Milhares protestam contra adiamento das eleições
El Alto, Bolívia, 28 de julho de 2020. Milhares protestam contra adiamento das eleições. Foto: Radoslaw Czajkowski/Shutterstock.com
Sociedade

Um mini-guia para entender os mega-imbróglios políticos da Bolívia

A ex-presidente interina do país, Jeanine Añez, está presa acusada de conspirar contra Evo Morales nas eleições de 2019. Mas para entender a situação atual, é preciso saber um pouco mais sobre a história do país… e que história

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Em 1944, o correspondente internacional John Gunther exclamou estupefato: “a Bolívia não é um país…é um problema!”. Dois anos depois, os bolivianos protagonizaram o único linchamento do século 20 de um presidente sul-americano. O alvo da fúria de uma multidão foi o então presidente/ditador Gualberto Villarroel, um filo-fascista. A turba entrou no palácio de governo, subiu até o primeiro andar e foi direto ao escritório presidencial. Quando as pessoas entraram, não viram Villarroel. Uma pessoa desconfiada abriu a porta de um armário. Ali estava o presidente. A multidão o espancou. Na sequência defenestraram Villarroel (ipsis literis, isto é, o jogaram pela janela). Minutos depois, o penduraram em um poste na calçada da frente do Palácio Quemado, a sede do governo. Villarroel entrou para a história com o apelido de El colgado (O Pendurado).

Recorte de um jornal da época em que Villarroel foi derrubado e linchado pela população.

Esse é apenas o preâmbulo de uma história de instabilidade política e polêmicas que, há duas semanas, terminou com a prisão da ex-presidente interina, Jeanine Áñez. Quer entender como a Bolívia chegou até aqui?

Instabilidade crônica: Bolívia detém o recorde regional de golpes de Estado

A proclamação da independência da Bolívia foi em 1825. De lá para cá, o país ostenta o recorde regional de golpes de Estado, com um total de 193 tentativas (incluindo os golpes feitos com sucesso e os fracassados) de derrubar a ordem constitucional pelas armas. De quebra, o país teve 89 governos, dos quais 32 foram ditadores. Entre civis e generais, isso dá uma média de 1 presidente a cada 2 anos. 

Outro símbolo da instabilidade política da Bolívia é o próprio palácio presidencial, o Palacio Quemado (Palácio Queimado), já que no século 19 foi incinerado duas vezes por pessoas enraivecidas com os presidentes de plantão. 

A Constituição do país tampouco escapou da instabilidade histórica: desde a sua independência, a Bolívia teve 16 Cartas Magnas. E foram feitas cinco reformas adicionais para adequar as constituições aos chiliques dos presidentes de plantão. Al[ém disso, vários presidentes, em vez de reformar as constituições recorreram à via judiciária para passar por cima das cartas magnas.

Um dos protagonistas das “dribladas” judiciárias nas constituições de plantão foi o ex-presidente Evo Morales. Ele era um líder sindical da área rural que cresceu politicamente nos anos 1990, comandando as reivindicações sociais de áreas paupérrimas e tradicionalmente discriminadas na Bolívia.

Em 2003, liderando revoltas sociais intensas, Morales derrubou o presidente Gonzalo Sánchez de Losada. Em 2005, como líder do partido Movimento Ao Socialismo (MAS), que na época era a segunda maior força política no Parlamento, exigiu a renúncia do presidente Carlos Mesa. Morales organizou bloqueios nas estradas e intensas marchas de protesto. Mesa renunciou. Na época, diversos setores acusaram Morales de ter realizado “golpes” contra Sánchez de Losada e contra Mesa. Meses depois foram realizadas eleições e Morales foi eleito. Tomou posse em janeiro de 2006.

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Um presidente de “dois países diferentes”

Em 2009, após uma assembleia constituinte, Morales promulgou uma nova Constituição, que permitia dois mandatos consecutivos e trocava o nome de do país de “República de Bolívia” para “Estado Plurinacional da Bolívia”. Morales foi reeleito e assumiu seu segundo mandato – que, segundo a Constituição que ele próprio propôs, teria de ser seu último período de governo.

Em 2014, no entanto, Morales argumentou que seu primeiro mandato havia se passado na finiquitada “República da Bolívia” e que naquele momento ele estava em seu primeiro mandato como presidente do “Estado Plurinacional da Bolívia”. Isto é, uma espécie de “novo país”. Alegava, portanto, que podia tranquilamente disputar seu “segundo mandato” (na prática, terceiro).

Os juízes do Supremo, obedientes a Morales, concordaram. Morales foi reeleito e tomou posse de seu terceiro mandato em janeiro de 2015, dizendo: “quando termine este mandato, me aposento”. Meses depois, convocou um plebiscito para reformar a Constituição (de novo) e permitir mais reeleições, mas foi derrotado nas urnas. 

Os bolivianos, de forma geral, estavam contentes com a redução da pobreza durante o governo Morales e com o crescimento econômico persistente (desde 2006 até 2018 o PIB teve um crescimento médio de mais de 4%, com um pico de 6,8% em 2013). Além disso, vastos setores indígenas saíram da pobreza e tornaram-se classe média e junto com isso houve uma valorização das culturas originárias.

Mas os bolivianos queriam uma renovação das lideranças políticas. Havia um cansaço com a figura de Morales (não necessariamente de seu partido), com sua tendência ao autoritarismo e com a crescente corrupção de seus aliados.

Apesar de sua reforma constitucional ter sido derrubada nas urnas, Morales insistiu na Justiça, afirmando que a Carta Magna “violava” seus “direitos políticos” já que impedia sua reeleição. O detalhe peculiar é que essa Constituição que “violava os direitos humanos” era a Carta Magna que ele próprio havia criado.

Mais uma vez o Supremo acatou um insólito argumento de Morales, criando  uma nova “ponte safena” jurídica para que ele fosse novamente candidato à reeleição em 2019.

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A queda de Morales

O primeiro turno das eleições foi no dia 20 de outubro. O 2º turno, se tivesse ocorrido, teria sido no dia 15 de dezembro. No meio disso, ocorreu outro capítulo da crise boliviana. O resultado do primeiro turno demorou vários dias para sair, aumentando a tensão política no país. Quando os dados foram publicados, Morales aparecia como reeleito por uma pequena margem de votos.

Aqui é preciso explicar um detalhe peculiar: na maior parte do planeta, vence o primeiro turno das eleições presidenciais quem tiver 50% mais um dos votos. No entanto, copiando o sistema argentino criado pelo ex-presidente Carlos Menem em 1994, na Bolívia também é possível vencer o primeiro turno quando o primeiro colocado atinge  40% dos votos e o segundo colocado fica 10 pontos percentuais abaixo. Morales venceria no 1º turno com 47,08%, já que o segundo colocado, Carlos Mesa, havia conseguido 36,51% dos votos – isto é, Mesa ficava 10,57% abaixo. 

A demora na contagem dos votos, um misterioso apagão informático, além da celebração de Morales antes do fim da apuração desataram a desconfiança sobre os votos. Na sequência, manifestações (várias das quais violentas) contra o governo eclodiram em todo o país. A Organização dos Estados Americanos (OEA) propôs a realização de uma auditoria dos votos. Morales e a oposição concordaram.

Os protestos continuavam. Mas, no dia 8 de novembro, a Polícia anunciou que não reprimiria mais e que ficaria dentro dos quartéis. No início da manhã do dia 10 de novembro, a OEA emitiu um relatório indicando irregularidades na apuração. Na sequência, Morales anunciou que convocaria novas eleições. Neste momento, no entanto, a histórica Central Operária Boliviana (COB), de esquerda, “sugeriu” (esse foi o verbo utilizado), que Morales renunciasse. 

Poucas horas depois, a cúpula da Igreja Católica também “sugeriu” a renúncia. Horas mais tarde, foi a vez da cúpula do Exército, comandada pelo general Williams Kaliman, que era aliado de Morales, mas que, seguindo a COB e a Igreja, também “sugeriu” a renúncia de Morales. 

O presidente renunciou, formalizou isso com uma carta ao Parlamento e no dia seguinte partiu do país. Seus militantes ficaram abandonados. Morales não havia tentado resistir às pressões, sequer organizar um governo no exílio.

De Bíblia na mão: a posse irregular de Áñez

Foi então que a Bolívia deparou-se com uma situação já vista antes, a de estar sem presidente da República devido à confusão política que imperava. O país já havia estado em períodos “presidentless”, de 5 dias  a 23 dias (a pior fase de todas, no século 19). Dessa vez, foram três dias sem chefe de Estado. 

O vice-presidente de Morales, Alvaro García Linera, havia renunciado e também partido para o exílio com seu ex-chefe. Na sequência, renunciaram a presidente do Senado, o presidente da Câmara de Deputados e, posteriormente, até mesmo o primeiro-vice-presidente do Senado também renunciou. 

A figura seguinte, na ordem de sucessão, era a ignota segunda-vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez, que havia ido parar nesse cargo simplesmente porque seu partido era minoritário. Ao contrário dos outros parlamentares da linha sucessória que haviam renunciado, ela declarou que aceitava a presidência. 

Mas sua posse precisava ser aprovada pelo Parlamento. Antes disso ainda, precisava ser realizada uma sessão para aprovar formalmente as renúncias de Evo Morales e seu vice. Na sequência, uma outra sessão deveria definir o novo presidente do país, para completar o mandato de Morales. Mas não houve quórum para tratar as renúncias, já que boa parte dos parlamentares de Morales, que são maioria, não apareceram devido à dificuldade em passar pelo caos nas ruas da capital. Sem eles, a posse da nova presidente não poderia ser aprovada. 

Áñez, após resmungar reclamando da falta de quórum, passou por cima da Constituição e fazendo uma interpretação própria do regulamento do Senado, declarou que a renúncia de Morales não precisava de aprovação e que ela era automaticamente presidente do Senado. Desta forma, ela se autodesignou presidente da República, sem ter sido votada pelo Parlamento. Na sequência, carregando uma enorme bíblia, foi à porta do Palácio Quemado, para discursar para uma praça quase vazia. 

Horas depois, Áñez teve o aval do Tribunal Supremo de Justiça (o mesmo Supremo que havia ficado desprestigiado por autorizar Morales a ignorar a Carta Magna meses antes e disputar uma nova reeleição).

No dia 24 de novembro, o Parlamento aprovou a anulação total das eleições de outubro de 2019. Essa aprovação foi conseguida graças aos votos do MAS, o partido de Morales. Ao longo de todo o mandato de Áñez, o MAS continuou participando do Parlamento (e continuou sendo maioria). Nos primeiros tempos de Áñez no poder, a Justiça ordenou a detenção de Evo Morales por “terrorismo”. No entanto, ele estava no exílio (primeiro no México e depois na Argentina) e portanto, não podia ser detido. Além disso, a própria Justiça boliviana não havia encaminhado o clássico pedido de detenção à Interpol, sequer solicitado a extradição de Morales ao governo argentino.

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De dois meses a, bom, um ano no poder

Áñez teria que ter repassado a presidência da República no dia 22 de janeiro de 2020, data na qual ela completaria o mandato inacabado de Morales. Isto é, a previsão original era a de que ficaria apenas dois meses no poder. Mas não havia tempo de preparar novas eleições e fazer uma campanha em tão pouco tempo. Por isso decidiram realizá-las em março. Naquele mês, no entanto, a pandemia de COVID-19 chegou à América do Sul.

Vários governos da região acreditavam que a pandemia seria breve. Por isso, a Bolívia marcou as eleições para maio. Mas com um cenário de pandemia de longa duração, o pleito foi atrasado para agosto. Depois, para setembro. E mais tarde, devido a um novo pico de infecções pela doença, para 18 de outubro.

Primeiro, Áñez disse que não disputaria as eleições. Mas meses depois declarou que entraria na corrida presidencial. Com suas trapalhadas na gestão do combate à pandemia, porém, ela não decolava nas pesquisas, não passava dos 12% de intenções de voto e acabou desistindo no meio da campanha.

Um novo presidente (do partido de Morales)

As bases do partido de Morales desejavam colocar como candidato a presidente o ex-chanceler David Choquehuanca. Além dele, as bases exigiam que o vice fosse o líder cocaleiro Andrónico Rodríguez. Ou seja, o primeiro, um representante da comunidade aymara e o segundo, dos indígenas quéchuas.

Morales se opôs a essa combinação. Ele considerava que essa chapa era “esquerdista” demais e poderia assustar o eleitorado da classe média que seu partido precisava para conseguir a maioria dos votos ainda no primeiro turno (e não correr o risco de um segundo turno com uma oposição eventualmente unificada).

Por esse motivo, Morales impôs a candidatura de Luis Arce, seu ex-ministro da Economia, o artífice do “boom econômico” da década prévia, que tem boas relações com os mercados, e é considerado um “moderado”. Mesmo assim, as bases conseguiram colocar Choquehuanca como seu vice. 

Arce fez a campanha sem recorrer à figura de Morales na propaganda e foi eleito presidente. Arce indicou que respeitava o ex-presidente pelo que havia feito no passado. Mas, não colocou Morales em posto algum de seu governo, fato que indicava que Arce pretendia fazer “carreira solo”.

“Golpe” ou “Sucessão constitucional”?

A troca de poder abrupta na Bolívia em novembro de 2019 foi intensamente discutida, não só no país, mas em toda a América Latina e no resto do planeta. Havia sido um “golpe de Estado”, como afirmavam os simpatizantes de Morales ou uma “sucessão constitucional”, tal como sustentavam os opositores do ex-presidente?

A discussão também contemplava uma terceira hipótese: se havia sido um “golpe de uma golpista em outro golpista”, em referência às várias vezes que o próprio Morales havia violado a Constituição para se prolongar no poder para ser, depois, substituído por outra pessoa que também pisoteara a Carta Magna?

Arce, durante a campanha eleitoral, havia se referido a Áñez como “a presidente transitória constitucional”. Morales, no exterior, continuava falando sobre Áñez como uma “golpista”. Áñez retrucava Morales afirmando que não houve golpe já que durante seu governo de 12 meses o Parlamento continuou funcionando, com maioria do partido de Morales. 

Áñez na cadeia

Na sexta-feira de 12 de março de 2021, a Justiça acatou um pedido da Promotoria-Geral para deter Áñez pela acusação de “terrorismo”, “insurreição” e “traição”.

Jeanine Añez ex-presidente interina da Bolívia
Jeanine Añez no momento de sua prisão, segundo imagens divulgadas pelo Ministério do Governo da Bolívia. Photos: Ministerio del Gobierno, Bolívia.

No início da madrugada do sábado, a Polícia deteve Áñez na cidade de Trinidad, em seu estado natal, Beni, no norte do país. Ela estava na casa de uns parentes, escondida dentro de uma cama-box. Ela foi levada a La Paz, sede do governo, em um avião militar. Ali foi colocada em uma cela. Dois ex-ministros de Áñez e um ex-chefe militar também foram detidos.

Diversos setores da oposição, mesmo sendo críticos de Áñez, sustentam que o governo do presidente Luis Arce está tentando “gerar terror” e que seu objetivo é “eliminar a oposição”. O ministro da Justiça, Iván Lima, retrucou, afirmando que não existe influência política alguma na decisão da Justiça. Mas, na sequência, o ministro afirmou que Áñez deveria ficar 30 anos na cadeia.

O ministro afirma que Áñez merece tal pena de prisão por ter assinado, no dia 14 de novembro de 2019, o decreto que determinava que estavam isentos de responsabilidade penal as forças de segurança que agissem na repressão de protestos. Um dia depois, a polícia matou 11 civis que se manifestavam nas cidades de Sacaba e Senkata.

Enquanto isso, nos primeiros dias após a detenção, setores opositores organizaram manifestações a favor da liberação de Áñez em diversas cidades bolivianas, gerando novamente um clima de tensão política no país. 

Analistas indicam que Arce pode ter tomado a decisão de insistir com a prisão de Áñez para satisfazer setores do MAS que pediam essa detenção. Também especulam que era uma forma de recuperar protagonismo após as eleições para prefeitos e governadores, nas quais o MAS não teve o desempenho esperado.

A organização não-governamental Humans Rights Watch, que havia criticado as acusações de terrorismo contra Evo Morales no ano passado, desta vez condenou o mesmo tipo de acusações contra Jeanine Áñez.

Um dado peculiar: a Igreja Católica e a Central Operária Boliviana (COB), que também “sugeriram” a renúncia de Morales em 2019, não entraram na mira da Justiça.

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