Jornalista e correspondente Sylvia Colombo
Jornalista e correspondente da Folha de S.Paulo na América Latina, Sylvia Colombo. Foto: Rocco/Divulgação
Sociedade

Sylvia Colombo: "O que me incomoda nessa coisa de 'América Latina' é que ela leva a uma simplificação. É preciso ir até os lugares e escutar as pessoas"

Em seu novo livro, O Ano da Cólera, que será lançado nesta quinta-feira pela editora Rocco, a correspondente da Folha de S.Paulo se debruça sobre o que aconteceu na região desde os protestos de 2019. Sylvia falou com o LABS sobre isso, e muito mais

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Quase todos os dias, por volta das 5 horas da manhã, a correspondente da América Latina para Folha de S.Paulo há mais de cinco anos Sylvia Colombo sai de casa para nadar ou correr. Depois que ela já nadou ou correu – e eu estou, obviamente, ainda acordando –, acompanho as postagens dela nas redes sociais. Algumas vezes, ela aparece correndo em Buenos Aires (Argentina), em outras em Caracas (Venezuela), Santiago (Chile), Lima (Peru) ou qualquer outro lugar onde ela se materialize. É comum também ver fotos dela submersa em piscinas de todos esses lugares.

Essa quase onipresença da Sylva na região me faz lembrar dos rios da América do Sul – os maiores e mais importantes são aqueles que não reconhecem fronteiras. O Rio Juruá, por exemplo, nasce no Peru mas deságua no Solimões, no Brasil. Já o Japurá-Caquetá traz no nome as denominações que ganha nos dois países por onde passa, Brasil e Colômbia. No fim, são todos latino-americanos, como as histórias da Sylvia, que reconhece as diferenças de cada afluente mas entende que, de certa maneira, este continente é um leito só.

Sylvia em uma das aparições submersas do Instagram. Nesta foto, ela estava “testando” uma roupa como a usada pelo nadador Michael Phelps. Foto: Eduardo Knapp

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“A Sylvia já está lá”

Conheci a Sylvia Colombo em 2012, quando vivia como correspondente freelancer e do Clarín em Português em Buenos Aires, mas “cruzei” com ela em mais de uma ocasião. Em 2016, a Folha de S. Paulo deixaria de ter correspondentes temporários na capital argentina. Então quando a Sylvia chegou para exercer esse papel havia um zunzunzum sobre se ela vinha para ficar. Ela ficou, e foi bom para todos nós, correspondentes. 

Toda a vez que éramos acordados por notícias que aconteciam nos países vizinhos, procurávamos uns aos outros. Sabíamos da vontade das redações de ir cobrir no local, mas também das limitações financeiras. Quase nunca conseguíamos sair de Buenos Aires, e acabávamos recorrendo ao telefone.  Lá pelas tantas, alguém comentava: “a Sylvia já está lá”. Hoje, sei que essa era uma luta da Sylvia, com seus sacrifícios pessoais e profissionais, de estar onde acontecia a notícia.

Enquanto nos desdobrávamos com as fontes que tínhamos à mão, de repente, aparecia a Sylvia no Instagram entrevistando, por exemplo, o Guaidó (Juan Guaidó, deputado que, em 2019, se autoproclamou presidente da Venezuela em oposição a Nicolas Maduro). Essa é a Sylvia Colombo da América … 

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Dissolvendo distopias – e entendendo o novo livro da Sylvia Colombo

Entrevistei a Sylvia em um domingo desses, ao meio-dia, depois que ela já tinha saído para nadar. O tema principal: seu novo livro, O Ano da Cólera, no qual ela se debruça sobre o que aconteceu antes e durante a pandemia de COVID-19 em cinco países latino-americanos, mas não só isso.

Capa do novo livro da Sylvia Colombo. Imagem: Rocco.

Conversamos sobre como o Brasil, muitas vezes, volta-se apenas para si mesmo e para o Norte (do mundo), dando pouca atenção à vizinhança. E sobre como é preciso quebrar essa paradigma, valorizando a latinidade da inteligência local. Historiadora, com décadas de experiência, ela busca essa mudança de olhar. É o que Sylvia chama de uma espécie de “militância apolítica” no jornalismo. E o recorte que ela faz (2019 -2020) no livro traz a história recente de um continente em plena transformação. Trata-se de uma fotografia de uma borboleta saindo do casulo, coisa que acontece apenas a cada tanto na região.

Conversamos também sobre os perigosos clichês que se criam diante da falta de informação sobre a América Latina, como o de que é um bloco homogêneo, com um destino comum, coisas do tipo “tal país vai se transformar em tal país”. Sylvia vê alguns países em períodos históricos diferentes de outros, contradizendo o pensamento comum de que estamos atados ao subdesenvolvimento como continente.

Confira os principais trechos da entrevista:

LABS – Muitos jornalistas com sua experiência terminam como correspondentes. Os postos mais almejados ficam na Europa ou Estados Unidos. Você escolheu a América Latina…

Sylvia Colombo – Eu tenho essa relação com a América Latina muito antes de trabalhar com o jornalismo. Eu estudei História na USP. No segundo ano, me apaixonei pelo assunto. […} Só que primeiro, quando entrei para o jornalismo, comecei pelo jornalismo cultural. Segundo porque, naquele momento, deixava-se muito mais a América Latina de fora do que hoje. Mas quando entrei no jornal, eu gostava muito de cultura e literatura, fui traçando os passos dentro da redação por aí. Depois, fui ser correspondente em Londres. Quando estava lá, acompanhei todo o processo e polêmica que envolvia a extradição do general chileno Augusto Pinochet. Ou seja, a América Latina estava sempre presente […]. Fui por muitos anos editora da Folha Ilustrada, e, apesar de ser muito gratificante, eu estava cansada. Foi quando eu pensei: “eu cheguei até aqui, agora quero fazer o que eu gosto”. Foi quando surgiu a possibilidade de ser correspondente em Buenos Aires.

Passei um tempo [lá]. Ganhei uma bolsa para estudar em Michigan (EUA), mas já fui para pensar América Latina e, quando voltei para São Paulo, voltei também a fazer as coberturas internacionais na região com mais intensidade. Cobri por três meses o processo de paz na Colômbia, de Bogotá. Foi quando eu levantei a questão no jornal que queria voltar para Buenos Aires com os pés no chão.

Você conta no livro que seu lado historiadora quer ver “fenômenos comuns” na região, mas seu lado jornalista os separa por país. Parece que, nessa batalha, ganhou a jornalista. O livro se divide em cinco países. Afinal, o que é comum na região?

Historiadores, antropólogos, etc, precisam fazer uma generalização para estudar. Fazer algum recorte, e foi isso o que eu quis dizer. O que me incomoda nessa coisa da América Latina é que ela leva a uma simplificação e, em alguns casos, a uma análise superficial. É muito comum escutar “porque a América Latina é assim ou assado, porque não funciona”, como se ela fosse uma entidade. E, às vezes, as pessoas usam esse termo para falar de uma coisa negativa. Nunca usamos, por exemplo, a Europa, para falar de uma coisa que acontece pontualmente nos países. Então dizem “a América Latina é uma bagunça” e eu me pergunto “a Europa é toda organizada?”.

Apesar dos diferentes contextos, da França à Espanha, você nunca escuta a “Europa está uma bagunça”. É sempre essa coisa de falar da América Latina como um lugar que não deu certo. Um lugar onde a democracia é imperfeita, um lugar imperfeito do ponto de vista de maturidade política. E, é por isso que, nesse ponto, é preciso ir até os lugares e escutar as pessoas de lá. Eu faço a defesa de uma mirada mista. Obviamente, o olhar do historiador está em tudo e está também por trás do meu modo de pensar. Mas no mundo acadêmico se trabalha muito com generalizações que podem levar às análises profundas, mas [também] podem levar a simplificações como, por exemplo, “a América Latina não tem jeito”.

Mas dentro do jornalismo e no mundo, de maneira geral existe uma olhada maniqueísta que oscila sempre entre o “bom e o ruim”, sem meios termos …

Eu consigo ver essas ondas. É possível fazer essa generalização? Por exemplo, Alberto Fernández na Argentina é um presidente de esquerda? Isso pode ser considerado uma onda? Ou que a volta do Luis Arce na Bolívia é uma onda em toda a região? E onde enfiamos o presidente eleito no Equador Guilhermo Lasso? E o Peru? Entre a eleição de um desconhecido e a Keiko Fujimori?

Essa coisa das ondas ajuda só até certo ponto na compreensão da América Latina, depois só atrapalha. Por isso faço um chamado para que as pessoas olhem individualmente para cada país.

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O primeiro caso do livro é o Chile e os protestos que desembocaram em muita violência. Você diz que a ditadura era uma “chaga aberta”. Você vê progressos na cauterização dessa ferida? O Chile é, afinal de contas, um lugar ainda muito conservador…

De todas as ebulições do livro, o Chile é o país que até agora vem resolvendo isso de forma mais democrática e da maneira mais desejável. Como fazer com que um presidente de centro-direita que era contra a formação de uma nova Constituição cedesse às pressões das ruas? Ele chamou o plebiscito, organizou o plebiscito, votou e estimulou as pessoas a votarem. E, agora, apesar de adiamentos por conta da pandemia, será feita a eleição da Assembleia Constituinte. Eu vejo aí um processo de amadurecimento, embora você possa fazer muitas críticas ao presidente Sebastián Piñera como, por exemplo, o modo violento como ele inicialmente reprimiu as manifestações. Mas acho que ele e a sociedade chegaram a um acordo. Em linhas gerais, ao meu ver, o Chile é um país que está buscando um caminho acertado. Não sabemos ainda que Constituição sairá, mas a busca é legítima.

A Venezuela é um dos capítulos que talvez mais tenham ressonância no Brasil. Você mesma fala do bordão “virar uma Venezuela”, como um alerta ao fracasso, e acaba concluindo que é um argumento falacioso. Por que a Venezuela não serve de comparação com o Brasil?

Essa teoria de que um país vai ficar igual a outro país sempre me pareceu meio surreal. Temos visto agora no Brasil essa ideia dos apoiadores do presidente [Jair] Bolsonaro de que o Brasil vai virar uma Argentina. Antes era Cuba. Os países não se transformam em outros países. O que a Argentina vai virar é uma Argentina do futuro, talvez com crise econômica mais acentuada ou com uma fricção política mais visceral, mas não vai ser a Venezuela, vai ser a Argentina.

Eu não gosto dessa expressão de que um país vai virar o outro porque você está implicitamente dizendo que o outro é uma porcaria. […] O que é virar uma Venezuela? Parece que a Venezuela é e sempre foi o horror dos horrores. Assim você está rejeitando a história da Venezuela, seus escritores, os libertadores da Venezuela e principalmente o significado que a Venezuela histórica tem para a América Latina. O legado cultural, as conquistas, o petróleo, etc. Como foi com Cuba, com isso você ignora tudo, o legado cubano, sua história, o que foi Cuba para América Latina, a música, o cinema, etc. “

“Virar” um país é racista e preconceituoso com o país.

Além do mais, você atropela vários processos históricos. Por exemplo, a Venezuela nunca foi uma grande produtora de alimentos, portanto, está mais vulnerável à escassez de alimentos. É mais fácil você ver a fome na Venezuela que, por exemplo, na Argentina, que é eminentemente um produtor de alimentos. Isso já é uma singularidade para demonstrar que a Argentina não vai virar uma Venezuela, por exemplo. São realidades diferentes.

Quando você não está na estrada, ou em São Paulo, passa a maior parte do tempo em Buenos Aires. Recentemente, acompanhamos a tensão entre os dois governos (Brasil e Argentina) que são parceiros comerciais importantes e históricos. E tem um fenômeno novo: o ataque à Argentina como espécie de “nova Venezuela”. Na sua visão, a que se devem esses ataques à Argentina? Porque criar uma nova narrativa onde a Argentina é o fracasso do continente?

A briga entre Bolsonaro e Fernández é uma briga retórica, onde eles buscam sair bem com seus eleitorados internos. Do ponto de vista do comércio bilateral, a relação está inclusive melhorando. Existem, portanto, duas relações: uma das retóricas entre os presidentes e outra que é a realidade do comércio, da indústria que, bem ou mal, está tendo uma retomada ainda que com os efeitos adversos da pandemia. E joga com uma coisa histórica da rivalidade cultural e do futebol. Eu acho que esse novo discurso novo do bolsonarismo pega carona nessa realidade cultural e associa isso à questão política.

Outro país que você analisa é o Uruguai. Entre os progressistas, o país tem fama de um país moderado, com uma tendência mais humanista, uma espécie de utopia. Você traz também o fato de ser um país historicamente laico. O Mujica acabou virando uma espécie de símbolo da esquerda, mas hoje o presidente não é da linha Tabaré Vásquez ou Mujica, no entanto, também não é exatamente um conservador. Afinal, o Uruguai é ou não um bom exemplo de vizinho e de equilíbrio?

O Uruguai tem uma formação política diferente, e isso se reflete nessa espécie de abundância institucional. Eu presenciei esses dois anos de distúrbios no Chile, Bolívia e Equador, e quando cheguei no Uruguai para cobrir a eleição presidencial era uma calma incrível. Foi um contraste muito grande. O próprio Tabaré Vásquez trouxe La Calle Pou para a posse do Fernández na Argentina. Mesmo estando de lados supostamente opostos. Foi emocionante ver La Calle Pou amparando o Tabaré, já velhinho, até o abraço do Fernández. A transição tranquila é um símbolo de institucionalidade que dá esperança de uma melhor convivência em sociedade. Eu penso que é um país que caminha para uma construção ainda mais igualitária.

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No prólogo do livro você faz algumas atualizações, mas também toca em algumas questões gerais. No tocante à democracia, você levanta a questão dos governos tirânicos. Hoje, com sua experiência, você está mais para Steven Levitsky, que acredita que o Latino quer votar fortalecendo os sistemas democráticos, ou vê retrocessos autoritários como uma ameaça real no continente?

Estou com o Levitsky. Primeiro, porque os países latino-americanos lutaram por sua independência, ou seja, foi algo batalhado. Todos os países se tornaram Repúblicas. Houve, respeitando as diferenças nos processos, uma escolha. Está certo que no Brasil a República veio com um golpe militar, mas não se quis mudar de sistema até hoje, apesar da experiência nefasta entre 1964 e 1985. Existem alguns que pedem ditadura, mas isso não é um consenso. É uma minoria.

Nunca tiveram consensos pró-ditadura nos países da região. As ditaduras foram tragédias vividas por esses países. São traumas históricos. Eu concordo com o Levitsky quando ele diz que o pensamento para o futuro é otimista. Não podemos cair naquele lugar comum de que a América Latina é um fracasso.

O ANO DA CÓLERA – Sylvia Colombo
Subtítulo: Protestos, tensão e pandemia em 5 países da América Latina. Preço sugerido: R$ 54,90. Lançamento e bate-papo virtual com a autora acontece na quinta (29) às 15h, com transmissão pelo Instagram da editora Rocco.

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