Mandatory Credit: Photo by Fernando Lavoz/NurPhoto/Shutterstock (12383298c) Osorno, Chile. 29 August 2021.- Women carry posters with Silhouettes of Missing Detainees. Relatives of victims of forced disappearances during the Pinochet dictatorship and human rights activists commemorated the international day of the detainees and disappeared at the memorial for peace, in Osorno, Chile.- International Day Of The Disappeared Detainee In Chile, Osorno - 29 Aug 2021
Sociedade

“La Bestia”, a torturadora nazista-pinochetista que virou personagem de curta indicado ao Oscar

Crimes brutais protagonizados por integrantes das ditaduras militares começam a receber mais atenção nas investigações judiciárias na América Latina

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O curta-metragem de animação chileno chamado “Bestia” foi indicado ao Oscar deste ano. A obra trata da “mulher dos cães”, apelido da torturadora Ingrid Felicitas Olderoeck. Nascida na Alemanha em 1943, Ingrid era integrante de uma família nazista (ela própria era defensora de ideias nazistas) que migrou ao Chile no pós-guerra. Duas décadas depois, com a patente de capitã, ela entrou na DINA, a sinistra polícia secreta pinochetista (também chamada de “a Gestapo de Pinochet”). Na DINA, instruiu mais de 70 mulheres para praticar tortura contra os presos políticos. Ingrid morreu em 2001, impune, já que a Justiça chilena estava na época começando a levar os torturadores da ditadura ao banco dos réus. 

Hugo Covarrubias, diretor do curta, afirma que a obra é um ensaio sobre a maldade. Sobre uma mente perturbada dedicada a “quebrar almas em um contexto de uma sociedade macabra”. 

O principal “reino de Terror” de Ingrid foi a “Discoteca”, também chamada “Venda Sexy”, um centro de detenção e tortura na capital do país – o local ganhou esse nome devido à música que tocava ininterruptamente, uma música esquizoide para um centro de detenção e tortura. Na Discoteca, o regime utilizava cães de grande porte para estuprar as prisioneiras. Ingrid foi a responsável por introduzir essa prática brutal no âmbito institucional das Forças Armadas. 

Ingrid Felicitas Olderoeck, torturadora durante a ditadura de Pinochet no Chile. Foto: Domínio público


A Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura do Chile indicou que, de um total de 3.621 mulheres detidas, 3.399 foram estupradas de forma individual ou coletiva pelos militares. Destas, pelo menos treze mulheres ficaram grávidas. E delas, 6 deram à luz os filhos indesejados de seus torturadores.

Os abusos contra mulheres durante as ditaduras latino-americanas foram uma constante. E, infelizmente, ficaram fora do foco das primeiras décadas de investigações judiciárias sobre os crimes dos regimes militares dos anos 60, 70 e 80. As próprias democracias que ressurgiram na região não consideravam os casos como algo “relevante”, mostrando uma continuidade do machismo nessas sociedades pós-regimes ditatoriais. No entanto, nos últimos anos as investigações sobre estes crimes começaram a receber espaço nos tribunais.

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Argentina: estupros ocorridos durante a ditadura são considerados crimes contra a Humanidade

Em 2011, a Justiça argentina deslanchou as investigações sobre os crimes sexuais cometidos por militares e policiais durante a ditadura militar (1976-83) contra mulheres e homens detidos nos centros clandestinos espalhados pelo país. Até esse ano – pasmem – a Justiça havia considerado os crimes sexuais dentro da ampla categoria de “abusos”. Mas, com a mudança de enfoque, diversos ex-integrantes da ditadura também puderam ser processados por estupros. Os casos ocorreram nos campos de detenção de “Club Atlético”, “El Olimpo” e “El Banco”. Os envolvidos estupraram, segundo as denúncias, dezenas de mulheres detidas nos centros de tortura.

Gregório Rafael Molina, um dos comandantes de “La Cueva”, o principal centro de detenção e tortura que a ditadura teve no balneário de Mar del Plata, foi condenado em 2011 à prisão perpétua pelos crimes de 36 sequestros e tortura, dois homicídios, além de estupros de prisioneiras que mantinha de forma clandestina na base da Força Aérea dessa cidade. Molina se tornou o primeiro ex-integrante da ditadura a ser condenado à prisão por estupros, que passaram a ser considerados crimes contra a Humanidade. 

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“Pela primeira vez, os estupros não foram considerados como uma parte da tortura, mas sim, como crimes contra a Humanidade. Somente existem três antecedentes no mundo”, afirmou a época o advogado das vítimas, César Sivo.

No entanto, os estupros estavam dentro do “pacote” de acusações contra Molina, ou seja, embora condenado, ele não foi condenado especificamente pelos crimes sexuais.

A primeira vez que ex-militares foram levados ao banco dos réus e condenados especificamente por delitos sexuais foi em agosto do ano passado, quando os ex-oficiais Jorge “Tigre” Acosta e Alberto “Gato” González foram condenados a 24 a 20 anos de prisão, respectivamente, por serem considerados culpados de cometer violência sexual de forma repetida nos casos de três mulheres detidas na Escola de Mecânica da Armada entre 1977 e 1978.

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Até o ano passado das mais de 240 sentenças por crimes contra a Humanidade, 31 contemplaram delitos por violência sexual. Essas condenações eram referentes aos casos de 110 vítimas (100 mulheres de 15 homens). De um total de 970 pessoas condenadas pelos crimes contra a Humanidade, 105 foram responsabilizadas por delitos sexuais.

Segundo os especialistas, pelos depoimentos nos julgamentos, as agressões sexuais não eram situações isoladas, mas sim parte de um plano de aniquilamento e degradação dos homens e mulheres civis detidos.

Guatemala: violência sexual usada como arma de guerra

Entre 1960 e 1996 a Guatemala foi assolada por ditaduras militares (e também governos civis tutelados por militares) que implantaram um regime de terror. O mais notório ditador foi o general Efraín Ríos Montt, que esteve apenas um ano e meio no poder, entre março de 1982 e agosto de 1983. Pouco tempo, mas marcado por uma frenética política sanguinária que varreu do mapa 448 aldeias indígenas e seus habitantes. 

Após décadas de impunidade, em 2013 Ríos Montt foi finalmente julgado pelo genocídio de indígenas e também por escravidão sexual contra mulheres dessas aldeias. A violência sexual foi usada nesse conflito interno como uma arma de guerra.

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As mulheres dos povos originários guatemaltecos (predominantemente maias) foram escravizadas pela ditadura e por grupos para-militares com o objetivo de atender sexualmente os soldados, além de lavar a roupa das tropas e de cozinhar. Os maridos dessas mulheres foram assassinados pelos militares. A maioria das vítimas tem atualmente mais de 60 anos de idade e sofre graves transtornos de stress pós-traumático.

No total, 1.465 vítimas de torturas sexuais apresentaram denúncias. As menores de idade violadas naquele período representam um terço das mulheres torturadas. 

Em janeiro deste ano foram realizados os julgamentos por delitos sexuais dos Patrulheiros de Autodefesa Civil (PAC), que eram as milícias do regime militar. Cinco ex-membros das PAC foram ao banco dos réus por violência sexual cometida entre 1981 e 1983 contra 36 mulheres maias. Eles foram condenados a penas de 30 a 40 anos de prisão.

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Paraguai: estupros e pedofilia no alto escalão

Durante a ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-89) no Paraguai, o próprio ditador cometeu estupros em grande escala e o crime de pedofilia contra crianças com idades entre 10 e 15 anos. 

Os investigadores do Departamento de Memória Histórica e Reparação do Ministério da Justiça em Assunção, capital paraguaia, afirmam que Stroessner estuprava em média quatro novas vítimas por mês. As crianças eram sequestradas pelos militares, geralmente na zona rural, mas às vezes também nos bairros da capital. Ao longo dos 34 anos de ditadura, estima-se que Stroessner teria violado mais de 1.600 crianças. Ministros e generais, às vezes, também cometiam o crime. 

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As primeiras denúncias sobre os estupros sistemáticos do ditador paraguaio foram publicadas pelo jornal “The Washington Post” em 1977. Mas os crimes sexuais da ditadura stroessnista somente começaram a ser investigados em 2016. 

Um dos casos emblemáticos foi o de Julia Ozorio, que tinha apenas 12 anos quando foi sequestrada da casa de seus pais no vilarejo de Nova Itália em 1968. Ela foi mantida escrava sexual do ditador e, depois, de seus oficiais, até os 15 anos. Julia se exilou na Argentina e em 2008 publicou suas memórias, “Uma rosa e mil soldados”, na qual relata o calvário que enfrentou.

Peru: esterilização forçada de mulheres para “combater a pobreza” 

Nos anos 1990, o então ditador peruano Alberto Fujimori considerava que, para reduzir a pobreza, era necessário diminuir o número de pobres. Mas o plano de Fujimori não era a redução da pobreza pelo crescimento da economia, mas sim, impedir que os pobres tivessem filhos. 

Desta forma, determinou a esterilização em massa de mulheres jovens que nunca haviam tido filhos. Para manter o assunto longe dos olhos da imprensa e dos setores opositores, concentrou essa ação no interior, principalmente nas comunidades indígenas. 

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A maior parte das mulheres eram indígenas e pobres, que praticamente só falavam quéchua. Algumas assinaram documentos para autorizar a esterilização em espanhol, idioma que sequer compreendiam. Outras não assinaram documento algum, mas foram forçadas ao procedimento. 

As estimativas indicam que de 270 mil a 350 mil mulheres foram esterilizadas à força ou enganadas pelo regime (os médicos lhes diziam que eram procedimentos para “melhorar a saúde”). 

Fujimori caiu no ano 2000. Os anos passaram e as autoridades só começaram a encarar este assunto em 2015. No entanto, muitas vítimas da esterilização forçada ordenada por Fujimori já haviam falecido. Outras desistiram de recorrer à burocrática Justiça peruana. 

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Das 8 mil vítimas que se inscreveram no Registro de Vítimas de Esterilizações Forçadas, aberto pelo Ministério da Justiça e Direitos Humanos em 2016, duas mil fizeram a denúncia formal contra Fujimori. Dessas, 1.307 tiveram lesões graves decorrentes do procedimento. 

Atualmente Fujimori cumpre uma pena de 25 anos de prisão por assassinatos e desvio de fundos públicos. Mas em dezembro passado um tribunal em Lima abriu o processo contra Fujimori pelas esterilizações. A expectativa é que ele seja condenado até o final deste ano.

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