Em 2019, 47,7 milhões de pessoas na América Latina e no Caribe viviam com fome, o que equivale a 7,4% da população. A situação vem se agravando nos últimos cinco anos, com um aumento de 13 milhões de pessoas subalimentadas na região, que é, ironicamente, uma das maiores produtoras e exportadoras de alimentos do mundo. A riqueza em terra e água é um dos fatores que levam a FAO, a Organização para Alimentação e Agricultura da ONU, a projetar que a região será responsável por 25% das exportações mundiais de produtos agrícolas até 2028.
Mesmo com essas projeções positivas do ponto de vista econômico e de produção, a desigualdade acaba sendo um entrave para um crescimento agrícola sustentável e inclusivo, que ajudaria a melhorar a situação de segurança alimentar no continente. Se essa tendência se manter, a FAO estima que, em 2030, a fome afetará 67 milhões na América Latina, segundo o relatório Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional.
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Em 2019, além do número de pessoas com fome, outras 191 milhões (um em cada três latino-americanos) estiveram em situação de insegurança alimentar moderada ou grave. São pessoas que não tiveram acesso a alimentos suficientes e nutritivos naquele ano.
E essa cifra ainda não contempla as repercussões da pandemia de COVID-19, outro fator apontado em relatórios da agência como um agravante. A Oxfam, organização internacional que atua na busca de soluções de problemas da pobreza, alertou em informe divulgado no final de 2020 que mais de 120 milhões de pessoas no mundo seriam colocadas em uma situação de fome, em uma consequência direta do contexto econômico e social gerado pela doença. Entre os 10 países citados pela organização com maior índice de fome está o Brasil, apontado como um dos epicentros do problema em 2021, ao lado da Índia e África do Sul.
No caso brasileiro, o auxílio emergencial pago para desempregados, microemprendedores e trabalhadores informais, incluindo mães chefes de família, no valor de R$ 600 (e depois diminuído pela metade nos últimos meses de 2020 , e com saques residuais em janeiro de 2021) foi um fator primordial para que o problema não fosse agravado ainda mais.
Proposto pelo Congresso Nacional no início da pandemia, o programa virou alvo disputa política após o presidente Jair Bolsonaro, que relutou em conceder um auxílio financeiro na época, ver a popularidade crescer e encampar o programa como seu. O mesmo presidente que, em 2019, declarou em entrevista à imprensa internacional que “falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não”.
“Quando o presidente fala que não tem fome no Brasil, ele traz o que ele entende por fome: ele se refere provavelmente aos corpos esqueléticos, da imagem estereotipada da fome em crise intensa. Hoje temos menos isso no Brasil, mas hoje a gente tem, como tivemos em toda a nossa história, a fome estrutural, oculta, que se mantém no curso regular e é fruto da desigualdade social. E que permite que acessos muito distintos à comida”, define a historiadora, mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora de hábitos alimentares, Adriana Salay.
Apesar de o desperdício de alimentos ser um problema crônico no mundo todo – o Programa Mundial de Alimentos (PMA) estima que o não aproveitamento gera perdas de US$ 1 trilhão para a economia mundial –, não é a logística a principal responsável pela fome, frisa a pesquisadora, e sim a desigualdade social.
“No Brasil, há perdas quando priorizamos transportar comida em estradas e caminhões, e não em trens. Isso traz consequências. Também necessitamos olhar para o desperdício na ponta e tratar principalmente na esfera da educação. Mas a gente produz comida para alimentar 1 bilhão de pessoas. Nós temos alimentos. O que não temos é acesso igualitário. Uma camada desperdiça muito pois tem acesso. Outra é privada disso”, avalia Salay.
Alta dos preços é um ingrediente a mais no problema crônico da fome
Durante o ano de 2020, vários países na América Latina enfrentaram problemas de distribuição e de alta nos preços dos alimentos. Na Argentina, nos primeiros meses de pandemia faltaram vários alimentos nos supermercados, como iogurte natural e determinados tipos de açúcar. No Brasil, a principal combinação no prato da população, o arroz e o feijão, passou por uma alta de 20% e 32% respectivamente, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A inflação acumulada dos alimentos no Brasil alcançou 16%, segundo a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). É a maior alta desde a implementação do Plano Real no começo dos anos 1990, após um período crítico com o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello e de anos de hiperinflação no fim da década de 1980 e sucessivas mudanças de moeda e planos econômicos.
O descontrole nas exportações em meados de 2020 é apontado como um dos motivos da alta, fora o crescimento da demanda: com mais tempo em casa, as pessoas compraram mais no supermercado, sobretudo alimentos básicos. “Precisamos preservar quem está numa situação de vulnerabilidade econômica com algum controle do estado”, sugere Adriana.
Para ela, também falta incentivo à agricultura familiar, que é quem, de fato, produz para a população. É necessário ainda, diz a pesquisadora, de uma análise de contexto social que busque soluções para permitir que as famílias cozinhem mais em casa. É possível que uma pessoa se encontre em situação de fome e, simultaneamente, esteja com sobrepeso, salienta Salay, em razão da falta de alimentos frescos na dieta, mas com uma maior quantidade de ultraprocessados e industrializados, que acabam sendo a opção mais rápida.
“O que vemos no Brasil é que famílias em vulnerabilidade já são desfavorecidas para cozinhar em casa. A mulher é quem na maioria das vezes faz essa gestão do lar, (mas também) trabalha, pega transporte público. E aí você vai dizer para ela cozinhar mais alimentos in natura?” ressalta a pesquisadora.