Com grande projeção internacional, as drag queens brasileiras são um fenômeno cultural nascido em um país marcado por tensões sociais. Mais que artistas, elas se firmaram como a voz de uma comunidade que viu sua cultura sair dos guetos e chegar ao mainstream artístico com a ajuda das plataformas de streaming. Se o YouTube foi o trampolim de muitas nesse sentido; Spotify, Deezer e agora Amazon Music representam a consolidação de um segmento inteiro na América Latina.
Pabllo Vittar e Gloria Groove, as duas drag queens com mais visibilidade na música brasileira, falaram com exclusividade ao LABS sobre como planejam suas produções para as plataformas de streaming e sobre a importância dos fãs para a explosão da arte drag no país.
Do gueto aos charts
Não é de hoje que homens se vestem como mulheres em performances artísticas. Na Grécia Antiga, a feminilidade já era explorada pelos atores em roupas e maquiagens, uma vez que as mulheres não podiam frequentar os palcos. De lá para cá, a arte drag se transformou continuamente e ganhou mais visibilidade, seja nas décadas de 1960 e 1970 durante as mobilizações por direitos civis nos Estados Unidos, seja nos bailes da periferia de Nova York nos anos seguintes.
Como entretenimento, a drag music, um gênero musical historicamente ligado à Electronic Dance Music (EDM), era um ritmo restrito ao círculo frequentado por Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT). Nas danceterias, as drag queens ficavam responsáveis por desfiles e performances – geralmente dublagens de músicas consagradas nas vozes de grandes divas do pop.
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Mas foi com o reality show RuPaul’s Drag Race que a arte drag foi alçada ao mainstream. Lançado em 2009 e comandado por RuPaul Andre Charles, ícone da arte drag, o programa reúne drag queens em um disputa marcada por desafios de costura, música, dança e humor. Nos últimos cinco anos, a atração ganhou proporções globais. Via de regra, as ex-participantes se tornam grandes celebridades e embarcam em turnês mundiais, animando legiões de fãs por onde passam.

“Nomes como Pabllo Vittar, Gloria Groove, Lia Clark, Aretuza Lovi, Kaya Conky, Mia Badgyal e muitas outras se fortaleceram diante desse cenário, se inspirando nos grandes nomes do programa, como Adore Delano, Alaska, Shangela, Willam, Courtney Act, além claro, da própria RuPaul”, analisa o gerente de relacionamento com artistas e gravadoras da Deezer no Brasil, Fábio Santana.

No Brasil, a explosão da arte drag foi peculiar não só pela sonoridade das drags, ligada a ritmos populares do país como o brega e o funk, mas também pela presença delas no mainstream artístico. “Com uma cena tão aquecida, logo as drags nacionais começaram a criar um estilo próprio e performar em diversos lugares onde as antigas gerações drag não tinham acesso, popularizando e cativando um público jovem”, analisa Fábio.
Em grande medida, a lógica das plataformas de streaming ofereceu atalhos à popularização de uma arte até então estigmatizada, quebrando barreiras de uma indústria cultural que antes era mais engessada.

Pabllo é o nome dela
Pabllo Vittar declarou, em entrevistas, que começou a se montar (vestir-se como mulher) graças ao RuPaul’s Drag Race em meados da década. Em 2017, ela já era um fenômeno nacional: juntos, os clipes de K.O. e Corpo Sensual, lançados naquele ano, somam cerca de 650 milhões de visualizações no YouTube. A colaboração com a brasileira Anitta e o grupo Major Lazer em Sua Cara, um hit global de 2017, bateu 450 milhões de views no plataforma de vídeos.
Esses números, alavancados pela dedicação quase religiosa dos fãs, indicavam que Pabllo – e a arte drag – não era um fenômeno passageiro. Hoje, a artista coleciona recordes: é a drag queen mais ouvida no Spotify, com mais de 4,3 milhões de ouvintes mensais, e a mais seguida do mundo no Instagram, com quase 10 milhões de seguidores. Foi a primeira drag queen a conquistar um prêmio European Music Awards (EMA), da MTV, e foi a primeira artista brasileira a se apresentar na cerimônia de premiação.
No Spotify, a performance de Pabllo impressiona. Em 2017, bateu recorde ao colocar três de suas canções no Top 5 do Spotify Brasil. Com o lançamento de seu penúltimo álbum, Não Para Não, em 2018, conseguiu inserir todas as faixas no Top 50 Brasil no Spotify, com quatro canções posicionadas no Top 10. Foi o álbum brasileiro mais ouvido nas primeiras 24 horas na plataforma em 2018.
O último álbum da cantora, 111, será lançado em duas partes nas plataformas. A primeira foi divulgada em outubro e a segunda deve ser disponibilizada ao público em 2020, um ano promissor para a drag, que já é atração confirmada nas edições brasileira, argentina e chilena do festival Lollapalooza.
Tudo começa ainda na composição das músicas. Procuro trazer a minha verdade, influências e energia em cada uma delas
pabllo Vittar, drag queen e cantora brasileira.
O engajamento em torno de Pabllo nas plataformas de streaming logo foi percebido pela Amazon, que convidou a artista para lançar uma música com exclusividade na Amazon Music. Flash Pose, parceria com Charlie XCX e primeira música em inglês da cantora, foi divulgada em primeira mão na plataforma. Além disso, a festa de lançamento da Alexa (assistente virtual da Amazon) na versão em português contou com um show exclusivo de Pabllo.
“Hoje em dia precisamos estar alinhadas a essas estratégias sim. Tenho uma equipe muito eficiente que me auxilia no controle de todos esses trâmites. Além disso, vivemos um consumo muito rápido das músicas com as plataformas. Lançar um álbum em partes não deixa de ser uma maneira para que todas as músicas sejam aproveitadas da melhor forma pelo público”, ressalta a artista.
Pabllo compartilha com Gloria Groove o protagonismo no ranking das músicas de drag queens brasileiras mais ouvidas nas plataformas de streaming. Dados da Deezer obtidos com exclusividade pelo LABS apontam que as duas cantoras são as principais do gênero no país.
As 10 músicas de drag queens mais ouvidas em 2019:
- 1ª – Coisa Boa – Gloria Groove
- 2ª – Provocar – Gloria Groove, Lexa
- 3ª – Garupa – Pabllo Vittar, Luísa Sonza
- 4ª – Seu Crime – Pabllo Vittar
- 5 ª – YoYo – Gloria Groove
- 6ª – Disk Me – Pabllo Vittar
- 7 ª – Problema Seu – Pabllo Vittar
- 8ª – Flash Pose – Pabllo Vittar, Charli XCX
- 9ª – Apaga a Luz – Gloria Groove
- 10 ª – Parabéns – Pabllo Vittar, Psirico
Em entrevista ao LABS, Gloria Groove comenta o cuidado com que trata suas produções na era do streaming. “Saber trabalhar as estratégias de divulgação e o novo ritmo que o público consome o trabalho é a real pegadinha”, destaca.
Enquanto a sonoridade de Pabllo – nascida no nordeste brasileiro – se ampara em ritmos como o forró e o brega, as músicas de Gloria dão ênfase ao rap, muito por conta de sua origem, a periferia de São Paulo. Esse traço, contudo, não impede que a cantora transite pelos mais diversos ritmos, do funk ao R&B, passando pelo Pop.
“O mercado está se remoldando a cada dia e nós estamos ali no meio do turbilhão tentando aprender enquanto fazemos, afinal, a música pop brasileira na qual estamos apostando hoje ainda é uma construção, por não ser a música cotidiana do brasileiro”, analisa Gloria.
Viver na geração do streaming é precisar pensar em tudo: periodicidade, época do ano, o que vem antes, o que vem depois
Gloria Groove, drag queen e cantora brasileira.
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Fãs e ativistas
Reconhecidamente engajadas e calorosas, as comunidades de fãs do Brasil são diretamente responsáveis pela projeção das drag queens brasileiras. Em um país repleto de tensões sociais e culturais envolvendo os LGBTs, o apoio às drags é uma forma de participação política. “Essas práticas [das comunidades de fãs] são similares às práticas de ativismo. Temos a ideia de comunidade, de coletivo, de mobilização, de organização”, analisa a professora e pesquisadora Adriana Amaral, especialista em cultura de fãs.
Fábio também vê uma forte compatibilidade entre a arte drag e o perfil do público brasileiro. “Com muita maquiagem, roupas divertidas e músicas quase sempre ligadas a diversão e a vida dos jovens brasileiros, especialmente os LGBTs, as drag queen ganharam um espaço de representatividade muito importante. Hoje em dia é inegável a influência e o modelo que elas ditam para as novas gerações”, destaca.
Para Adriana, Pabllo Vittar carrega uma mistura de marcadores sociais e culturais que conduzem a uma identificação, até mesmo entre os que não são fãs. “São várias identidades: a nacional, a de gênero, uma música supostamente periférica, mas que se mistura com o pop transnacional. São várias camadas para analisar o caso da Pabllo”, diz. A artista se declara aos seus fãs, chamados carinhosamente de Vittarlovers. “Eles são divinos! Apoiam todo o meu trabalho e são a base para tudo o que lanço. Amo meus fãs!”, revela Pabllo.
Gloria Groove também destaca a relevância dos fandoms em um mercado dominado pelo streaming. “Numa era onde o artista não pode mais contar com a venda de conteúdo físico, além da divulgação pensada e executada pela equipe, nossa maior força vem dos mutirões e streaming party que os próprios fãs promovem. É o que faz toda a diferença no resultado final”, diz.