reivindicação das ilhas. Idem nos discursos anuais na Assembleia-Geral da ONU ou toda reunião semestral de presidentes do Mercosul. É como um mantra geopolítico. Um raro consenso entre todos os partidos políticos.
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As divergências eventualmente ocorrem no modus operandi diplomático para tentar reaver as ilhas. Da mesma forma, existem tabus sobre a Guerra das Malvinas que quase todos os setores evitam falar. Qualquer opinião duvidosa sobre a questão das ilhas pode ser encarada como uma espécie de mortal “heresia”.
Mas, como se chegou ao ponto de uma guerra, a mais meridional já travada por dois países ocidentais?
Vamos ver a cronologia destas ilhas, em mode listicle:
1494 –Imobiliária celestial. Na cidade de Tordesilhas, dois anos depois que Cristóvão Colombo chegou às Américas, as coroas da Espanha e Portugal assinam um tratado (que levaria o nome dali), pelo qual dividem as áreas ainda a descobrir no planeta em duas partes. Uma, para a Espanha, outra para Portugal. O tratado, para ser implementado, teve a confirmação do papa. Isto é, foi uma divisão do planeta com autorização do CEO de Deus na Terra, o pontífice de plantão (foi como uma espécie de imobiliária de poderes celestiais que realiza um loteamento entre dois proprietários). Desta forma, as Malvinas (ainda não descobertas), passavam a ser parte da Espanha por determinação de uma instituição referente ao sobrenatural. Assim começam as definições sobre a posse das Malvinas.
1504 – Primeiro suposto avistamento. O navegante francês Binot Paulmier de Gonneville avista no horizonte umas ilhas que poderiam eventualmente ter sido as Malvinas. Mas, não há certeza disso.
1520 – Segundo suposto avistamento. O espanhol Esteban Gómez, capitão de um dos navios da frota de Fernão de Magalhães (português que trabalhava para a coroa espanhola), teria enxergado de longe umas ilhas que poderiam ser as Malvinas. Mas, tal como o caso de Gonneville, não há nada confirmado sobre este evento.
1592 – Primeiro avistamento confirmado (mas sem desembarque). O inglês John Davis, capitão do “Desire” (e um famoso explorador que fez diversos descobrimentos em áreas tão distantes como a Groenlândia e as Malvinas) faz a primeira observação confirmada das ilhas. Mas ninguém desembarcou no arquipélago. Os kelpers (denominação dos habitantes das ilhas) se aferram a isso para ressaltar o domínio inglês. E, simbolicamente, colocam como slogan da bandeira atual das Malvinas a frase “Desire the right” (em referência ao barco).
1598 – Ego cartográfico. O holandês Sebald van Weerdt avista as ilhas. No entanto, não desembarca. Dono de um grande ego (ou visionário do marketing pessoal), batiza o arquipélago com seu próprio nome, Sebald (é assim que as ilhas aparecem nos mapas holandeses do século 19).
1690 – Finalmente, alguém coloca os pés na ilha. Primeiro desembarque oficial nas ilhas. O autor, o inglês John Strong, capitão do navio “Welfare”. De olho em agradar o patrocinador da expedição, batiza as ilhas de “Falklands” (homenagem a Anthony Cary, quinto visconde de Falkland).
1763 – Franceses às batizam com o nome usado pelos argentinos. Nesse ano, o comandante militar Louis Antoine de Bougainville desembarca nas ilhas e as denomina “Malouines” (a tripulação toda era de franceses do porto Saint-Malo…Malo, malouines). Um ano depois, os franceses estabeleceram uma colônia nas ilhas. O vilarejo é chamado de Port Louis, na ilha oriental.
1765 – Colonização simultânea: Simultaneamente, na ilha ocidental, britânicos, comandados por John Byron também se instalam e fundam Port Egmont. Eles desconhecem a presença francesa no lado oriental. Byron reivindica a posse das ilhas para o rei George III.
1767 – Adieu/ Hola, ¿qué tal? Os franceses fazem um pacto com a Espanha e decidem abandonar para sempre as Malouines. Adieu, franceses. Hola, espanhóis. Madri coloca o arquipélago sob a administração de Buenos Aires, sua colônia mais próxima.
1770 – Londres versus Madri. Os espanhóis atacam Port Egmont e expulsam os britânicos. Um conflito bélico é evitado graças a um tratado de paz. Os britânicos voltam para Port Egmont.
1774 – Ingleses partem (mas deixam claro que voltarão). A guerra de independência dos futuros Estados Unidos levam os britânicos a concentrar esforços, reduzir gastos e abandonar colônias de pouca importância. Partem das Malvinas mas deixam uma placa no lugar, na qual deixam claro que reivindicam a posse.
1811 – Adiós. Tal como os ingleses, as lutas de independência na América do Sul levam os espanhóis a abandonar as ilhas e partir rumo a Montevidéu, cidade que ainda permanecia em mãos realistas. Buenos Aires já estava fora do controle de Madri.
1811 a 1820 – Pinguins rules. Os pinguins tornam-se a principal presença de vida nas ilhas, que ficam totalmente desertas de Homo Sapiens. De vez em quando, navios-pesqueiros ingleses ou americanos frequentam suas águas (mas sem estabelecer habitantes no arquipélago).
1820 – Bandeira argentina. Para escapar de uma tempestade, o navio “Heroína” atraca nas ilhas. O capitão David Jewett, um yankee de Connecticut que trabalhava para o governo da província de Buenos Aires, hasteia ali a bandeira argentina e proclama a posse do arquipélago. É a primeira medida oficial (embora improvisada) nesse sentido.
1826-1829 – Um alemão. O alemão Louis Vernet é nomeado governador das Malvinas pelo governo de Buenos Aires (quem deu bola às ilhas foi o governo da província de Buenos Aires e não a “Argentina”, já que naquela época a Argentina não estava constituída como tal). Vernet, com capitais privados, comanda a instalação de colonos em Puerto Soledad (vilarejo fundado inicialmente pelos franceses). O cônsul inglês em Buenos Aires reclama, argumentando que as ilhas ainda eram reivindicadas pela Grã-Bretanha.
1831 – Americanos. Vernet ordena o confisco de três pesqueiros americanos que estavam trabalhando nas águas ao redor das ilhas. Os Estados Unidos, em retaliação, enviam o navio de guerra “Lexington”, que arrasa Puerto Soledad. Os americanos “persuadem” a maior parte dos colonos a deixar as ilhas e embarcar no navio para serem deixados em Buenos Aires.
1833 – Ingleses. O navio de guerra britânico “Clio” chega em Puerto Soledad, que começava a se recuperar da destruição causada pela Lexingtin. Os ingleses ordenam a retirada dos colonos argentinos. A população, na época, era calculada entre 120 e 150 pessoas. Nos anos seguintes, começam a chegar imigrantes ingleses, escoceses, irlandeses e galeses (muitas famílias de kelpers são descendentes daquelas pessoas que chegaram ali há quase 200 anos).
1841-1842 – Ilhas e dívida. O ditador de Buenos Aires Juan Manuel de Rosas é encarado como um dos primeiros ‘nacionalistas’ do país. Mas teve, à época, uma atitude pouco comentada atualmente na Argentina (o assunto é meio tabu): em 1841 e 1842 ele oferece ceder o domínio das ilhas (que já estavam em mãos britânicas há quase uma década) a Londres em troca do cancelamento da dívida argentina acumulada com o banco Baring. Os britânicos declinam a oferta (a dívida era muito maior do que as áridas ilhas valiam na época).
1884 – Primeira proposta. Argentina pede pela primeira vez à Grã-Bretanha que a soberania das ilhas seja submetida a arbitragem independente. Londres recusa a proposta.
1910 – Argumento sobre a “herança”. Paul Groussac, escritor francês que migrou para a Argentina, onde se transformou em diretor da Biblioteca Nacional em Buenos Aires, instalou no âmbito jurídico o argumento de que a Argentina tinha direitos sobre as Malvinas como uma espécie de “herança” dos espanhóis. Ele alegava que as ilhas eram administradas pelo Vice-Reinado do Rio da Prata (a colônia espanhola, com capital em Buenos Aires) quando começou a guerra da independência.
1947 – Corte. A Grã-Bretanha oferece à Argentina levar à Corte Internacional de Justiça a discussão sobre a soberania das ilhas. Buenos Aires rejeita a oferta.
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1965 – ONU determina que os dois países dialoguem. A ONU aprova a resolução 2065, que convoca a Argentina e a Grã-Bretanha a sentarem à mesa de negociações para discutir a soberania das Malvinas. No entanto, Londres se recusa discutir o assunto.
1967 – Londres se dispõe a conversar de forma bilateral. A Grã-Bretanha abre negociações com a Argentina, indicando que poderia conversar de forma bilateral e reservada sobre a transferência de soberania.
1971–1980 – Aproximação interrompida pelo golpe. A Argentina inicia um processo de aproximação com os kelpers, estabelecendo voos semanais, ligando as ilhas com o continente, instala um posto de gasolina YPF (o único do arquipélago), oferece bolsas de estudos aos kelpers e atendimento nos hospitais públicos do sul da Argentina. Até 1976, enquanto as negociações aconteciam, vários avanços ocorreram.
O Reino Unido vivia já há algum tempo os efeitos de uma economia desacelerada e não considerava útil continuar com as Malvinas, que não geravam lucros. Os argentinos encontraram então abertura para propor soberania compartilhada, com a presença das duas bandeiras, os idiomas inglês e espanhol como oficiais, alternância de governadores argentinos e ingleses.
Em 1976, porém, um golpe militar na Argentina paralisa as conversas.

1982 – A guerra. Em março, o regime militar argentino começa a enfrentar as primeiras grandes manifestações contra a ditadura nas ruas de Buenos Aires. Rapidamente, os militares tiram a poeira de um plano de urgência para reconquistar as Malvinas. O regime sabia que a recuperação das ilhas geraria um frenesi sem precedentes na população, apelando aos sentimentos nacionalistas.
Na noite de 1º de abril, tropas argentinas desembarcam por ordem do ditador Leopoldo Galtieri nas ilhas. Os argentinos tomam o controle total no dia 2 de abril.
A ditadura argentina se expandia territorialmente, mas aquele era o único lugar com normas democráticas em todo o cone sul (região com países então governado por sanguinários regimes militares). O regime argentino, acostumado a torturar no continente, no entanto, torturou os próprios soldados nas ilhas (assunto que foi levado aos tribunais argentinos há uma década).
A principal tortura realizada era o “estacamento”, que consistia em cavar uma área de 50 centímetros de profundidade e ali amarrar um soldado sem roupa, deitado sobre a neve ou o solo gelado (as temperaturas podiam chegar até 27 graus Celsius negativos). O soldado era amarrado com pernas e braços abertos e abandonado ali durante 24 horas. O castigo podia ser aplicado por motivos absurdos, como, por exemplo, a perda de um capacete.
Outra modalidade de tortura aplicada pelos oficiais era a de abandonar soldados para que morressem de fome. Existem quatro casos de soldados provenientes da província de Corrientes que morreram de fome pela suspensão do fornecimento de comida ordenada pelos oficiais. Nas listas do Exército argentino, no entanto, os soldados que morreram de inanição foram registrados como “baixas em combate”. Após a guerra, vários ex-combatentes declararam que “o principal inimigo não eram os ingleses, mas, sim, os próprios oficiais argentinos”.
Essa segunda presença argentina nas ilhas (a primeira havia sido de 1827 a 1833) durou apenas 74 dias.

No dia 14 de junho, as forças de Galtieri são derrotadas pelas forças enviadas pela primeira-ministra Margareth Thatcher.
Derrotada, desprestigiada e abalada pela derrota, a ditadura começa a balançar. Galtieri é derrubado rapidamente por seus colegas generais e um novo ditador toma posse, o general Reynaldo Bignone, com a tarefa de realizar eleições e tentar fazer uma retirada organizada dos militares.

1983 – Volta à democracia. A democracia voltou à Argentina em 1983. Foi o primeiro país do Cone Sul a encerrar sua ditadura. Isso estimulou os outros países da região (Uruguai, Brasil, Paraguai e Chile), que encerraram seus regimes militares nos anos seguintes.
Se a ditadura tivesse vencido a guerra contra a Inglaterra e reconquistado as Malvinas, afirmam historiadores, poderia ter se prolongado muitos anos no poder. Graças à derrota, o regime caiu.
1989 – Sedução com ursinhos. Carlos Menem toma posse prometendo reconquistar as Malvinas “a ferro e fogo”. Logo depois, muda de estratégia e começa a “política de sedução” com os kelpers. Seu chanceler, Guido Di Tella, levou isso ao extremo, até enviando em 1995 containers com ursinhos de pelúcia para agradar os kelpers (os ilhéus reenviaram os ursinhos às crianças órfãs da Guerra da Bósnia). Em 1990 são reatadas as relações diplomáticas restauradas entre Buenos Aires e Londres
1994 – Carta magna. A Argentina coloca a reivindicação das Malvinas na Constituição Nacional.
1999 – Visitas: Depois de 17 anos de proibição, Londres permite que argentinos visitem as ilhas.
2009 – Petróleo e gás: Nesse ano, empresas europeias descobrem petróleo e gás na plataforma marítima ao redor das ilhas. As perfurações começam. Mas o interesse diminui nos anos seguintes, principalmente devido à queda do preço do petróleo e à dificuldade de extração nesses mares.
Bonus track 1 – Imperialismos acolá, imperialismos aqui. Todos os anos, impreterivelmente, a Argentina reclama na ONU a soberania das Ilhas Malvinas, controladas pela Grã-Bretanha desde 1833, onde implantou — segundo as autoridades de Buenos Aires — “colonos estrangeiros” por intermédio de “ações imperialistas”.
No entanto, muito mais recentemente, desde o fim da Guerra do Paraguai, em 1870, a Argentina fez suas próprias aventuras “imperialistas” anexando terras paraguaias que são hoje as províncias de Formosa e Misiones. Essas províncias foram povoadas com argentinos e imigrantes europeus (isso, após o costumeiro hábito das forças argentinas de exterminar boa parte dos indígenas locais).
E, sem colocar na prática o discurso de “irmandade”, a Argentina também arrancou da Bolívia a Puna de Atacama e o Chaco Central em 1889.
Bonus track 2 – Outros efeitos da guerra. A vitória salvou o governo de Margareth Thatcher da crise política e gerou uma disparada de popularidade que a permitiria ficar no poder por longo tempo.
A indústria bélica mundial aproveitou o conflito bélico para observar o funcionamento — em uma guerra real — de uma série de novos armamentos, entre eles, o míssil francês Exocet.
Devido à neutralidade do Brasil na guerra, a Argentina começou a deixar de ver o país vizinho como um potencial perigo bélico. Anos depois, a aproximação criou um clima favorável para a formação do Mercosul.