A situação da família de Roseli Aparecida Barbosa Duarte ilustra a vulnerabilidade social na qual se encontram milhões de pessoas na América Latina. Moradora da Ilha do Mel, região turística no Sul do Brasil, ela é funcionária em uma pousada. A ilha tem pouco mais de 1 mil habitantes e é totalmente dependente do turismo, setor mundialmente impactado pela pandemia da Covid-19, que ainda assola o mundo e já matou mais de 200 mil pessoas no continente. Roseli conseguiu manter o emprego; o marido dela, porém, foi demitido, assim como o filho. Nenhum dos dois tinha tempo suficiente de serviço para requerer o seguro-desemprego.
Veio então o que a família acreditava ser a solução: o Auxílio Emergencial de R$ 600 concedido pelo governo federal durante a pandemia de coronavírus. Da família, apenas o marido de Roseli conseguiu o benefício, e só uma das três parcelas. O filho espera até hoje: dependeu da ajuda de amigos, que doaram cestas básicas, para sobreviver.
Não é de hoje que se alerta que a América Latina é a região mais desigual do planeta – a ponderação foi feita em diversas oportunidades pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), que vem ressaltando a importância dos programas de renda básica de emergência na região. Situações como a da família Duarte são comuns não só em momentos extremos como o causado pelo coronavírus: o limiar entre conforto e pobreza é tênue. A estimativa é que a crise provocada pela pandemia deixe até 83 milhões de pessoas na extrema pobreza até o fim de 2020, causando um aumento nos níveis de fome.
O cenário de redução do PIB, emprego, consumo e alertas sobre um colapso social iminente impulsionou países como o Brasil, Argentina, Peru e Chile a anunciarem medidas emergenciais de transferência de renda. No Chile, por exemplo, um fundo de US$ 2 bilhões foi criado para distribuir recursos e gerar empregos em setores de baixa renda. Na Argentina, uma parcela única de 10 mil pesos atendeu desempregados e informais. No Peru, o governo forneceu um subsídio de US$ 224 para famílias em pobreza ou extrema pobreza nas áreas rurais.
No Brasil, tão logo o isolamento social foi implementado pelos estados e municípios como uma das medidas de enfrentamento ao coronavírus e de ganho de tempo para um maior preparo do Sistema Único de Saúde (SUS), viu-se a necessidade de socorrer pessoas vulneráveis. Um dos principais problemas do país hoje é a informalidade no mercado de trabalho, que ultrapassa 40% da população ocupada e supera 50% em alguns estados, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Após desentendimentos entre governo federal e Congresso Nacional, foi formatado um socorro financeiro de R$ 600 por três meses, conhecido popularmente como “coronavoucher”. Inicialmente, a proposta do governo Jair Bolsonaro havia sido de R$ 200; o Congresso propôs R$ 500 e chegou-se ao valor pago hoje. O programa, que causou um impacto positivo na popularidade do presidente será prorrogado até o fim de 2020, com valor de R$ 300.

Mesmo que o país tenha implementado, em 2003, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, um dos maiores programas de transferência de renda do mundo, o Bolsa Família, é a primeira vez em 30 anos que houve uma redução tão forte da pobreza no Brasil, constata o pesquisador da área de Economia Aplicada do FGV IBRE, Daniel Duque, que compatibilizou dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD Contínua) com a PNAD Covid para chegar ao resultado.
O valor de R$ 600 e a abrangência são dois motivos citados por Duque: o auxílio atendeu informais, microempreendedores individuais autônomos e desempregados com renda familiar mensal menor do que R$ 3.000. Em famílias dirigidas por mães, o benefício chegou a R$ 1.200. “A linha de elegibilidade é bem alta, e o programa ficou progressivo, com famílias mais pobres ganhando mais” diz Duque. Em sua análise de dados, o pesquisador aponta que, em 2019, a pobreza extrema atingia 8% da população do Brasil. Em junho de 2020, o porcentual chegou a 3,3%.

Ainda que meritório, o programa emergencial brasileiro foi “mal calibrado” acredita a economista e consultora econômica Zeina Latif. “Vimos problemas operacionais, desde a concentração na Caixa Econômica [um dos bancos públicos do Brasil] até problema de cadastro e recebimento indevido por militares e funcionários públicos.”

É nítido que houve excesso e teve um problema de falta de focalização.
Zeina Latif, economista e consultora econômica
A importância de programas permanentes
Os impactos positivos dos auxílios, mesmo que temporários, deixaram ainda mais visível a importância de pensar ações de renda mínima permanentes mais abrangentes na América Latina, mesmo que países como o México, por exemplo, já tenham ações como o Oportunidades, com pagamentos em dinheiro para famílias mediante a contrapartidas como frequência escolar; mesmo critério adotado pelo Bolsa Família brasileiro.
A América Latina toda é muito marcada pela informalidade e alta desigualdade. É uma região onde seria muito bem-vinda uma renda básica, com uma linha de elegibilidade mais alta.
Daniel Duque, pesquisador da área de Economia Aplicada do FGV IBRE
Isso se dá principalmente pela precariedade do mercado de trabalho, marcado por informalidade e menos demanda por serviços, gerando mais instabilidade no rendimento das famílias, acredita Duque. “Dessa forma as pessoas podem ficar entrando e saindo da pobreza”.
Trabalho do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) simulou cenários em que a renda básica fosse estendida no Brasil até o fim de 2020 e concluiu que a medida pode mitigar os efeitos negativos de crescimento pela metade; a estimativa do Banco Central é que a retração do PIB chegue a -5% no país. O principal motivo é o impacto positivo no consumo das famílias que recebem o auxílio. “Excluindo automóveis e construção, o comércio varejista tem mostrado recuperação rápida. Quando damos mais dinheiro para quem tem menos, a reversão do consumo é direta” frisa Daniel Duque.
Cuidado com gastos públicos precisa permanecer
O principal motivo que impede programas de renda básica emergencial mais robustos na América Latina são os elevados gastos públicos. Tanto Daniel Duque quanto Zeina Latif concordam que não há possibilidade de manter o auxílio emergencial no Brasil por muito tempo.
Dessa forma você abre precedente atrás de precedente, porque as demandas de gastos públicos são explosivas. Se o auxílio emergencial for só mais um programa terá consequências. Não se pode colocar no automático.
Zeina Latif, economista e consultora econômica
Zeina Latif salienta, ainda, que a geração de emprego é a medida mais eficiente na redução da pobreza e desigualdade. O pesquisador do IBRE FGV acredita que é necessário iniciar um debate para criar uma renda básica ampla para longo prazo no Brasil e em países latinos, reduzindo outros gastos públicos e tornando os programas de transferência de renda uma prioridade.