Educadores e administradores freqüentemente brincam que a mudança acontece em um ritmo muitíssimo lento no universo da educação, e alguns poderiam dizer que o mercado de edtechs era, de modo geral, como um gigante adormecido antes da pandemia chacoalhar o mundo. Agora que o gigante está totalmente desperto e bem financiado após anos de crescimento e investimentos tímidos, chegou a hora de examinar esse setor que é tão crucial para o futuro do planeta.
O fechamento obrigatório das escolas em todo o mundo devido à pandemia impulsionou abruptamente o aprendizado remoto e os modelos de ensino híbridos e, por consequência, o mercado de soluções tecnológicas voltadas para educação. Os investimentos em edtechs aumentaram 146% em 2020, de acordo com relatório da Associação para Investimentos de Capital Privado na América Latina (LAVCA) publicado em março. Durante os primeiros seis meses de 2021, as empresas de tecnologia educacional sediadas nos Estados Unidos levantaram mais de US$ 3,2 bilhões em capital de investimento, um número que ultrapassa o total de US$ 2,2 bilhões que a EdSurge reportou para todo o ano de 2020.
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O setor está fervilhando. Por um lado, investidores experientes estão de olho no potencial de negócio de oportunidades únicas de transformar digitalmente a educação. De outro lado, empreendedores iniciantes estão ansiosos para desenvolver novas soluções e ferramentas que possam servir a alunos de todas as idades – desde crianças aprendendo em salas de aula virtuais e híbridas até adultos que desejam aprender todo tipo de coisa, como cozinhar ou codificar.
Nesse contexto, a América Latina vem crescendo silenciosamente e se tornando um polo de inovação para a educação há quase uma década, disse Fernando Valenzuela Migoya, ex-executivo de uma edtech e fundador da Global Impact EdTech Alliance (GIEA), que tem sede na Cidade do México.
Comparativamente aos líderes globais, o mercado de edtechs na América Latina ainda é fragmentado e pequeno, mas já é o quarto maior mercado do mundo e tem crescido a uma taxa anual de 14% desde 2013. Temos um ecossistema forte, com cerca de 150 edtechs reconhecidas na região.
Fernando Valenzuela Migoya, fundador da Global Impact EdTech Alliance (GIEA)
A adoção de soluções de ensino e aprendizagem remotas acelerou por pura necessidade durante a pandemia, comprimindo o equivalente a “três a cinco anos de adoção normal de tecnologia em cerca de 12 meses, levando o setor a pensar completamente diferente sobre a maneira como o mundo todo aprende”, disse Thiago Payva, vice-presidente de educação da HolonIQ, uma empresa de inteligência de mercado que monitora os mercados globais de educação e edtechs.
O papel das edtechs em um cenário de crise econômica
O setor de edtechs tem um papel particularmente crítico a desempenhar na América Latina, uma região em que as lacunas sistêmicas na educação e os recursos limitados afetam diariamente milhões de pessoas e seus meios de subsistência – tanto estudantes, quanto adultos, principalmente aqueles que vivem em comunidades pobres, rurais e indígenas.
Segundo o Banco Mundial, cerca de 120 milhões de crianças em idade escolar na América Latina e no Caribe já haviam perdido ou estavam em risco de perder um ano letivo completo em fevereiro desse ano, resultando em mais 7,6 milhões de crianças em idade escolar na região “aprendendo mal” no ensino primário.
Essas falhas na aprendizagem terão efeitos duradouros e os especialistas dizem que a pandemia pode levar a uma geração inteira de “crianças perdidas” que simplesmente abandonam a escola e nunca mais voltam para a sala de aula. “Essa é a pior crise educacional já vista, e estamos preocupados que possa haver consequências sérias e duradouras para toda uma geração”, disse Carlos Felipe Jaramillo, vice-presidente do Banco Mundial para a América Latina e o Caribe.
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Os impactos econômicos do desemprego elevado relacionado à pandemia já estão sendo sentidos em toda a região. O Banco Mundial estima que a América Latina tenha sofrido uma contração econômica de 7% e que 30 milhões de pessoas perderam seus empregos ou foram deixadas de fora do mercado de trabalho. Gênero, educação, conectividade e experiência desempenharam um enorme papel na determinação de como uma pessoa se saiu na manutenção ou busca por uma colocação no mercado.
Os trabalhadores não qualificados e informais, as mulheres e aqueles sem acesso à internet foram os mais prejudicados. Em maio de 2020, dois meses após o início da pandemia, 20% das mulheres haviam deixado seus trabalhos porque as responsabilidades de cuidar dos filhos e da casa as impediram de trabalhar fora. E um em cada quatro trabalhadores com apenas o ensino fundamental perdeu seus empregos – ressaltando ainda mais a desigualdade que existe entre aqueles que têm acesso à educação de qualidade e que não têm nem mesmo acesso à internet.
Edtechs se firmam como alternativa às instituições de ensino tradicionais
Como a demanda por trabalhadores qualificados em toda a América Latina continua a crescer e os profissionais, empregados ou não, estão constantemente buscando por mais capacitação, as edtechs têm aí um enorme mercado para explorar e atender com soluções para ajudar as pessoas a desenvolver as habilidades e conhecimentos de que precisam para participar ativamente de uma economia digital cada vez mais competitiva.
Nesse sentido, as instituições tradicionais de ensino superior têm sido lentas em ajustar seus currículos para lidar com muitas lacunas de habilidades relacionadas à tecnologia. Isso tem deixado a porta aberta para que cursos técnicos e especializações se tornem uma alternativa viável à obtenção de um diploma universitário.
Em vez de freqüentar uma universidade (muitas vezes particular, com mensalidades altas), os estudantes podem agora acessar milhares de cursos sob demanda e receber certificações profissionais para atuação em áreas específicas, disse Renzo Casapia, diretor administrativo de mercados latino-americanos da Cengage, uma empresa edtech global que oferece cursos digitais e um conjunto de soluções de aprendizado on-line há mais de 20 anos.

“No ano passado, tivemos um aumento de 60% no interesse dos estudantes em cursos de capacitação e na oferta de cursos para desenvolvimento de habilidades profissionais através de nossa marca ed2go. Como resultado, vimos um aumento de mais de 40% na receita da ed2go em relação ao ano fiscal anterior”, disse ele. Embora o serviço de assinatura da Cengage, o Unlimited eTextbook, e várias outras ferramentas estejam disponíveis na região, a ed2Go ainda não está disponível para estudantes latino-americanos.
O aumento da procura por cursos de capacitação profissional não beneficia apenas os empregadores e as mudanças de carreira – é uma “maré crescente que eleva todos os barcos”. A adoção global e o investimento em requalificação de trabalhadores poderia acrescentar pelo menos US$ 6,5 trilhões ao PIB global, criar 5,3 milhões de novos empregos até 2030 e ajudar a desenvolver economias mais inclusivas e sustentáveis em todo o mundo, de acordo com um relatório recente do Fórum Econômico Mundial.
Esse cenário de potencial ganho mútuo está atraindo o interesse dos grandes investidores para as edtechs.
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Exemplos recentes na América Latina incluem a Coderhouse, com sede na Argentina, que arrecadou uma rodada Série A de US$ 13,5 milhões para expandir seu aplicativo que oferece cursos online ao vivo de programação, design, dados, marketing online, entre outros. A Crehana, uma edtech peruana que se apresenta como “one-stop-shop para que os empregadores possam reeducar seus funcionários”, arrecadou recentemente US$ 70 milhões – a maior rodada Série B da América Latina para uma edtech – com a General Atlantic.
O presente: transformação do aprendizado
Embora haja muita inovação no universo das edtechs, quando se trata de implementá-la em ambientes tradicionais de ensino, os especialistas concordam que as startups precisam ir até as escolas e os educadores.
Isso porque cada país da América Latina se encontra em um estágio diferente de conectividade, de acesso à internet, infraestrutura e desenvolvimento educacional. Enquanto instituições privadas e comunidades mais ricas podem estar prontas para implementar algumas das inovações propostas pelas edtechs sem grandes percalços, outras ainda estão desenvolvendo as bases do ensino e da aprendizagem remota e digital.
“Estamos sempre procurando maneiras de alcançar novas pessoas e mercados, e estamos felizes em nos definirmos e nos adaptarmos ao que os clientes querem. Existem alguns mercados na América Latina, como o México, que ainda compram uma boa parte de nosso conteúdo impresso, especialmente no setor público. Portanto, embora tenhamos toda uma plataforma de ferramentas digitais, não queremos impor o digital onde ele não faz sentido para as instituições ou para os clientes”, disse Casapia.
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Orçamentos e burocracia desempenham um papel significativo no que é possível a nível local. As escolas privadas geralmente têm mais recursos e infra-estrutura tecnológica para trabalhar do que as escolas públicas.
“Existe mais regulamentação nas séries mais baixas, o que torna mais difícil qualquer interrupção ou transformação. À medida que se passa ao nível secundário, depois ao nível universitário e depois ao nível corporativo, percebe-se que essas tecnologias, práticas e investimentos são capazes de escalar com sucesso porque os ambientes educacionais são menos regulados e mais flexíveis”, explicou Migoya, da G.I.E.A.

Migoya diz ainda que mais colaborações público-privadas em tecnologia, compartilhamento de dados e iniciativas apoiadas pelo governo são fundamentais para alcançar mais equidade na educação e criar mudanças transformacionais.
“É um trabalho duro que requer visão, colaboração, diferentes perspectivas e integração do que já existe com os melhores casos de aprendizagem. Podemos aprender com o que está funcionando no Uruguai e trazer essas melhores práticas para a Colômbia, e o que estamos aprendendo na Colômbia pode ser trazido para o México, e assim por diante. Por exemplo, a Colômbia lançou recentemente um programa onde os dados estão sendo analisados e usados para a tomada de decisões na reabertura de escolas e no treinamento de liderança de professores. Este uso de dados é o tipo de prática beneficiaria qualquer país”, disse Migoya.
O futuro: análise de dados orientada por IA
Para aquelas instituições que têm os recursos necessários para implementar soluções tecnológicas de educação de nível empresarial, como sistemas de gestão de aprendizagem (LMS) e outros tipos de plataformas de conteúdo digital, um verdadeiro tesouro aguarda professores, administradores e estudantes: dados.
“Com dados, podemos dizer aos professores: ‘Vejam como seus alunos estão fazendo a segunda e terceira tentativas neste problema matemático. Vejam quantos alunos realmente buscam o livro e quantos recorrem aos vídeos. Olhe como eles não resolvem problemas durante o dia e só fazem seus exercícios à noite. O aluno realmente leu a tarefa antes de fazer o trabalho?’ Você não está mais adivinhando. Todas essas informações podem ser usadas para adaptar a abordagem de conteúdo e melhorar o sucesso do aluno.
Renzo Casapia, diretor administrativo de mercados latino-americanos da Cengage
O aumento da penetração digital e a proliferação de dispositivos inteligentes também estão tornando as soluções de inteligência artificial (IA) mais acessíveis para professores e alunos. A Global Market Insights estima que a avaliação do mercado de IA na educação ultrapassará US$ 20 bilhões até 2027.
“As tecnologias baseadas em inteligência artificial têm um enorme potencial no setor educacional, particularmente aquelas ligadas à aprendizagem adaptativa e personalizada, autoatendimento (chatbots) ou gerenciamento de salas de aula híbridas. Dito isto, a maioria das universidades latino-americanas ainda está lidando com necessidades de infra-estrutura básica, implementação do LMS e integração de conteúdo”, acrescentou Casapia.
Há muitos benefícios no uso de IA na sala de aula digital, como a capacidade de reconhecer padrões, desenvolver modelos preditivos e coletar feedback imparcial. A maior mudança no jogo, entretanto, está em facilitar a instrução individualizada e apoiar um processo de aprendizagem mais informado e intencional.
A educação tradicional em sala de aula normalmente tem uma abordagem padronizada, embora uma mesma forma de ensino possa não funcionar para todo aluno. A IA pode potencialmente transformar o processo de aprendizado de um modelo que se concentra na entrega e no consumo de conteúdo, para um modelo que é impulsionado por um feedback contínuo, que ajuda os educadores a entender melhor seus alunos para que eles possam adaptar as aulas, exames e conteúdo às necessidades individuais dos alunos.
O Brasil já está se posicionando para ganhar dinheiro com a demanda global por mais tecnologia de IA. Em abril desse ano, o governo brasileiro divulgou uma estratégia de inteligência artificial (IA) para ajudar a estabelecer limites éticos e orientar pesquisas, governança, inovação e o desenvolvimento de currículo e tecnologias relacionadas – incluindo iniciativas necessárias para melhorar o pipeline de talentos para apoiar a inovação em IA. Essa é definitivamente outra tendência quente para acompanhar em 2022.
A educação deve ser vista como um direito humano básico, e as edtechs têm um papel fundamental a desempenhar para tornar a educação de alta qualidade acessível a todos. Como a adoção massiva de tecnologias educacionais na América Latina e em todo o mundo, menos alunos serão deixados para trás por sistemas educacionais que não os servem, e os educadores terão as ferramentas necessárias para criar planos de aprendizagem mais eficazes e individualizados para seus alunos.
(Traduzido por Carolina Pompeo)