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Sociedade

Poker face: Biden deve ter um jogo aberto e outro fechado nas relações internacionais

Em um mundo onde é preciso deixar maniqueísmos de lado, se faz necessário olhar para o que a vitória de Joe Biden significa num contexto mundial

Em relações internacionais, muito do que é invisível aos olhos é mais importante do que as batalhas explicitadas ao público. Algumas cartas estarão abertas na mesa, outras estarão no jogo fechado da Casa Branca.

Estreou recentemente na plataforma Netflix o longa-metragem Mosul. Baseado em fatos reais, o thriller mostra o esforço dos últimos dias da SWAT de Nineveh, formada por iraquianos, para varrer o Estado Islâmico da cidade de Mosul, Iraque. O filme, que vem com todas as boas credenciais de produtores e diretor, é bom. Pequenos momentos da película podem passar despercebidos. É quando certas falas tiram o véu do que é a real política exterior dos Estados Unidos e das Nações Unidas. Acuados, um dos paramilitares sugere pedir a ajuda aos norte-americanos para combater o que sobrou do Estado Islâmico. O capitão da tropa retruca: já superamos este momento.

Esta frase é a síntese do que aconteceu, e segue acontecendo, no Oriente Médio. São batalhas travadas pelos Estados Unidos, desde os 90, que conseguem guilhotinar a cabeça de certos regimes, mas falham miseravelmente em deixar o legado prometido pelo excepcionalismo norte-americano: democracia. Os americanos fazem o trabalho pela metade há anos, se é que, nos bastidores, eles consideram realmente a democratização do país invadido como uma meta. 

Muitos celebraram a vitória de Joe Biden nas eleições presidenciais norte-americanas. Os motivos são claros: Trump tornou-se inviável. A notícia é boa, inclusive os mercados reagiram bem. Mas em um mundo onde é preciso deixar maniqueísmos de lado, agora se faz necessário olhar para o que isso significa num contexto mundial. Joe Biden entrega publicamente o que o mundo quer ouvir: panos quentes nas relações com a China para evitar um conflito mundial e demonstração de preocupação com as mudanças climáticas, tendo a Amazônia na base do conflito.

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Joe Biden e Kamala Harris, Washington DC. Foto: Fotos Públicas

A China e sua economia inquebrantável, seja  por seu tamanho, seja pelo esforço mundial que seria necessário para conter uma Huawei e seu 5G, por exemplo, vai comendo pelas beiradas as doutrinas que, por muito tempo, foram dominantes nos Estados Unidos que, por sua vez, dominou o mundo. É certo que estudos recentes mostram que Republicanos são mais propensos ao excepcionalismo e à Doutrina do Destino Manifesto ampliado a outros continentes, ideias que têm dominado o mundo das relações internacionais, mas os democratas não repudiam de maneira pragmática nenhum desses hábitos.  

Não existe nenhum fator mais aglutinante da sociedade norte-americana do que uma guerra. Presidentes democratas, tanto quanto republicanos, já foram responsáveis por várias guerras. Colocando na balança, historicamente, são políticos mais adeptos a doutrinas de Maquiavel e Henry Kissinger do que a outras teorias que preveem o direito de autodeterminação dos povos. Barack Obama, por exemplo, quis que o mundo acreditasse em drones cirúrgicos, aqueles que tirariam do cenário, com mísseis, apenas alvos pontuais. Mas a realidade mostrou que nada era cirúrgico, como ele pregou. Quando os Estados Unidos viam a necessidade de eliminar um inimigo, e este poderia estar em um casamento com 350 outros convidados no Afeganistão, todos civis, o míssil despencava da mesma forma. 

O assassinato em si de líderes tribais já é questionável por todos os padrões que se dispunha a ONU, mais ainda com a quantidade de civis envolvidos.

Obama também não conseguiu fechar Guantánamo, seja por conta do Congresso, seja por vontade política. Era uma promessa de campanha, mas a história vai dizer qual foi o real esforço para cumpri-la. 

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Biden não é Trump, mas em seus discursos, nas entrelinhas, lê-se claramente que o excepcionalismo americano, aquele que se vê como uma liderança global em assuntos domésticos de outros países, não ficará ausente da agenda.

No horizonte de curto prazo, no entanto, pelo menos até agora, a guerra que Biden propõe é contra o novo coronavírus.  

Biden não é Trump, mas em seus discursos, nas entrelinhas, lê-se claramente que o excepcionalismo americano, aquele que se vê como uma liderança global em assuntos domésticos de outros países, não ficará ausente da agenda. O novo presidente dos EUA não deixou de fora, em quase nenhuma aparição pública e nas redes sociais, o papel que o país espera ter no cenário mundial: liderança. “Vamos colocar de volta à América na cabeça da mesa” e  “O mundo não vai se organizar sozinho” são mantras de Biden. 

A Amazônia, por seu papel no aquecimento global, não pára de sair  da boca de Biden. No entanto, com uma olhada em seu plano de governo, fica claro o despreparo das políticas ambientais submetidas pelo então candidato. É irreal a proposta de que os EUA se tornem uma economia totalmente verde nos próximos anos. Isso já demonstra claramente a dicotomia entre o discurso e o que deve ocorrer nos bastidores e na cozinha da Casa Branca.

É certo que a estratégia não será coercitiva nem disruptiva, como propunha Trump. O último Presidente fez menos do que se acreditava por doutrinas consideradas importantes para os republicanos. Com o negacionismo da pandemia do novo coronavírus e a corda que deu para fake news e teorias da conspiração, acabou-se criando um ambiente doméstico conflitivo e rachado. E não teve problemas ao infringir um dos maiores slogans norte-americanos:  “Together we stand, divided we fall” (Juntos prevalecemos, separados caímos).

Os Estados Unidos se apoiarão no multilateralismo para tentar conservar hegemonia internacional. A escolha de Antony Blinken para a pasta de Secretário de Estado é um indicativo disso. O próprio Blinken já chegou a escrever isso textualmente, deixando claro que o avanço chinês no 5G, por exemplo, é “uma ameaça chinesa” e que pretende usar as Nações Unidas como arma contra o caminho que a Huawei vem cavando na Europa. Tony Blinken é a também a personificação da política do multilateralismo, como ele mesmo definiu em julho, durante uma conferência. “Simplificando: os grandes problemas que enfrentamos como país e como planeta, seja mudança climática, seja uma pandemia, seja a disseminação de armas – só para reafirmar o óbvio, nenhum deles tem soluções unilaterais “. E acrescentou: “Nem um país, nem mesmo poderoso como os Estados Unidos, consegue lidar com esses problemas sozinho”. 

Para a prestigiosa revista Político, nascida da cabeça de grandes jornalistas do Washington Post, Biden tem três pontes a construir, se quiser recuperar a agenda de liderança dos EUA no cenário internacional. Primeiro deve recuperar economicamente um país devastado por uma pandemia e demonstrar ao mundo exterior que os EUA têm instituições sólidas e capazes de assumir um papel de liderança. Adicionalmente, deve consertar todo estrago feito com as políticas anti-imigração de Trump.  Em poucas palavras: deve arrumar a casa. Em segundo lugar, deve reconstruir as pontes queimadas por Trump com organizações multilaterais. Reparar o acordo nuclear com o Irã, o Acordo Climático de Paris, a parceria comercial Transpacífica, fortalecer a Organização Mundial de Saúde (OMS), entre outros acordos no âmbito das Nações Unidas. Finalmente, deve acabar com o bullying. O adulto terá que entrar na sala para colocar panos quentes na relação com o Irã e, principalmente, com a China. 

A ordem dos fatores altera o produto. Antes de desejar roubar qualquer papel hegemônico da China, a casa terá que estar em ordem. Por isso, tempo e paciência serão chave. Biden terá que praticar muito Tai chi chuan nos jardins da Casa Branca. Como na arte marcial, ele precisará meditar em movimento. No entanto, estes movimentos terão que ser suaves e diplomáticos. 

O “Make America Great Again” só sumirá do slogan. Até porque esta será a tarefa de Hércules de Biden. Não será edificando muros na fronteira com o México, nem demonizando organizações multilaterais, nem mesmo incitando diferenças entre americanos. Por isso a insistência de Biden em bordões de união. Ele terá que mostrar um país que seja menos parecido a um episódio do desenho animado Simpsons e mais perto do “American Dream”, o mesmo que Trump transformou em pesadelo sem se dar conta que o “sonho americano” é mais importante no cenário internacional do que aparenta ser.  

Sem que o mundo sonhe com a América, muitos, que não estão confortáveis onde estão, buscarão outros sonhos para sonhar.