Mercedes Sosa, cantora latino-americana, em 1972.
Mercedes sosa, cantora latino-americana, em 1972. Foto: Wikipedia
Sociedade

Como a América Latina vem tratando suas minorias étnicas e raciais

De Mercedes Sosa aos "cabecitas negras", a Argentina é um retrato da invisibilidade cultural que pode estar por trás das tensões sociais na região

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Quando me mudei para Buenos Aires, em 2009, eu logo notei a falta de negros e índios nas ruas. No mestrado, eu tinha um amigo negro e um dia percebi que, quando ele cruzava com outro negro na rua, eles se cumprimentavam. Eu perguntei por que, em uma cidade tão grande, onde todo mundo ignora todo mundo, eles se saudavam. “Somos poucos”, me respondeu.

A Argentina é parte de um exemplo que se estende por toda a América Latina. É o retrato tangível da invisibilidade social, cultural e de identidade de uma querela civilizatória que talvez esteja silenciosamente se arrastando desde seus primeiros colonizadores.

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De fato, há o mito argentino de que a colonização foi feita basicamente por imigrantes europeus, que vieram povoar um grande planalto e, no caso específico de Buenos Aires, um pântano.

Buenos Aires era tão inóspita que foi fundada duas vezes. Dizem os historiadores que os primeiros colonos abandonaram a cidade em razão de uma praga de piratas e de um solo pastoso estéril, deixando apenas vacas e cavalos para trás. No entanto, persistem inúmeros fatos relativos à população nativa e ao tráfico de escravos que parecem totalmente incoerentes ou ignoradas. 

Certo dia, tomada por furor jornalístico, resolvi buscar os registros de imigração nos arquivos do país. Achei registro de uma grande quantidade de população negra entrando por séculos na Argentina. Segundo os historiadores, cerca de 74 mil negros desembarcaram do Rio da Prata até o século 18. Mas onde eles foram parar?

A explicação histórica para a ausência de negros na Argentina estaria na dizimação da população em razão de uma epidemia de febre amarela e da presença deles no front da Guerra do Paraguai. 

De fato, historiadores costumam explicar que a expressão argentina “carne para o canhão”, algo na linha de boi de piranha, uma espécie de isca, era usada para os negros que iam à Guerra do Paraguai lutar pela Argentina. Eles iam orgulhosamente, com promessas de integração e cidadania, e terminavam na linha de frente com altos índices de mortandade. Ironicamente, historiadores apontam também que o tango, hoje marca registrada da identidade argentina, tem origens negras. 

O último censo realizado pelo governo argentino, em 2010, admite que os afrodescendentes argentinos padeceram tanto de invisibilidade histórica, quanto de estatística. Naquele momento, de uma população de 41 milhões de argentinos, apenas 0,4% se autodeclarava afrodescendente, pouco menos de 150 mil pessoas. 

Cabe aqui uma observação. Existem restrições etimológicas e de fenótipo quando nos referimos aos sentidos da palavra “negro”, seja como raça ou cor, ou como termo, na Argentina.

A palavra negro é comumente associada à criminalidade no país

O antropólogo Alejandro Grimson descreve esse contexto: “negro não se associa necessariamente na Argentina a certos rasgos fenótipos africanos (…). Nesse sentido, tendem-se a considerar-se na linguagem ordinária aos pobres como negros ou cabecinhas negras”. 

Em diversas definições, inclusive históricas, é sugerido o aparecimento do termo cabecitas negras em protestos na década de 1940 em Buenos Aires, quando milhares de populares, que cabiam no fenótipo, tomaram as ruas.

Cabecita Negra é um termo pejorativo, de natureza racista, amplamente utilizado na Argentina. Embora o termo faça parte da linguagem popular daquele país, “é usado para depreciar um setor da população difícil de definir com precisão, associado a pessoas com cabelos escuros e pele de matiz intermediária, pertencentes à classe trabalhadora”, definem os dicionários. 

Poucos fora da Argentina sabem, mas por lá Mercedes Sosa era carinhosamente chamada de La Negra. Nasceu na empobrecida província de Tucumán, filha de um peão de obras e uma lavadeira, depois se casou e foi viver em Mendoza. Mas foi reconhecida em Montevidéu, no Uruguai.  Entre os três lugares em que suas cinzas foram espalhadas, estão as duas cidades (Buenos Aires e Montevidéu). Ela dizia ter sido feliz em uma e reconhecida como artista na outra.

E os índios?

Os indígenas também são pouco vistos pela capital argentina. Saindo para o norte do país, em cidades como Salta ou Jujuy, no entanto, eles são mais comuns do que os descendentes europeus. Muitos reclamam do estereótipo criado na capital. Não é incomum serem perguntados se vêm de uma nação limítrofe, por seus traços indígenas.

O argentino parece não conhecer seus próprios anfitriões

É interessante pensar também que, nos anos 1990, existiam na Argentina mais pessoas que se consideravam “índios” do que no Brasil, segundo a indigenista Alcida Ramos. 

Em outros países, essa negação é transformada, muitas vezes, numa espécie de apartheid. Esse é o caso da Bolívia, onde embora não haja falta de registro da população originária, é possível ver, com séculos de distância, quem foram os colonizados e quem foram os colonizadores. 

Estaria essa invisibilidade social se transformando na miopia da nossa nova geopolítica? 

O aspecto mais marcante de Mercedes Sosa é o rosto que nos remete à América Latina como quase nenhum outro. Quando o Brasil dava as costas ao continente, de maneira consciente ou não, por lusofonia ou escolha, era o rosto de Mercedes que aparecia junto a Chico Buarque, Caetano Veloso, Maria Betânia e tantos outros. Esse rosto que muitos dizem ser o da Pachamama, deusa soberana entre os índios, muitos andinos. 

É certo que muitos povos originários desse continente são diferentes entre si. No entanto, Mercedes traz à tona uma regionalidade que às vezes não nos damos conta que existe. 

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O choque das civilizações

Guardadas as devidas diferenças e proporções, esse movimento se assemelha a uma teoria de relações internacionais que sacudiu o mundo acadêmico nos anos 1990. Um artigo do professor da Harvard, Samuel P. Huntington, na Foreign Affairs, e que terminou por se tornar um best-seller nos EUA: O Choque das Civilizações

Nele, Huntington sustenta que seriam as diferenças culturais, e não ideológicas, num contexto de aproximação devido à globalização, as próximas fontes de conflitos. Huntington, no entanto, mesmo sustentando distinções dentro do continente, coloca na mesma cesta civilização ocidental e América Latina, ignorando, naquele momento, os movimentos endógenos da região que foram se recrudescendo. Até porque tende a se centrar nos temas do momento, como as tensões entre o mundo ocidental e as sociedades muçulmanas.

Em alguns aspectos o autor é taxativo, “religião e diferenças culturais” estarão no cerne dos conflitos modernos. Com o avanço de religiões messiânicas e sua capilaridade política, em conjunto com a discussão mais acirrada das questões ligadas à identidade, não estaríamos vivendo um choque de civilizações? 

Colonizadores e colonizados 

Com a região em convulsão social e as insurgências nascendo dos povos originários, e não necessariamente de classes sociais, poderia-se indagar se novos movimentos culturais e civilizatórios não estão sendo ignorados. 

É fácil aludir a questão de que somos diferentes no Brasil. Mas será que estamos tão aquém de nossos vizinhos? Vale aqui outra observação. No Brasil, negros e pardos não são minoria. Mesmo assim, continuam marginalizados. 

Existem mais de 150 etnias na Amazônia, e quando estive lá, há um mês, visitando várias delas, notei que, após anos de disputa, elas começam a olhar de volta aos povos que as colonizaram

Vi clara intercessão de valores que incluíam a luta pela sobrevivência. Pode-se argumentar que essa luta sempre existiu.

Mas, dessa vez, as diferenças entre elas pareciam diminuir para passar por um processo de internacionalização. Eles precisavam aglutinar-se no continente e eles pareciam entender isso com impressionante clareza. 

Sem partido 

Hoje, ao meu ver, as insurgências na região vão muito além de predileções políticas, embora estejamos divididos por profundas diferenças partidárias e os movimentos de esquerda tenham, historicamente, se apropriado dessas lutas, ora por boa vontade ora por oportunismo. 

No Equador, os movimentos indígenas não necessariamente se erguem contra governos de direita. No  Chile, país onde vivem muitos índios Mapuches, por outro lado, há, sim, uma insurgência direcionada a um governo direitista. De todas as maneiras, há uma mudança de paradigmas acontecendo e eles agora se debruçaram sobre um abismo que levamos séculos para enxergar. 

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Coincidências? 

Faço aqui mais uma ressalva a não rendição ao partidarismo e aos perigos de minimizarmos o momento presente como uma crise perene de política partidária. No entanto, chama a atenção um levante com forte presença indígena na região. Principalmente, quando, historicamente, as revoluções nasceram do bojo da classe-média. 

Há 15 anos como jornalista ainda não topei com uma coincidência. Eu costumo dizer que se algo cheira mal há chorume por perto, se algo parece casualidade não é acidente, se uma estória é descabida há um relato inverossímil por trás. Se uma série de eventos eclode, não são fatos isolados, são um fenômeno, como aqueles provados pela ciência. 

São mais de cinco séculos de lutas civilizatórias que vinham ocorrendo de maneira silenciosa. Hoje, elas saem às ruas

Seja por fatores aparentemente mundanos, como um aumento da gasolina, um governo que passou do prazo, um clamor social. Esses são apenas o estopim, não a causa. Parece  que temos exatos 527 anos de história para resolver. 

Na minha canção favorita cantada por Mercedes Sosa, ela sai para caminhar pela América e a sente na pele. Casualidade ou não, ela cita três países nesse passeio após sair do Peru. “Rosto Bolívia, Estanho e solidão/Um verde Brasil beija a meu Chile/Cobre e Mineral/Subo desde o sul/Rumo a entranha América e total/Pura raiz de um grito/Destinado a crescer e a estourar”. E no refrão diz “Todas as vozes, todas. Todas as mãos, todas”.