Ilustração: Felipe Mayerle.
Sociedade

O futuro do trabalho é trabalhar menos? Empresas começam a testar a semana de quatro dias úteis

Para saber se funciona ou é apenas modismo, conversamos com algumas das empresas que já adotaram a nova rotina

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Em abril, por uma coincidência de datas, o brasileiro teve duas semanas de quatro dias úteis consecutivas. Dois feriados, um na sexta-feira (15, Páscoa), outro na quinta (21, Tiradentes), deram a todos os trabalhadores um gostinho do que alguns profissionais já têm como rotina e que pode virar uma tendência no mundo corporativo.

A ideia não é nova, mas tem ganhado tração recentemente. No noticiário corporativo, notícias de empresas e até países, como o Reino Unido, Espanha, Islândia e Nova Zelândia, adotando ou iniciando estudos da jornada reduzida (sem reduzir o salário) têm aparecido com mais frequência, influenciados pelas alterações de rotina dramáticas exigidas para conter o avanço da pandemia de covid-19.

No Brasil, embora o movimento ainda esteja dando seus primeiros passos, já há casos registrados. Por aqui, NovaHaus, Templo.cc e Winnin já fizeram a virada. A Zee.Dog, adquirida pela Petz por R$ 715 milhões em agosto de 2021, é a maior do grupo dos que trabalham quatro dias por semana — a empresa tem pouco menos de 200 funcionários, segundo sua página no LinkedIn.

Foi numa dessas, lendo pela imprensa os experimentos de fora, que Luciano Braga, co-fundador e líder de ativismo e projetos sociais da Shoot, uma agência de publicidade de Porto Alegre (RS), resolveu levar a novidade para dentro de casa. “Quando descobrimos isso na Europa, que estava acontecendo, a gente nem pestanejou. Falei ‘vamos fazer isso?’ e todo mundo meio que topou”, disse em entrevista ao LABS.

Luciano Braga, da Shoot. Foto: Divulgação


A Shoot nasceu há 12 anos, resultado da insatisfação de um grupo de publicitários com seu próprio mercado. “Pode soar paradoxal, mas agências [tradicionais] de criatividade, de propaganda, não têm tanto espaço para você ser criativo”, explicou Luciano. Além disso, eles queriam se dedicar a trabalhos mais alinhados às suas convicções. “Estávamos sempre incentivando o consumismo. Queríamos gerar impacto positivo na sociedade com a nossa criatividade.”

A gênese da agência ajuda a entender o pioneirismo na semana de trabalho encurtada. O tamanho da Shoot, também — hoje, são 12 pessoas, incluindo os donos, o que facilita a implementação do que Luciano chama de experimentos. “A gente chama de experimento muito por causa da ‘vibe’ de que a gente vai mudar, vai ajustar coisas ao longo do processo. Entender [o experimento] como um processo é algo muito importante.”

A Crawly, startup mineira especializada em dados fundada por João Drummond (atualmente CEO) e Pedro Naroga em 2017, é outra pequena (19 pessoas, com 5 vagas em aberto) que aderiu à jornada reduzida, mas por outro motivo — pelo menos, a princípio.

João Drummond, da Crawly. Foto: Divulgação


As posições de engenharia desfrutam do dia extra de folga semanal desde 2018, quando os fundadores viram no benefício um diferencial para recrutar desenvolvedores e engenheiros, perfil profissional em escassez no mercado já naquela época.

“Vimos que a produtividade [do time de engenharia] não tinha impacto negativo, então a gente implementou isso pra todo mundo”, disse João ao LABS, ao falar da expansão do benefício a toda a empresa.

Isso ocorreu no início de 2021. Após um ano trabalhando apenas quatro dias por semana, os resultados têm sido satisfatórios até aqui.

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Modo de fazer

Diminuir em 20% o tempo trabalhado demanda ajustes em processos e expectativas, internas e externas.

Um dos poucos problemas internos citados por Luciano desde a mudança, implementada na Shoot em março deste ano, foi o de funcionários ansiosos por não saberem o que fazer com o dia de folga ou se sentindo culpados por ficarem à toa enquanto o resto da cidade trabalha.

Na agência porto-alegrense, os funcionários foram divididos em duas equipes: a de atendimento, que trabalha de segunda a quinta, e a de criação, que entra na terça e encerra a semana na sexta.

Segundo Luciano, isso ajuda no fluxo de trabalho. O atendimento entra primeiro, faz reuniões com clientes e define as demandas da semana, e depois a criação põe a mão na massa para fazer as entregas acontecerem. Na terça, primeiro dia da semana em que todo mundo está na empresa, acontece uma reunião geral.

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Na Crawly, todos folgam na sexta. Ou quase todos. Os sócios ainda trabalham cinco dias por semana — “esse quinto dia a gente usa para arrumar um pouco a casa”, explica.

A Crawly conta com plantonistas para atender clientes em casos de emergência, em um modelo similar ao que empresas de tecnologia costumam adotar para os fins de semana e feriados.

Fora esses ajustes pontuais, os clientes não reclamaram, segundo os dois executivos. “As entregas continuaram muito boas”, resumiu João, da Crawly.

Dá para fazer?

A incidência crescente de empresas abraçando a semana de trabalho de quatro dias pode dar a impressão de que tal avanço está ao alcance de todos. Thatiana Cappellano, sócia-fundadora da 4CO, uma consultoria especializada em cultural organizacional, vê o movimento com cautela.

Nesse momento, fico um pouco desconfiada. A gente está vendo uma dificuldade muito grande na retomada do trabalho no pós-pandemia, com as empresas que foram para o modelo remoto numa queda de braço com os funcionários. Tem muita empresa obrigando o retorno ao 100% presencial. Se é difícil para os caras aceitarem modelo de trabalho flexível, imagina uma jornada menor.

Thatiana Cappellano, sócia-fundadora da 4CO

(Um traço comum na Shoot e na Crawly é que ambas já adotavam o modelo de trabalho remoto desde antes da pandemia, mesmo tendo um escritório central — no caso da Shoot.)

O grande empecilho, para Thatiana, não é produtividade. Os inúmeros experimentos, a maioria em empresas pequenas, mas alguns em grandes corporações, como a Panasonic e a Microsoft no Japão, provaram que é possível conciliar jornadas menores a um aumento expressivo da produtividade.

Ocorre que produtividade não é receita de bolo. “Se a gente consegue importar esse ‘modus operandi’ [de empresas bem sucedidas na semana de quatro dias], aí eu acho que a gente precisa refletir”, questiona Thatiana. “A cultura empresarial muda bastante nos países, em relação ao tipo de indústria e tudo mais.”

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Outro risco apontado pela especialista, esse para o funcionário, é o de ter que trabalhar o mesmo tanto de antes em menos tempo, o que pode virar uma fonte de estresse. “A falta de priorização das empresas pode criar o caos se a gente não passar a entender o trabalho em termos qualitativos em vez de quantitativo.” 

Pouco adianta reduzir a jornada semanal de 44 para 35 horas se nessas 35 horas o funcionário é sobrecarregado. Daí a importância do diálogo e da revisão de processos, como fizeram Shoot e Crawly — outro esforço mais fácil de ser feito em empresas pequenas.

Por isso, recomenda Thatiana, é importante que empresas que resolvam tirar um dia da jornada semanal tenham políticas claras relacionadas ao tema. “A política não garante [seu cumprimento], mas se existe uma, o empregado tem algo para argumentar”, diz ela, referindo-se a cenários em que a empresa passa a exigir mais que o combinado.

Modismo ou futuro?

Quem fez a redução da semana de trabalho não se arrepende e demonstra entusiasmo com o novo paradigma de trabalho. 

“Sou bem crítico com o sistema capitalista e a forma como a gente se distribui para trabalhar”, diz Luciano, da Shoot. Para ele, a semana de quatro dias não é uma quebra do sistema, é simplesmente uma maneira, legal e factível, de dar mais tempo às pessoas. “Isso é o que todo mundo quer hoje, descanso e tempo. Óbvio que dinheiro, mas descanso e tempo.”

A Shoot, para o co-fundador, está desbravando um caminho que deve se tornar mais popular com o tempo. “No Brasil ainda é muito incipiente, vai demorar muito”, alerta, “mas não vemos como modismo, não. Vejo como caminho natural”.

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João Drummond, da Crawly, acha que o modelo da semana de quatro dias deverá ganhar mais espaço que o do trabalho remoto. “Depende muito do modelo da empresa, de onde a empresa atua, se precisa de mais interação com o cliente, mas acredito que é um modelo que vá crescer, principalmente em empresas de tecnologia”, profecia.

Nas duas empresas, bons resultados já são mensuráveis — incluindo aquela meta que as motivou, o bem-estar dos funcionários. “Todo mundo chega mais descansado, feliz e energizado para a semana”, gaba-se Luciano. “Somos muito mais organizados hoje do que há cinco meses, quando não tínhamos a semana de quatro dias. Acho que a empresa ficou mais madura, melhor, no processo.”

“Com esse dia extra todo mundo se beneficia bastante”, diz João. “Tem funcionários que passam mais tempo com a família, com filhos, por exemplo. A gente realmente acredita que isso gera mais qualidade de vida para os funcionários.”

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Talvez, a julgar pelas experiências disponíveis e a cultura corporativa que vigora no Brasil, o mercado de trabalho bifurque e tenha de um lado mais pequenas empresas adeptas da semana de quatro dias e, de outro, as grandes com a rotina tradicional, de cinco dias.

“Os exemplos me parecem frágeis — aqui no Brail, pelo menos — para tomarmos isso como uma tendência”, avalia Thatiana.

“A gente vê na mídia duas ou três [empresas] com formatos muito específicos, ‘uma consultoria de 12 pessoas’, ‘uma pequena empresa de serviços de 10 pessoas’. Não que não tenha dificuldades nem que não tenha seus méritos, mas é muito mais fácil fazer isso com 10 do que com 5 mil empregados.”

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