Era alta madrugada quando meu telefone tocou.
“Nosso voo atrasou e suas férias, meu bem, parecem ter acabado”. Do outro lado da linha, duas jornalistas amigas, que tinham vindo passar férias a meu convite no Brasil, se revezavam para contar que o promotor Alberto Nisman tinha sido encontrado morto em seu apartamento no bairro de Puerto Madero, em Buenos Aires. Eu as havia deixado horas antes no aeroporto de Brasília e tinha passagem comprada para dois dias depois. Aturdida, demorei a acreditar no que me relatavam. “Vocês não estão me pregando uma peça?”, perguntei.
Não, não era uma peça. O alerta veio de um ex-colega de redação do jornal onde havia trabalhado por três anos, o mais velho do país, Buenos Aires Herald. Ele foi o primeiro a lançar nas redes sociais um tuíte que caiu como um terremoto na Argentina. Tratava-se de Damian Pachter, que deu o fora do país assim que se deu conta do tamanho da treta. Realmente, era o fim precoce das minhas férias.
Um tuíte que sacudiu um país
“Eles encontraram o promotor Alberto Nisman no banheiro de sua casa, em Puerto Madero, sobre uma poça de sangue. Ele não estava respirando. Os médicos estão lá”, dizia o tuíte que, cinco anos depois, ainda ecoa na Argentina. O tuíte foi lançado a 1h08 da manhã do dia 19 de janeiro de 2015.
Dias antes, Alberto Nisman, que investigava há mais de uma década o atentado à bomba a Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), em 1994, que deixou 85 mortos, havia anunciado que tinha novidades estarrecedoras sobre o caso. O promotor acreditava no encobrimento, por parte do governo de Cristina Kirchner, de iranianos implicados na explosão em troca de um acordo comercial com o Irã. Para ele, o governo havia acobertado deliberadamente os culpados.
Quatro dias antes de sua morte, o promotor esteve em um conhecido canal de televisão local para afirmar que acreditava que tinha “provas contundentes” de uma suposta aliança da gestão de Kirchner com o provável país dos terroristas. Poucos dias depois, apenas horas antes de que o Nisman apresentasse sua denúncia diante o Congresso Nacional argentino, ele foi encontrado sem vida no banheiro de seu apartamento com um tiro na cabeça.
Cinco anos depois, após a gestão de quatro anos do neoliberal Mauricio Macri, Cristina Kirchner voltou ao poder como vice-presidenta de Alberto Fernández. No entanto, ainda pesa sobre ela (e sobre uma série de funcionários e autoridades de seu segundo mandato como presidenta) um processo judicial, por supostas ligações escusas com diplomatas iranianos. A acusação: traição à pátria.
Sangue na Praça de Maio
Duas fontes da Praça de Maio, nos arredores da Casa Rosada, sede do governo, jorram o que parece ser sangue. É sábado 18 de janeiro de 2020. A água tingida de vermelho ocre é parte do protesto por aquilo que muitos argentinos creem ter sido o assassinato de Nisman. A um quilometro e meio dali, perto do Teatro Colón, marco turístico da capital argentina, na Praça Vaticano, milhares de pessoas gritavam “mataram o Nisman”, somado a muitos cartazes e gritos contra a vice-presidenta. Não foi a primeira vez que argentinos saíram às ruas pedindo resposta, tanto para o atentado na AMIA, quanto para a morte de Nisman.
Com os 400 mil
Na época da morte de Nisman, eu trabalhava como freelancer para um grande canal de TV brasileiro, como produtora. Lembro-me bem da odisseia que foi filmar debaixo de uma chuva torrencial, entre 400 mil pessoas, a marcha que ficou conhecida como 18F, 18 de fevereiro de 2015, um mês do falecimento do promotor, quando se pedia que o caso fosse elucidado. Após tantos anos cobrindo a América Latina, eu já estava bastante acostumada a cobrir grandes protestos. No entanto, somado à chuva e à indignação dos presentes, essa manifestação foi especialmente difícil de acompanhar. Não conseguíamos nos aproximar da linha de frente da marcha, onde a mãe, as filhas e a ex-esposa do promotor estavam, devido a quantidade de pessoas presentes. Para que pudéssemos entrevistá-las, nos revezamos com o equipamento pesado, tentando que não fosse encharcado, cuidamos para que a repórter não aparecesse ensopada no VT, corremos por ruas paralelas para chegar à cabeça da manifestação e, depois, quando precisamos ir embora para gerar o material e enviá-lo à redação no Brasil, andamos quilômetros até achar algum transporte. Foi uma das maiores manifestações que já vi até hoje.
O tanque de tubarões
Eu já vinha exausta da cobertura do caso após longas vigílias na porta das torres Le Parc, onde o promotor morava, tentando juntar as peças do quebra-cabeça, cercando autoridades e familiares por notícias, pendurada no telefone noite e dia. Tanto que fiquei paranoica quando começou a se revelar uma trama internacional, com possível participação de células terroristas de grupos extremistas muçulmanos, serviços secretos, labirintos judiciais, porões do poder e um xadrez que estava muito além da minha humilde capacidade jornalística.
Com medo, Pachter havia fugido do país com tanta pressa que abandonou seu carro no estacionamento da redação que um dia trabalhei. Ainda me lembro da saia justa que foi furar a segurança do jornal onde eu havia sido funcionária, contrariando ordens dos seguranças amigos que por tantas vezes tinham cuidado de mim, para filmar o carro de Pachter, há tempos no pátio do jornal. Ninguém sabia o que fazer com aquele elefante branco.
Nessa altura, eu já havia cometido uma série de erros básicos na cobertura da morte de Nisman, como me expor em programas de televisão, assinar matérias que envolviam pessoas perigosas e entrevistado muita gente que tinha tido os telefones grampeados, em uma trama que me superava imensamente. Passei a me comunicar com minhas fontes por telefones públicos e até hoje não sei se amarelei ou se o perigo era real.
Pouco tempo depois, decidi não investigar mais. Eram mais perguntas do que eu conseguiria responder, uma quantidade grande de inconsistências, reviravoltas e teorias de conspiração que me davam a impressão de que eu era apenas um peixinho nadando em um tanque de tubarões.
O promotor, a presidenta e o espião
No primeiro dia deste ano, eu buscava algo para assistir na televisão e me deparei com uma imagem familiar: o rosto de Nisman no catálogo do Netflix. Tardei alguns segundos para entender o que ele fazia ali. Venho acompanhando de perto o trabalho da plataforma, principalmente séries baseadas em casos reais. Tenho uma paixão, ora jornalística, ora apenas de interesse pessoal, por documentários e séries que envolvam processos penais. O primeiro fator que me chamou a atenção foi meu desconhecimento de que um documentário assim estava em produção. Não sou o tipo de jornalista que vive para o furo jornalístico, mas costumo saber com antecedência se algo está acontecendo no meu quintal.
Enquanto eu tratava de encontrar tempo para “maratonar” os seis capítulos, de mais de uma hora cada, e buscar informações sobre ela, eu caçava artigos na imprensa argentina sobre o documentário. Nada. Liguei para colegas. A maioria estava mais ou menos ciente da estreia da série documental mas, como eu, ainda não havia encontrado tempo para assisti-la.
No dia 2 de janeiro, após o jantar, eu me acomodei frente à tv com um bloquinho de notas e uma caneta, e decidi só sair dali após terminá-la. Cerca de 4h30 da manhã, eu lia os créditos finais incrédula. “Isso vai cair como uma bomba aí”, comentei com uma colega jornalista no dia seguinte.
Os primeiros capítulos foram tediosos para mim. Eu tinha visto e convivido com todas aquelas informações e pessoas. No entanto, a medida com que avançava, começavam a parecer rostos de gente que eu havia passado um mês tentando achar na ocasião. Rostos ganhavam vozes, formas e versões do que teria acontecido.
Mérito da série é trazer à tona a maior vicissitude para as vítimas dessa trama: é muito provável que jamais se saiba o que aconteceu a Nisman, se se suicidou ou se foi morto, e parece cada vez mais distante a perspectiva de que os culpados pelo atentado de 94 sejam julgados e condenados. Entre a justiça e a solução dos casos há hecatombe da verdade, para sempre sepultada pela política.
Soleimani e a AMIA
No dia seguinte, quando os jornais anunciavam a escalada nas tensões entre os EUA e o Irã, com o assassinato do líder Qasem Soleimani, me ocorreu uma frase que minhas lembranças de 2015 atribuem a Nisman: “Existem centenas de células terroristas ativas na América Latina”.
O atentado de 1994 não foi o primeiro da história argentina. No dia 17 de março de 1992, as 14h45, uma bomba explodiu na Embaixada de Israel em Buenos Aires, matando 22 pessoas e deixando mais de 200 feridos.
Soleimani aparece em um dos documentos do processo de investigação do atentado da AMIA, embora nunca tenha sido indiciado formalmente. Muitos jornais argentinos e de outros países, inclusive no Brasil, fizeram ilações sobre a possível participação dele no atentado de 1994. É mais uma peça no mistério que engloba uma série de mortes. Uma enxurrada de perguntas que não só carecem de respostas, como de justiça.
Outro grande mérito na série da Netflix, além de dar cara a muitos personagens do serviço secreto argentino (SIDE), é trazer à tona um depoimento de 2015 do atual presidente Alberto Fernández que, na ocasião, dizia acreditar que a morte de Nisman havia sido um homicídio e não um suicídio, como Cristina Kirchner chegou a afirmar. É a valentia de pôr o dedo em uma das maiores feridas da história recente da Argentina, em um momento tão delicado como o atual.