Cena do filme Parasita
Cena do filme Parasita, ganhador do Oscar de melhor filme
Sociedade

"Parasita", BTS e as novas vozes da cultura global

O filme coreano ganhador do Oscar é um exemplo das grandes mudanças na indústria cultural

A atenção global conquistada por Parasita, vencedor do Oscar de melhor filme e outras três estatuetas, é o sinal mais evidente e recente das grandes mudanças que a indústria cultural atravessa. A ascensão econômica e tecnológica da Ásia e as novas formas de consumo de produtos culturais são dois fatores poderosos que conspiram para fazer surgir uma cultura mais global, ou que ao menos aproxime o Ocidente do Oriente.  

Em seu discurso no Globo de Ouro, o diretor de Parasita, Bong Joon Ho, pediu ajuda a uma tradutora para dizer, em coreano, o seguinte: “Quando vocês superarem a barreira de uma polegada das legendas, serão introduzidos a tantos outros filmes incríveis”. Foi ovacionado por uma plateia de stakeholders da indústria cultural norte-americana.

O filme que, muitos descrevem como “uma carta de amor ao cinema” é, na verdade, uma fotografia das mudanças de um mundo em transição, com crescente desigualdade e conflituosas interações de classes sociais. Porém, é ainda o reflexo de que as epopeias humanas cada vez se parecem mais, e de que um filme rodado do outro lado do mundo pode despertar a empatia de um hemisfério que olhava o outro como um ser desconhecido. Estamos na era da aproximação de culturas diferentes e a indústria cultural deve refletir isso, diferentes e iguais na nossa condição de espécie humana. 

O diretor coreano Bong Joon Ho segurando 4 estatuetas do Oscar
O diretor coreano Bong Joon Ho, vencedor de 4 Oscars

O novo pop que vem do Oriente

O grupo pop sul-coreano BTS se apresentou pela primeira vez no Grammy neste ano. Foi ainda o primeiro grupo asiático a romper a barreira de cinco bilhões de streamings no Spotify.  Enquanto a China e os EUA protagonizam a maior guerra comercial dos últimos tempos, com a variável do coronavírus incluída, os polos geopolíticos do mundo vão se transformando, e isso inclui a cultura.

LEIA TAMBÉM: Americanos gastam um quinto do tempo em frente à tevê com plataformas de streaming

Estamos acostumados a olhar para o Oriente como uma espécie de outro mundo. Isso é recente pois, na história da civilização, a China dominou o mundo por quase 5 mil anos. Quando Genghis Khan resolveu expandir seu império, foi o lapso que o Ocidente teve para se desenvolver. Então, séculos depois, que na história é o bater de uma asa de borboleta, um piscar de olhos, esse mundo “estranho” chega a nossas portas via AliExpress. Se nenhum homem era uma ilha, nenhuma ilha hoje é ilha, sendo rodeada por comércio com outros países por todos os lados. Isso, invariavelmente, sofrerá reflexos culturais. Mesmo que muito dessa interação venha via e-commerce. 

No epicentro disso tudo está a China, cujos números econômicos serão revisados, obviamente, após a epidemia de coronavírus. De toda maneira, a não ser que estejamos testemunhando a maior e mais rápida mudança de eixos da história mundial, o país permanecerá sendo um gigante. Como sabemos, a China é a segunda maior economia do mundo e, segundo internacionalistas, responsável por 35% do crescimento global nos últimos 10 anos. E não é só isso. Ainda segundo dados de estudiosos, o Big Data chinês cresce 30% ao ano. Se não for freada pelo coronavírus, a China segue uma tendência ascendente e está cada vez mais orientada para bens “culturais” (educação, viagens, serviços sofisticados). Existe uma “agenda” e ela vem com integração cultural também.

LEIA TAMBÉM: 2020 será o ano que voltaremos a enxergar a América Latina?

Misturas que vêm de séculos

Quem pensa que indústria cultural nasceu com a massificação trazida pela revolução industrial, ou com invenções que massificaram a mídia, pode se debruçar um pouco mais sobre a história. Dos romanos aos gregos, aos otomanos, aos mongóis e a tantos outros impérios que se expandiram e trouxeram consigo, em suas vitórias em terras distantes, sua arte, cultura, entretenimento e costumes. Não havia conquista sem hibridismo cultural. Tratava-se de uma forma de sobrevivência a longo prazo.

Podemos debater infindamente o que veio primeiro, o ovo ou a galinha, a integração comercial ou a cultural. Existem mudanças geopolíticas tão grandes, ainda que menos forjadas em guerra (como na expansão dos impérios), que a cultura não tem outra opção senão refletir esse movimento tectônico civilizatório.

Grandes mudanças vieram sim com adventos tecnológicos, hegemonias de sistemas econômicos, interação comercial e câmbios na sociedade, da prensa de Gutenberg, aos irmãos Lumiére, com a massificação de uma série de indústrias, inclusive a cultura.

Histórias “sagradas” 

Quando não havia nada, nem a caneta, nem o papel, a tradição oral de transmissão de narrativa fez que odisseias impressionantemente complexas e extensas chegassem ao papel, como foram muitos relatos, por exemplo, o épico Gilgamesh, com mais de 300 poemas por placa, hoje 126 páginas que chegaram da Mesopotâmia cerca de 2.100 anos antes de Cristo. Este é o poder de uma história. Muitos ocidentais conhecem a Odisseia de Ulysses, mas nunca ouviram falar de Gilgamesh, texto mitológico de uma civilização de outrora.

Agora, eu me pergunto, que histórias de terras distantes, com integração comercial e tecnológica teremos o poder de desconhecer? Como ficar à parte das culturas com as quais vamos interagir?

Cena do documentário "Indústria Americana
Cena do documentário Indústria Americana

Indústria Americana

Em uma conversa informal, entre os diretores do documentário (premiado como o melhor do Oscar) e os produtores do documentário “Indústria Americana”, o casal Obama, o ex-presidente afirma, em dado momento, que a história dos trabalhadores é “sagrada”. Tenho certeza de que se referia à importância de dar voz aos milhares de obradores anônimos que levam seu labor todos os dias. Mas não pude parar de pensar em Gilgamesh, estamos vendo uma das maiores transformações no mercado de trabalho desde a revolução industrial. Essa história será algum dia “sagrada”.

A chegada uma mega-fábrica chinesa de vidros automotivos a uma pequena comunidade em Ohio é o tema de Indústria Americana. A interação entre chineses e americanos a “epopeia” contada pelo documentário. Os documentaristas conseguiram, por meio da indústria cultural, encontrar uma maneira de contar como será a próxima odisseia humana. Os diretores foram incrivelmente generosos ao tentar não cair em clichês. Como eles mesmo dizem “ninguém é vilão ou mocinho”. É óbvio que o documentário levanta inquietudes que são de tirar o sono. Para onde irá essa enorme força de trabalho que não se adapta ao novo esquema? Como será a interação Ocidente-Oriente quando essas linhas ficarem difusas? Comunismo e capitalismo levados ao extremo, como num espelho oposto ao outro, com seus méritos, deméritos e seres humanos espremidos em modelos tão distintos. Eles têm que se olhar e esse olhar ainda é míope. Temos, portanto, que lançar mão da indústria cultural para entender a incrível e complexa estrutura mental das civilizações separadas por milhares de quilômetros de distância. 

O grande mérito de Indústria Americana, além de introduzir na produção cultural esse questionamento, é a cercania de algo que já não podemos mais fugir: teremos que entrar na cabeça de civilizações que pensam diferente e adaptar as engrenagens para um onde as migrações ao sistema virtual e aproximação comercial invariavelmente nos levará à interação. 

A super Bola

Não é só a China e seu gigante mercado que vêm mudando a indústria cultural. O Super Bowl nos Estados Unidos tem uma audiência estimada em mais de 115 milhões de pessoas. Um spot de publicidade de 30 segundos na TV americana não sai menos de US$ 5.6 milhões. Para se ter uma ideia da importância da cultura pop nos EUA, dois candidatos, Donald Trump e Michael Bloomberg, pagaram US$ 11 milhões (cada um) para aparecer nos comerciais do jogo. E, embora as primárias comecem agora, as eleições só acontecem em novembro…

A cantora Jennifer Lopez durante apresentação no Super Bowl
A cantora Jennifer Lopez durante apresentação no Super Bowl

No centro desta festa do futebol americano há sempre um esperado espetáculo que, historicamente, era marcado por ícones pops norte-americanos ou ingleses. Para este ano, apesar da guerra de Trump contra a imigração, as minorias (que já não são minorias em inúmeros países) ganharam o palco principal. A colombiana Shakira e suas ancas flamejantes, com danças inspiradas na dança do ventre que nasceram no Oriente Médio, e a nova-iorquina de origem porto-riquenha Jennifer Lopez fizeram a “fiesta latina”, com direito a bandeira de Porto Rico e tudo. Era a hispano-américa no centro de um dos eventos mais esperados do ano, no núcleo de um dos acontecimentos mais assistidos do mundo e desafiando o conceito de “Americana”. Isso mostra que a indústria cultural não só não reconhece um muro, como é parte da revolução comercial que o mundo está vivendo.

Hoje mais da metade da população mundial é usuária da internet (80% com smartphones), uma revolução em rede que se derramará em diversos níveis de nossa civilização. Teremos uma cultura global ou, pelo menos, uma revolução cultural que nos aproximará do Oriente. Podem não ser que impérios que caiam, mas novos impérios estão chegando. 

E pode ser que os latinos deixem de interpretar narcotraficantes em Hollywood. Seremos menos Carmem Miranda, Zé Carioca, Pablo Escobar, chicanos soturnos, para ser o que somos: diversos. Com plataformas como Netflix, Amazon, entre outros, trazendo cada vez mais séries latinas, e com um documentário brasileiro que concorreu ao Oscar, será cada vez mais difícil justificar uma indústria que mitifica arquétipos.  Seremos uma epopeia humana.