Mulheres do movimento feminista na Argentina se abraçam após a aprovação do aborto legal na Câmara dos Deputados, em 11 de dezembro de 2020, dias antes da votação no Senado. Foto: HCDN/Fotos Públicas
Sociedade

Na América Latina as mulheres de Atenas, são de Esparta

Das Mães e Avós de Maio e o Ni Una Menos, às mulheres que entraram no parlamento para mudar a vida de suas irmãs latino-americanas por meio de novas leis

As Mães e Avós de Maio da Argentina são, talvez, as principais precursoras da luta dos direitos humanos e das mulheres na América Latina. Elas são, por exemplo, parcialmente responsáveis por alguns dos maiores avanços em identificação por DNA.

Entre 1976 e 1983, muitas crianças argentinas foram sequestradas, outras nasceram nos centros de detenção da ditadura. Essas crianças eram entregues a famílias que simpatizavam com a ditadura – as avós investigam até hoje o paradeiro delas. Quando desconfiavam que tinham encontrado uma, restava o problema de provar de maneira definitiva à Justiça que elas eram mesmo crianças subtraídas dos pais desaparecidos durante o regime militar.

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Pensando nisso, no começo da década de 1980, as avós se jogaram no mundo, se reunindo com geneticistas pelo mundo, participando de Congressos de hematologia em busca de maneiras de identificar crianças cujos pais estavam desaparecidos. Para a geneticista estadunidense Mary-Claire King perguntaram se era possível identificar crianças subtraídas apenas com o DNA dos avós? A resposta da cientista mudou a vida de muita gente: “Sim”.

King, junto a outros geneticistas e às avós, desenvolveu o que ficou conhecido como índice de abuelidad. A descoberta permitiu que as avós recuperassem mais de 130 netos e mudou a história das ciências genéticas no mundo.

Era só um começo

Com o fim da ditadura, as argentinas começaram a reunir-se nos “Encontros Nacionais de Mulheres” e, com o tempo, acabaram incendiando um continente. É claro que as argentinas não são as únicas, mas slogans e movimentos criados por elas ajudaram a homogeneizar as demandas e encorajar outras mulheres da região a fazer o mesmo.

Sinal dos tempos, e dos avanços inspirados por elas na região, é a presidência da Constituinte chilena, que vai parir a nova Constituição, outorgada a uma índia Mapuche em um país que, até 2004, não permitia que as mulheres se divorciassem.

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Voltando um pouco no tempo, em 2015, surgiu o movimento Ni una menos, contra a violência contra as mulheres, impunidade contra perpetradores dessa violência e opressão de gênero.

O movimento ganhou as ruas da Argentina, levando, por vezes, mais 100 mil pessoas a manifestações, e ganhando, mais tarde, células homônimas em países como o Chile e o México.

O Chile foi um dos países da região que melhor assimilou o movimento transformando consignas subjetivas em mudanças reais, uma aceleração que cobriu anos de defasagem histórica do regime de Pinochet.

Se a palavra feminicídio surgiu da concepção da escritora sul-africana Diane Russell, a expressão na América Latina ganhou impulso na nefasta fama da cidade Juárez, no México, onde no começo dos anos 1990, centenas de mulheres foram sistematicamente exploradas sexualmente, torturadas e assassinadas com a conivência ou vista grossa das autoridades locais.

Em 2007, o México foi o primeiro país a usar essa tipificação em código penal que define feminicídio como um crime “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Já na Argentina, o feminicídio se tornou agravante penal em 2012. E as mulheres latino-americanas avançam no sentido de não só evitar mortes, mas de melhorar a vida de todas na região.

Das ruas ao parlamento, o caminho trilhado por essas mulheres passa pelas ruas, mas chega mais longe que isso. E esse caminho precisa ser pontuado para que mais mulheres também o trilhem em mais países na região.

Policemakers

Segundo a CEPAL, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, uma agência da Organização das Nações Unidas (ONU), a participação de mulheres em cargos legislativos nos últimos anos vem aumentando na região e está hoje em pouco mais de 30%, em média.

Entre os países que têm maior participação de mulheres nos parlamentos estão Cuba, México, Costa Rica e Argentina, com porcentagens que variam entre 40% e 50%. Já o Brasil, está entre os países com os menores índices de representatividade de mulheres nessas Casas, com pouco mais de 14%, perdendo apenas para Haiti, Belize, Antígua e Barbuda, São Vicente e Granadina.

Se o primeiro passo dos movimentos feministas foi tomar as ruas, os próximos foram aceder a cargos eletivos e legislar. A Argentina foi pioneira em implementar lei de cotas para mulheres nos partidos. Outro país relevante nesse sentido é o Uruguai. No país, o peso da Igreja é menor do que em outros, mas o machismo também é cultural. Lá, por lei, de cada três candidatos apresentados pelas legendas, um deve ser mulher.

De fato, quase meio século depois das primeiras reuniões das Mães de Maio, finalmente temos dezenas de leis dando mais autonomia, liberdade e nos aproximando da equidade de gênero na região.

De volta à Argentina, podemos citar vários exemplos. Por lá, nossas hermanas conseguiram vencer a Igreja Católica na legalização do aborto e na união de pessoas do mesmo sexo, e abraçaram causas LGBTQA+. O país criou recentemente cotas para pessoas trans no funcionalismo público argentino, e passou a permitir o reconhecimento de pessoas não binárias na carteira de identidade.

A última vitória foi o reconhecimento do tempo com a criação dos filhos para a aposentadoria. A norma aprovada em julho deste ano dará o empurrão que faltava para que 144 mil mulheres com mais de 60 anos possam se aposentar na Argentina. Um tapa de luva naqueles que acham que o feminismo é a palavra masculina para o machismo e que a luta das mulheres é para subverter valores de família.

Tudo isso só foi possível, porque as mulheres conseguiram passar de ativistas nas ruas para policemakers.

Por aqui, as “mulheres de Atenas” são, na verdade, de Esparta

Quando o cantor brasileiro Chico Buarque fez a canção Mulheres de Atenas, em plena ditadura, quase que passou batido a verdadeira mensagem da canção. Enquanto descrevia a abdicação e o sacrifício das mulheres daquela cidade-estado, Chico estava na verdade usando a ironia para criticar coisas como a submissão, a supremacia masculina e os deveres exclusivamente domésticos das mulheres de Atenas. Elas esperavam, teciam, se sacrificam, suportavam traições, humilhações e sofriam.

Tal paralelismo não cabe às mulheres latino-americanas há algum tempo. Se tomarmos, a exemplo Chico, as sociedades greco-romanas, as latinas hoje se assemelham mais às mulheres de Esparta, iam à luta, participavam ativamente de reuniões e decisões políticas e teciam seus próprios destinos.

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