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Sociedade

Pandemia escancara a desigualdade na América Latina: o que esperar (e o que não esperar) de nossos líderes?

Não é de hoje que tragédias sanitárias viram campo de disputa política, mas diante do agravamento da pandemia de COVID-19, líderes latino-americanos precisam entender que a batalha é coletiva

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A corrida pela vacina na América Latina se transformou em uma disputa pela sobrevivência política de líderes regionais e suas equipes. Em muitos países, a população tem sido relegada ao segundo plano, atrás do projeto individual político de seus governantes. É um grande erro.

Não é à toa que as criações do cantor Belchior voltaram para as listas de músicas mais tocadas no Brasil. Belchior é um ícone nacional que tinha perfeita consciência do significado de ser latino-americano.

Apesar de as ações multilaterais no que tange ao combate à pandemia e ao avanço da vacinação ainda serem escassas, os líderes que entenderam a dimensão do que está acontecendo sabem que, a longo prazo, a única saída possível é a coletiva, ainda que cada um deles tenha de lidar com as urgências de suas realidades locais.

Nosso inimigo invisível biológico desconhece fronteiras, de modo que uma saída individual não é realmente uma opção. No entanto, testemunhamos um cenário caótico em que cada país busca por soluções individuais, enquanto seus sistemas de saúde colapsam e a crise econômica recrudesce em todo o continente.

Desde o final da Segunda Guerra, quando ficou claro que o nível de governança global deveria ser ampliado e fortalecido, resultando na criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e, depois, de blocos como o Mercosul, pouco se tem feito para modernizar essas entidades diante dos avanços tecnológicos, do crescimento da integração global comercial e do desaparecimento de fronteiras físicas entre as pessoas.

E então a pandemia alcançou o mundo inteiro e o que era um projeto constantemente adiado de repente se tornou urgente.

Um continente marcado pela desigualdade

A distribuição de vacinas na América Latina não tem nenhum padrão. O Chile, por exemplo, lidera com maior número de vacinas aplicadas, enquanto países com maior expressão política e econômica, como o Brasil, ficam para trás.

Há quem diga que imunizar uma população menor é mais fácil. No entanto, o Chile é conhecido pela sua política de Estado mínimo, em que o Estado não tem um papel de provedor. Isso inclusive esteve no centro de manifestações populares recentes. Já o Brasil, por outro lado, é mundialmente conhecido pelo sucesso de suas campanhas de vacinação em massa coordenadas pelo Estado.

Dadas essas contradições, enquanto alguns Presidentes transformam a vacinação em medidor de eficiência política, outros já começam a responder, também politicamente, por suas negligências.

Funeral de uma vítima da COVID-19 no Rio de Janeiro. O presidente Jair Bolsonaro tem recebido duras críticas pela forma como o Brasil tem conduzido a crise sanitária. Foto: Photocarioca/Shutterstock

Esse é o caso do Paraguai, que por muito menos que a tragédia social que o Brasil enfrenta, está em convulsão, resultando na queda de Ministros da Saúde.

A Argentina, por sua vez, fez um dos lockdowns mais extensos do mundo e se juntou ao México para produzir vacinas, mesmo sem ter o enorme parque farmacêutico que o Brasil tem. Por outro lado, a administração de Alberto Fernández foi fortemente afetado pelo escândalo da “vacinação VIP”, que derrubou o Ministro da Saúde e manchou a tentativa de Fernández de capitalizar politicamente com uma gestão eficiente da pandemia.

Esse efeito político e eleitoral da pandemia não é exclusivo da América Latina, claro, embora em um continente tão marcado pela desigualdade isso fique mais evidente. No Oriente Médio, por exemplo, o sucesso da campanha de vacinação está salvando o premier de Israel, Benjamin Netanyahu, de ser defenestrado, algo que até recentemente parecia inevitável. Netanyahu compreendeu rápido: a vacinação é um capital político com potencial para fortalecer legados ou destruir reputações.

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Resta saber se os líderes latino americanos, nossos “rapazes latino-americanos”, terão essa compreensão também.

Considerando os números do mapeamento Our World in Data, feito pela Universidade de Oxford, parece que não: com exceção do Chile, que já vacinou 38% de sua população, os outros países latino-americanos não ultrapassaram os 6%.

O encontro dos rapazes latino-americanos

O Mercosul completa 30 anos no dia 26 de março, data em que foi assinado o Tratado de Assunção. A cúpula seria presencial, em Buenos Aires. Já estavam confirmadas as presenças de todos os líderes do bloco: Jair Bolsonaro (Brasil), Alberto Fernández (Argentina), Mario Abdo Benítez (Paraguai) e Luis Lacalle Pou (Uruguai). Mandatários de países associados ao bloco, como Luis Arce (Bolívia) e Sebastián Piñera (Chile), também estariam presentes.

Para que essa reunião presidencial pudesse acontecer, houve uma intensa costura política em Brasília. O fato é que a Casa Rosada, sede da presidência argentina, queria uma cúpula em Buenos Aires, enquanto o Palácio do Planalto preferia evitar saias-justas, como protestos à presença de Bolsonaro e, portanto, defendia um encontro em território mais neutro, como Puerto Iguazú, a poucos quilômetros das Cataratas. No fim, a Argentina ganhou.

Isso até o Brasil colapsar. E então tudo caiu por terra quando a chancelaria argentina anunciou que o encontro seria virtual. De modo que, os líderes latino-americanos não terão um encontro cara-a-cara enquanto a pandemia recrudesce em todo o continente.

Vale frisar que nenhum bloco no mundo conseguiu aglutinar forças para conter o avanço do novo coronavírus de maneira regional, apesar de os cientistas alertarem de que se trata de uma batalha coletiva de um mundo que, ironicamente, passou décadas derrubando barreiras para fortalecer o comércio internacional e a integração.

O mundo hoje é um emaranhado de perguntas. A América Latina é o epicentro dessas perguntas, graças às novas variantes do vírus e ao crescente protagonismo do Brasil como o pior gestor da pandemia.

É certo que sem o Brasil o Mercosul não teria efeito no combate à pandemia. Por isso, havia uma esperança de que uma cúpula presencial pudesse acelerar o processo de enfrentamento coletivo da pandemia.

Os líderes latino- americanos precisam entender que a pandemia é uma variável eleitoral apenas até certo ponto. Sem integração, o mundo entra em retrocesso. O que pode ser um cabo eleitoral em certo momento é um inimigo político em outro.

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Legado verdadeiro deixará o primeiro que entender seu papel no mundo e que o desafio é a sobrevivência de todos. O mundo precisa de coordenação global, com todos os mecanismos multilaterais funcionando com participação equilibrada.

É fundamental que as nossas liderenças definam qual papel pretendem desempenhar: o de imediatistas políticos ou de humanistas, que conseguem direcionar suas breves presenças neste planeta ao bem comum.

Espero que a compreensão e a humanidade venham de um rapaz latino-americano. 

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